Luiz Arnaldo Dias Campos
Nos dicionários a palavra martírio significa sofrimento prolongado ou repetitivo. Na tela, as imagens do filme que leva esse nome se repetem. E mostram no acampamento de Pyelito-Pue, no Mato Grosso do Sul, mulheres e homens guaranis-kaiowás afirmando no seu idioma, com gestos fortes e marcantes, aquilo que é o centro de suas vidas: a luta pelo direito de morar na terra em que estão enterrados seus avós.
Martírio, documentário de Vincent Carelli, com codireção de Ernesto Carvalho, é o relato de uma dor que atravessa séculos. Mais do que isto, é o retrato detalhado e caudaloso de um processo de esbulho contra um povo do Brasil, realizado pelo Estado brasileiro. O filme retroage até a Guerra do Paraguai, comprovando com farta prova documental como, através do tempo, os guaranis tiveram suas terras roubadas, ao mesmo tempo em que eram transformados em cortadores de cana, semi-escravizados, para os latifúndios.
É uma história de deportações, confinamentos, assassinatos e resistência que tem os sucessivos governos como personagens macabros. Para Carelli, o filme “é o relato da Palestina brasileira, a história de como o capitalismo arrasou uma sociedade igualitária”.
A epopeia do documentário teve início em 1988, quando Carelli foi registrar cerimônias religiosas guaranis. Acompanhou aquele povo até 1999, retornando em 2011, impulsionado pela notícia do assassinato de um indígena e a desaparição do seu corpo. A partir daí, os autores mergulharam de corpo inteiro na ciclópica tarefa de desmontar um edifício de inverdades, que condena os guaranis a viver em guetos chamados de reservas, ou à beira das estradas.
Em Martírio os contendores se enfrentam cara a cara. Na tela, os argumentos dos indígenas se confrontam com depoimentos patéticos da ex-ministra Kátia Abreu e outros eminentes representantes da bancada ruralista, que de forma inacreditável se vitimizam e transformam os guaranis em seus algozes. Mas, apesar de expor o ridículo involuntário dos defensores do agronegócio, Martírio não é uma obra que possa, no mau sentido, ser chamada de panfletária. Pelo contrário, com paciência de velho índio empilha os fatos históricos e apresenta provas, convencendo racionalmente os espectadores da causa justa do povo guarani. Mas é um filme que também sabe ser comovente, ao mostrar as profundas diferenças entre aqueles para quem a terra é pura mercadoria e os povos indígenas para quem ela é território, coração e memória, razão primeira da existência de um povo.
Martírio não tem receio de ser uma obra engajada. Segundo Carelli, está a serviço da luta contra o “marco temporal “da Constituinte de 1988, a interpretação de juristas, padrão Gilmar Mendes, para quem a garantia da demarcação de terras contida naquele diploma legal é exclusiva para os indígenas que estavam ocupando suas terras na data da sua promulgação. Ou seja, exclui do direito aqueles povos, como os guaranis-kaiowás, que, em 1988, já completamente esbulhados, viviam confinados em exíguos espaços ou na margem das rodovias.
Este absurdo jurídico faz parte da ofensiva anti-indígena posta em marcha pela maioria golpista do Congresso Nacional que está retalhando terras protegidas, como as florestas nacionais, tenciona a extinção da Funai e quer que deputados e senadores, entre os quais é grande a força da chamada bancada ruralista, passem a demarcar as terras indígenas.
Para todos que lutam contra estas infâmias, Martírio é uma arma importante.
E é, sobretudo, uma obra profundamente esclarecedora a respeito do Brasil diverso. Mas que, no entanto, é um país em que há um Estado que se recusa a reconhecer está diversidade. Apesar dos avanços da Constituinte de 1988, o Brasil continua sem se reconhecer oficialmente como um país plurinacional, no qual convivem centenas de povos com quase 300 idiomas falados cotidianamente.
Esses povos devem ser reconhecidos como sobreviventes de um massacre que se iniciou 500 anos atrás e prossegue até hoje.
Gente que, pelo mais elementar senso de justiça, tem direito a viver de acordo com as suas tradições na terra dos seus ancestrais.