Entrevista:
Juliano Medeiros
José Luís Fevereiro
Quando foi nomeado ministro da Economia Produtiva e vice-presidente de Economia do governo venezuelano, em janeiro do ano passado, Luis Salas tinha apenas 39 anos. Apontado como um dos expoentes da ala mais à esquerda do chavismo, Salas durou pouco no cargo. Pouco mais de um mês depois foi substituído pelo empresário Miguel Perez Abad, que estava à frente do Ministério da Indústria.
Salas é um defensor do processo revolucionário venezuelano e, mesmo nas críticas, coloca-se ao lado do governo bolivariano.
Ao ser empossado, propunha o aprofundamento do processo revolucionário e uma política mais dura contra os sabotadores da economia: “Não tem sentido falarmos de inflação e escassez, quando o que temos é especulação, monopólio e usura”.
Propunha, também, a moratória diante dos credores internacionais da Venezuela para usar os recursos em investimentos produtivos.
Formado em sociologia na Universidade Central da Venezuela, Salas fez mestrado no Chile e foi professor de Economia Política da Universidade Bolivariana da Venezuela (UBV). É fundador do Centro de Estudos de Economia Política daquela universidade.
Ele respondeu às perguntas da revista SOCIALISMO e LIBERDADE por email.
A Revolução Bolivariana foi o mais avançado processo de enfrentamento político contra o imperialismo nas últimas décadas na América Latina. Qual a origem da crise atual? As dificuldades podem ser superadas? A situação que estamos vivendo tem explicações de longo, médio e curto alcance. O processo bolivariano veio na contramão das principais tendências mundiais na última década. Isso acarretou choques. Passamos por diferentes momentos e vivemos um momento mais agudo, o que tem a ver com alguns fatores. O primeiro, a morte do presidente Chávez no começo de 2013. A partir desse momento, o confronto se torna mais intenso. Depois, houve mudanças na economia mundial, com a queda dos preços das commodities, dentre eles o do petróleo. Isso significou um ciclo menos virtuoso do que o que estávamos vivendo. E eu agregaria um terceiro fator, relacionado com a disputa interna, na qual também o governo tem uma parcela de responsabilidade, porque não soube ou não conseguiu fazer frente a ataques especulativos. Essa situação, com o tempo, tornou mais agudo o confronto.
Um dos problemas históricos da Venezuela é a dependência econômica do petróleo. Tornar o país defendido frente às flutuações dos preços internacionais exigiria maior diversificação da economia? Por que não se conseguiu isso? De fato, um dos problemas históricos da Venezuela é a dependência econômica do petróleo. E conseguir que o país seja imune às consequências das flutuações dos seus preços passa por conseguir avanços significativos na planificação da economia. Por que não se conseguiu? Isso é um processo lento. E é preciso uma primeira etapa que crie condições para isso. Quando Chávez assumiu a Presidência, em 1999, a Venezuela vinha de 20 anos de uma crise econômica muito forte, com índices de desnutrição e evasão escolar grandes. Assim, o primeiro a ser feito foi criar certas condições. Por um lado, pagar a dívida social herdada do neoliberalismo dos anos 80 e 90. De outro, ser capaz de dar um salto para uma economia produtiva. Então, é uma questão de etapas na qual se avançou muito, mas em meio à agudização dos conflitos, porque tudo foi feito num clima de disputa. Desde 1999, a Venezuela se encontra num duro confronto com os poderes econômicos mundiais e locais, o que fez com que não tivéssemos podido avançar tudo o que gostaríamos.
Administrar uma economia ainda capitalista com um sentido de transformação socialista coloca dificuldades enormes. Isso dificilmente se consegue sem algum nível de cooperação de parcelas dos setores economicamente dominantes. A Venezuela fez algumas tentativas para isso, que aparentemente terminaram em fracasso. Por quê? Isso aconteceu pela natureza dos grupos econômicos dominantes em Venezuela. Nossa economia é diferente da economia brasileira ou argentina. Aqui, a burguesia que predomina é uma burguesia comercial e mercantil mais do que uma burguesia industrial. Isto faz com que a burguesia venezuelana seja contra qualquer processo de industrialização clássico, como os que ocorreram em outras partes. Nos anos 40, tivemos um governo da burguesia industrial que foi derrotado por esta mesma burguesia comercial e mercantil, a quem não interessava um processo de industrialização, porque ela vivia e vive fundamentalmente das importações. Por outro lado, ao longo desses anos houve mudanças que, entre outras coisas, significaram a inclusão de pequenos e meios empresários agrupados numa central que se chama Feindustria. Ela é diferente da central dos grandes empresários, que se chama Fedecâmara. Houve também a aparição de novas formas associativas ou econômicas, como as empresas de propriedade social (EPS) ou empresas mistas, com participação do Estado e das comunidades. Temos tido progressos, mas não tanto nas áreas mais sensíveis, como as de alimentos, produtos de higiene e limpeza ou peças de reposição para automóveis. Aí, o poder dos grandes monopólios é muito forte, e excetuando-se o caso da Polar, que é um monopólio venezuelano, todos os demais são transnacionais, como os que existem nos produtos de higiene e limpeza ou no caso dos alimentos. Assim, não é tão fácil substituí-los como gostaríamos.
No governo de Chávez teve início uma profunda reforma agrária. Quais os avanços e quais os limites dessa experiência? Por que ela não foi capaz de assegurar a soberania alimentar da Venezuela? Como foi dito, na Venezuela foi feita uma reforma agrária. Chávez avançou nesse sentido e proibiu o latifúndio. Uma das grandes conquistas foi a democratização do acesso à terra. O processo teve muitos conflitos políticos. Houve de 200 a 300 líderes camponeses assassinados por proprietários de terras ou por grupos ligados a eles. Mas não se conseguiu alcançar a soberania alimentar porque, como eu disse, boa parte da produção dos alimentos mais sensíveis depende de monopólios ou de oligopólios transnacionalizados. Ainda assim, uma rede extensa de pequenos e médios produtores agrícolas tem conseguido abastecer as cidades e fazer com que não seja tão grave a crise que vivemos. Mas esses produtores não têm expressão suficiente para suplantar os monopólios e os oligopólios. Eu diria também que, inclusive, o governo não tem à disposição suficiente para apoiá-los mais, por várias razões. Ainda assim, creio que se está avançando. Mas o problema está na parte mais sensível da economia, com o peso dos monopólios e dos oligopólios, que segue sendo muito grande e exercendo seu poder no mercado.
Setores da economia sob administração pública enfrentam, segundo muitos, problemas agudos de gestão. O avanço da estatização foi mais rápido do que o desenvolvimento da capacidade gerencial do Estado? Em parte, isso ocorreu, mas também é verdade que muitas dessas empresas foram estatizadas nos últimos tempos e, como toda e qualquer empresa, necessitam certo tempo para se consolidar. Além disso, há mitos a esse respeito. Muitas foram estatizadas por terem sido abandonadas pelos seus donos. Assim, não é verdade que o governo as tenha expropriado e, depois, não tenha conseguido torná-las produtivas. A maioria foi abandonada pelo setor privado em más condições. O que, sim, é verdade é que o Estado tomou a seu cargo mais do que a capacidade gerencial para administrar essas empresas. O ideal teria sido que as coisas andassem em sintonia, mas a vida não é assim. De qualquer forma, é importante que o Estado mantenha um setor. Isso não deve ser desprezado. E não é o caso de se começar a reprivatizá-lo com a justificativa de que o setor privado vai fazer isso de forma mais eficiente. Isso não é verdade.
No cenário atual de crise econômica, com a queda dos preços internacionais do petróleo em relação e o desgaste político, parece que o governo tenta ganhar tempo com o diálogo. Há perspectivas de que a crise diminua a tempo de a esquerda se recuperar e vencer as próximas eleições presidenciais? Esse quadro já vinha sendo anunciado por Chávez em 2010. Mas o governo não foi suficientemente ágil para prever essa situação e atuar. É verdade que denuncia os ataques especulativos, mas nem sempre soube atuar contra eles. Fazendo uma analogia, em que pese as diferenças, isso me faz lembrar um pouco a situação de Dilma Rousseff diante dos ataques especulativos dos setores econômicos brasileiros. No Brasil, de alguma forma, mais do que enfrentá-los, se decidiu conciliar, inclusive nomeando um banqueiro como ministro da economia. No caso da Venezuela não se chegou a tanto, mas o governo muitas vezes agiu como se pensasse que, cedendo às pressões especulativas, pudesse ganhar tempo e, talvez, acalmar os que nos atacavam. Na prática esse mecanismo não funciona, porque não é interpretado como sinal de boa vontade, mas como debilidade. E os inimigos nos atacam mais. Entre 2003 e 2012 o controle do câmbio conseguiu controlar a inflação e baixá-la a níveis inferiores à metade do estavam na década anterior. Então, creio que na Venezuela, desde o ponto de vista dos números, é indiscutível o êxito do controle do câmbio. Mas o que acontece também é que, nos últimos tempos, pressionado pelos ataques da oposição, o governo optou mais pela flexibilização, o que não trouxe resultados.
O governo acaba de invocar o artigo da Constituição que prevê a convocação de uma assembleia constituinte. Como esse processo pode ajudar na superação da crise? Que mudanças podem ser promovidas pelo processo constituinte para ajudar as forças populares diante da burguesia e da direita pró-imperialista? O primeiro ponto positivo da Constituinte é que a iniciativa política passa para o governo. Recobrada a iniciativa, recomeça o debate. Ainda que não haja cessado a violência, hoje se discute a Constituinte. Isso já ajuda amainar um pouco a violência, o que é positivo. E, por mais golpeado que esteja o chavismo, ele tem mais propostas do que a direita. Efetivamente, pesquisas da própria direita mostram que uma das suas principais preocupações, reconhecidas por seus próprios militantes, é que ela não tem, ou não apresenta abertamente, um projeto político. E menos ainda um projeto econômico. O pouco que mostram não é muito popular. São coisas no estilo Macri, na Argentina, ou Temer, no Brasil. Assim, as propostas do chavismo são muito mais atraentes para a população. Quando se dá o debate, ele fica em vantagem. Então, a Constituinte pode criar um cenário para fortalecer o avanço popular, mas para isso é importante derrotar a violência fascista que tem se manifestado com muita força.
As políticas de integração lideradas pela Venezuela – em especial a Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América (Alba) desempenharam um importante papel na cooperação entre países cuja orientação econômica contrariava os interesses imperialistas na América Latina. Que avanços houve e que dificuldades esse processo de integração enfrentou? Ele chegou a avançar muitíssimo. Existia um eixo que para nós era vital, o que Chávez chamava de eixo Caracas-Brasília-Buenos Aires, e que agora está contra a Venezuela. A partir do que aconteceu no Brasil e na Argentina, ele acabou. Creio que os ataques contra a Venezuela não têm a ver apenas com a Venezuela, mas também com um processo de desintegração da região, que, nos últimos anos, nos tempos de Lula, Kirchner e Chávez tinha tido uma consolidação regional forte e muito importante. Perdemos terreno e este é um terreno que precisamos recuperar, não somente no caso venezuelano, mas em toda a região. No caso do Brasil, em particular, há uma enorme preocupação dos Estados Unidos, a quem não interessa que uma economia como a brasileira saia de sua órbita de influência.
Nos últimos anos houve três golpes de estado na América Latina (em Honduras, no Paraguai e no Brasil), além de tentativas de desestabilização na Bolívia, no Equador e na Venezuela. Há projetos conservadores retomando terreno na Argentina e mantendo o protagonismo no Peru e na Colômbia. Pode ser dito que o ciclo de governos progressistas dependeu da expansão econômica que o mundo e a América Latina viveram? Creio que seria apressada a afirmação de que o ciclo dos governos progressistas foi dependente da expansão econômica. Esta foi um fator importante sem dúvida, mas a afirmação é limitada. Além disso, não acredito, diferentemente de alguns setores da esquerda, que esse ciclo tenha chegado ao fim. Em particular no Brasil, houve uma situação muito particular, um golpe de estado. No caso da Argentina, ainda que para os efeitos isso seja irrelevante, não foi tanto a campanha de Macri que venceu. A campanha do kirchnerismo e do justicialismo foi muito ruim e, em boa medida, isso foi mais importante para a derrota do que o desempenho de Macri. Vemos as mobilizações que ocorrem no Brasil, vemos o que está acontecendo na Argentina, vemos que a Venezuela, apesar de todos os prognósticos negativos, vai se sustentando. Por isso, é cedo para afirmar que chegou ao fim o ciclo dos governos progressistas. São períodos de longo prazo na história e eles podem atravessar momentos de turbulência. Claro que tampouco se pode afirmar que esteja havendo uma continuidade tranquila desse ciclo de governos progressistas. Tudo pode acontecer e é possível que haja uma restauração neoliberal, mas o processo segue aberto ainda. De qualquer forma, é preciso lutar para que não haja um retrocesso a épocas que, de alguma forma, já foram superadas na região.