Ruy Braga
Enquanto escrevo, o governo federal tenta firmar um acordo de líderes na Câmara dos Deputados a fim de garantir a aprovação de um requerimento de urgência para aprovar a contrarreforma trabalhista no início de junho. Mesmo diante da profundidade da crise política que assola Brasília, os parlamentares não recuaram da decisão de atacar barbaramente a proteção trabalhista. Afinal, trata-se de uma proposta essencial para assegurar a transição para uma estrutura econômica orientada pela acumulação por espoliação. E os interesses dos setores empresariais precisam ser assegurados. Custe o que custar. Ainda que as medidas reconduzam o país ao século XIX.
Foram mais de cem alterações na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O pacote de maldades contra o trabalhador brasileiro é muito grande para ser detalhado neste espaço. Apenas para ficarmos em dois exemplos, o projeto aprovado na Câmara permite que grávidas trabalhem em ambientes insalubres e o intervalo na jornada pode ser reduzido para 30 minutos. No agregado, o projeto condensou um conjunto de medidas que já vinham sendo discutidas na Câmara por meio de uma série de projetos de lei apresentados por acólitos de empresas travestidos de deputados. As principais frentes do ataque são, sinteticamente, a dominância do negociado sobre o legislado, a flexibilização da jornada de trabalho e o bloqueio do acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho.
Do ponto de vista do negociado sobre o legislado, é importante destacar que dos cerca de 13 mil sindicatos atuantes no setor privado hoje no país, a esmagadora maioria funciona como uma espécie de fiscal da CLT, pois não tem condições de negociar com as empresas benefícios reais para os trabalhadores. As razões para isso são variadas e vão desde o simples burocratismo sindical até causas estruturais, como o aumento do desemprego e do subemprego, além da fragmentação das bases dos sindicatos, a pouca tradição sindical em muitas regiões, a fragilidade da formação dos dirigentes, a repressão etc.
Neste contexto, afirmar a dominância do negociado significa eliminar, em termos práticos, muitas conquistas históricas da classe trabalhadora brasileira. A começar pelo décimo terceiro salário. Afinal, imagine a seguinte situação, numa “negociação” entre patrões e empregados, as empresas decidem dividir o pagamento do décimo terceiro salário em 12 parcelas, por exemplo. Numa negociação posterior, bastaria que as empresas apresentassem uma proposta de diminuição salarial de 8,5%, caso a inflação seja de 0%, algo proibido pela legislação atual, ou mesmo que deixassem de dar o reajuste salarial, caso a inflação fosse de 8,5%, para que o décimo terceiro simplesmente evaporasse.
Outra ameaça grave trazida pela contrarreforma no tocante ao primado do legislado é o aumento da insegurança das próprias relações trabalhistas. Afinal, aproveitando o exemplo anterior, imaginem o que não aconteceria se, subitamente, os trabalhadores representados por um sindicato inexpressivo percebessem que seus representantes assinaram um acordo que acaba com o décimo terceiro salário etc. A aprovação da contrarreforma criará uma situação potencialmente explosiva no país, com um compreensível aumento da violência nas relações de trabalho.
Em relação à flexibilização da jornada, o grande risco é a generalização do trabalho intermitente com a multiplicação daquilo que na Europa é chamado de “mini job”. O trabalhador fica em casa esperando receber uma mensagem de texto do empregador dizendo onde e quando ele deve se apresentar. Assim, o trabalhador fica totalmente à mercê das flutuações da demanda e sem qualquer previsão de quanto receberá no fim do mês, tendo em vista que o empregador paga apenas pelo tempo efetivamente trabalhado. Trata-se de um retrocesso aos primórdios do capitalismo, quando a forma típica de remuneração era exatamente o salário por peça produzida pelo operário.
Além disso, as formas precárias de contratação, normalmente associadas aos contratos terceirizados para os trabalhadores subalternos e ao chamado “pejotismo” (contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas) para os quadros mais qualificados, deverão se banalizar em um futuro próximo. Em suma, todos perdem renda e têm sua carga de trabalho aumentada. É verdade que isso já acontece hoje em dia, mesmo sem a contrarreforma trabalhista. No entanto, atualmente, existem obstáculos jurídicos à subcontratação de todas as atividades de uma empresa, por exemplo, apenas sendo permitida a terceirização das atividades meio. Além disso, na condição de “PJ”, caso fique demonstrado o vínculo de subalternidade do contratado para com a empresa contratante, esta é obrigada a pagar-lhe multa e todos os encargos trabalhistas. Estas salvaguardas para o trabalhador desapareceram no projeto de contrarreforma.
Jornadas mais longas e salários menores: os setores empresariais desejam impor aos trabalhadores um verdadeiro desmanche do sistema de proteção do trabalho. Assim, além dos ganhos imediatos em termos de espoliação dos rendimentos do trabalho, os empresários buscam alcançar outro objetivo igualmente importante: deslegitimar as formas de reivindicação historicamente criadas pelos trabalhadores em seu processo de construção classista. Ou seja, quando nos referimos à CLT, estamos falando sobre um momento decisivo de um longo ciclo de mobilizações dos grupos subalternos brasileiros que, em termos globais, vai da greve geral de junho-julho de 1917, até meados dos anos 1930, com a mal sucedida insurreição comunista de 1935.
A promulgação da CLT coroou este ciclo por meio de uma série de concessões materiais aos trabalhadores e que foram estratégicas para o esforço industrializante do país. Além disso, a legislação trabalhista delimitou, pela primeira vez na história brasileira, um espaço de conflitos políticos reconhecido como legítimo. Em outras palavras, por meio da mobilização pela efetivação dos direitos trabalhistas, existentes na forma da lei, mas ausentes na realidade das empresas, os subalternos se apropriaram de uma gramática política que foi largamente empregada nas lutas sociais dos anos 1950, 1960 e 1970. Isso sem mencionar a influência desta dinâmica coletiva na conquista dos direitos sociais universais garantidos pela Constituição de 1988.
Neste sentido, o atual desmanche da CLT faz parte de uma ampla reação antipopular, cujo vértice consiste em deslegitimar as lutas sociais no país, a fim de aprofundar a exploração e a dominação dos trabalhadores. Trata-se de uma ofensiva sobre os direitos previdenciários e trabalhistas que busca consolidar um regime de acumulação por espoliação cujo eixo gravita em torno da mercantilização do trabalho. Este regime já havia sido publicamente anunciado em uma entrevista do então presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp, o empresário Benjamin Steinbruch, ao jornal Folha de S. Paulo, durante a campanha eleitoral de 2014.
Na ocasião, após entoar a indefectível cantilena a respeito do elevado custo do emprego no Brasil, o dono da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) reivindicou um “país leve na lei trabalhista”, isto é, com jornada mais flexível, idade legal diminuída e horário de almoço encurtado: “Não precisa de uma hora [de almoço]. Se você vai numa empresa nos EUA, vê [o trabalhador] comendo o sanduíche com a mão esquerda e operando a máquina com a mão direita. Tem 15 minutos para o almoço”. Por trás das propostas do ex-presidente da Fiesp já era possível perceber as frentes de ataque dos interesses patronais incorporados na proposta de reforma trabalhista do governo ilegítimo de Michel Temer, isto é, a implementação do princípio do negociado sobre o legislado, a flexibilização da jornada de trabalho e a universalização da terceirização empresarial.
Especificamente em relação à terceirização, mesmo antes da contrarreforma trabalhista, o quadro já era desalentador. De acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), nos últimos três anos, cerca de 70% das indústrias brasileiras contrataram empresas terceirizadas. Dos 50 milhões de trabalhadores com carteira assinada existentes em 2014 no país, 12,7 milhões eram terceirizados, recebendo, em média, salários 30% inferiores em relação aos contratados diretamente. Além disso, eles são mais vulneráveis tanto aos acidentes de trabalho, quanto às condições análogas à escravidão. A contrarreforma trabalhista de Temer cristalizaria uma condição social já bastante calamitosa.
Ao fim e ao cabo, não parece haver muita dúvida de que essas exigências empresariais foram plenamente incorporadas pela agenda do golpe de 2016, cujo objetivo não declarado é assegurar a transição mais rápida possível para um regime de acumulação focado na espoliação dos direitos dos trabalhadores. Evidentemente, isto não implica que a exploração do trabalho assalariado barato tenha perdido centralidade. No entanto, tendo em vista o prolongamento da crise da globalização, somado à dificuldade de a estrutura social acomodar os conflitos trabalhistas decorrentes da ampliação do assalariamento formal da última década, o governo golpista decidiu orquestrar uma brusca mudança nos rumos da economia.
Caso a contrarreforma trabalhista seja aprovada, os golpistas sepultarão um século de lutas sociais em benefício de uma cidadania salarial inclusiva. E os trabalhadores pagarão o pato da crise por meio da evaporação dos rendimentos e da ampliação das jornadas de trabalho. A desigualdade social vai aumentar, minando as bases da retomada do crescimento econômico. Não há dúvidas que entraremos em uma quadra histórica marcada pela guerra da burguesia contra o povo pobre trabalhador. No entanto, resta ainda saber qual a forma política do contragolpe popular. Afinal, assistiremos ao fortalecimento das pulsões reacionárias ou, ao contrário, seremos capazes de construir uma alternativa radical e democrática?