Claudio Katz
Entrevista a Nildo Ouriques
Claudio Katz é amizade antiga, mas deste século. No entanto, tivemos coincidências imediatas. O rigor e a calma de suas exposições constituem marca registrada e motivo de admiração por onde passa. É marxista de fino estilo e formação. Atento analista da vida latino-americana e mais um daqueles intelectuais argentinos de cultura ampla fenômeno muito raro entre os economistas cuja formação está marcada pela estreiteza intelectual e o desprezo pela realidade, ele respondeu a nossas perguntas logo após um giro pela Espanha e numa brecha de seu ativismo político na Argentina. (N.O.)
Por que o desenvolvimentismo voltou na América Latina? A onda “neodesenvolvimentista” recente (Lula, Cristina, Rafael Correa etc.) não carece das bases econômicas e políticas da antiga utopia burguesa, representada pelo projeto cepalino? O neodesenvolvimentismo surgiu como resultado direto da crise generalizada gerada pelo neoliberalismo, que o precedeu. A abertura comercial, as privatizações e a regulação financeira dos anos 90 levaram à grande quebradeira econômica do princípio do século XXI. Várias rebeliões populares colocaram abaixo governos direitistas e interromperam ajustes do FMI. Essas rebeliões na Venezuela, na Bolívia, no Equador e na Argentina modificaram a correlação de forças na região e facilitaram o denominado ciclo progressista. O neodesenvolvimentismo foi especificamente a orientação econômica dos governos Lula-Dilma, Kirchner e Correa no contexto de crescimento. Políticas econômicas expansivas, estabilidade financeira e derrota do projeto imperial da Alca (Aliança para o Livre Comércio das Américas). Foi uma tentativa de retomar a industrialização com maior intervenção estatal e medidas heterodoxas, com a intenção de reduzir a disparidade tecnológica e copiar o modelo seguido pelo Sudeste Asiático. Porém, diferentemente do desenvolvimentismo clássico, se pretendeu desenvolver esse projeto por meio de alianças com o agronegócio e o resultado foi decepcionante. Em nenhum terreno foram obtidos os resultados pretendidos. Renunciou-se à introdução de mudanças estruturais necessárias em nossos países para superar o subdesenvolvimento e agravou-se a dependência das exportações de productos primários. O fracasso é muito visível no caso argentino. O kirchnerismo se negou a implementar o controle estatal do comércio exterior. Confiou especialmente na capacidade de investimento de grandes empresários que utilizaram subsídios públicos para a fuga de capitais, sem realizar qualquer dos empreendimentos prometidos. No Brasil, no mesmo período, o consumo aumentou, mas as desigualdades sociais persistiram e houve um retrocesso da indústria. Além disso, os privilégios ao capital financeiro foram mantidos e se consolidou a primazia do agronegócio, o que sufocou qualquer esperança de transformação agrária progressista. Tampouco em escala regional foram implementados projetos neodesenvolvimentistas de integração. O banco regional, o fundo de reserva e a coordenação de um sistema cambial ficaram no papel e o Banco do Sul não avançou. No lugar de uma negociação coordenada com a China, cada governo assinou acordos unilaterais que elevaram o endividamento e levaram a crescentes limitações comerciais.
Quais foram as causas da crise desse modelo e do avanço da direita em quase todo o continente? As limitações do neodesenvolvimentismo estão entre as causas do avanço da direita? Sim. Precisamente pelas limitaçõesque apontei, o período neodesenvolvimentista não foi uma etapa pós-liberal. As transformações careceram da solidez necessária para deixar para trás o neodesenvolvimentismo. Por isso, o qualificativo de “pós” não é adequado para descrever este ciclo. A estrutura primarizada de nossa economia não se modificou, pois se mantiveram os privilégios dos grupos dominantes. Podemos afirmar que existiram mais continuidades do que mudanças. Certamente o neodesenvolvimentismo facilitou melhorias no plano social, maior consumo e certo crescimento. Porém, esses fenômenos já tinham ocorrido em outros ciclos de reativação e valorização exportadora e depois se diluíram quando se esgotou a conjuntura exterior favorável. Alguns economistas se iludiram com a perspectiva de “aproveitar a globalização” para melhorar a colocação relativa das nossas economias na divisão internacional do trabalho. Acreditaram que o subdesenvolvimento só obedecia a causas internas, imaginaram trajetórias seguras para a acumulação e esqueceram o lugar dependente da América Latina no capitalismo global. Na suposição de que o capitalismo oferecia grandes espaços para políticas de inclusão, descartaram estratégias para superar o sistema. Apostaram no capitalismo redistribuitivo, desconhecendo os desequilíbrios e as agressões contra os trabalhadores gerados pela própria acumulação de capital. Pensaram que com o capitalismo de estado seriam evitados os obstáculos do capitalismo privado e imaginaram que os burocratas poderiam definir um roteiro que fosse seguido por empresários obedientes. A crise do neodesenvolvimentismo desnudou essas fantasias e confirmou a impossibilidade de um capitalismo humano. Também mostrou como o naufrágio desse projeto ilusório induz a heterodoxia a uma resignação conservadora.
O que dizer da burguesia industrial em nossos países. A meu ver perdeu a força econômica e a liderança política que tinha há três décadas. Se estou certo, por que isso aconteceu? Sim, é verdade. Creio que o itinerário político seguido pelos governos neodesevolvimentistas ilustra essa regressão. A direita agora recupera a hegemonia porque os modelos progressistas ampliaram direitos, porém fizeram reformas completamente insuficientes, mantendo o velho sistema político de alianças e a corrupção. Além disso, falharam em sua relação com o movimiento popular. Quando se diluiu o colchão da política fiscal para financiar o assistencialismo e a distensão social, perderam a bússola e se assustaram diante dos protestos. Em vez de reconhecer a insatisfação popular, se afastaram das mobilizações de massa e permitiram à direita fazer demagogia em torno às demandas sociais.
Como você vê o futuro econômico se a burguesia industrial perde força econômica e capacidade de liderança na América Latina? Creio que o agravamento das dificuldades econômicas no plano internacional vai reforçar a subordinação política e econômica das classes dominantes latino-americanas ao poder imperial. A prosperidade da década passada ficou para trás e desde 2012 foi aberto um ciclo recessivo econômico descomunal. O Brasil, por exemplo, padeceu nos últimos anos de um retrocesso descomunal! Os preços das matérias primas oscilam entre novas quedas e recuperações leves, sem retomar os níveis da década anterior. As remessas dos imigrantes e o investimento externo retrocedem e a previsível elevação da taxa de juros nos Estados Unidos limita a vinda de capitais. Ao fim de um longo processo de reprimarização, não somente a indústria local retrocede. A crise bate duro também nas empresas transnacionais de origem latino-americana. Por isso aparece a corrupção da Odebrecht. O escândalo provocado pelo sistema internacional de propinas montado por esta empresa é utilizado para facilitar aos estadunidenses a captura de apetitosos negócios de obras públicas. Há uma forte tendência de todos os grupos dominantes da região a retomar a ortodoxia neoliberal. Buscam-se acordos de libre comércio com a União Europeia e foi aceita a agenda chinesa da invasão importadora e do saque dos recursos naturais. Ademais, foram retomadas as privatizações ainda por concluir ou fracassadas dos anos 90 e houve um brutal corte nos direitos sociais, com maior flexibilização dos direitos trabalhistas e contrarreformas no sistema de Previdência. Está escalada agrava a pobreza, a desigualdade e a precarização. Da mesma forma, me parece que a gestão Trump agrega muito pouca consistência à restauração conservadora. Atropela o México como uma advertência aos grandes rivais da Ásia e da Europa e tenta convertê-lo num caso exemplar, no sentido de limitar a imigração e renegociar os acordos comerciais. Os mandatários neoliberais perderam a sintonia com a Casa Branca e esse distanciamento acentua a vulnerabilidade de governos já muito instáveis.
O atual cenário de hegemonia financeira é um fenômeno passageiro ou será característica permanente do nosso capitalismo dependente? Na nova organização neoliberal se consolidou o capital financiero, afloraram problemas relativos a atividades primárias e a indústria desmoronou. Essa reestruturação potencializa as divisões nas elites e dificulta a conformação de um bloco estabilizado nas classes dominantes. Por isso, governos direitistas perdem legitimidade no contexto de regimes afetados pelo seu alto grau de corrupção. Na república de delinquentes que impera no Brasil, cresce a cada momento o número de ministros e parlamentares envolvidos na malversação de recursos. Macri é um presidente “off shore”, diante de uma cleptocracia de milionários que enriquece assaltando o Estado. O sistema de propinas organizado pela Odebrecht elameia presidentes e ministros no Peru, na Colômbia e no Panamá. Como a restauração conservadora combina fragilidade econômica comfalta de legitimidade política, se consolida um cenário de grande turbulência.
Neste cenário, qual a função da esquerda? Limitar-se ao papel de “espirito crítico” das insuficiências desenvolvimentistas ou apresentar uma proposta radical e alternativa para a economia e a sociedade? A esquerda, obviamente, deve apresentar uma proposta radical e alternativa, começando por um debate sobre o balanço idílico de Kirchner e Lula que muitos teóricos do progressismo fazem. Há quem insista em que foram governos exitosos, identificando erros apenas na conivência com os bancos, na disputa com os meios de comunicação ou na batalha cultural para afirmar uma classe média atada ao consumismo. Penso que essa leitura é superficial e evita reconhecer que os governos progressistas perderam força porque adaptaram suas agendas às das classes dominantes. A consequência política dessa postura é a promoção de uma estratégia exclusivamente centrada no retorno eleitoral à Presidência, deixando em segundo plano a prioridade que deve ter a resistência social. Há quem acredite no fracasso da direita e viva na suposição de que tudo pode recomeçar como se nada tivesse acontecido. Essas pessoas recriam para o futuro a mesma fantasia de um capitalismo redistribuitivo que propagaram na última década. Creio que a esquerda deve indicar outra perspectiva, baseada numa identidade política própria com nítido perfil anticapitalista. Esta fisionomia supõe a explícita reivindicação de nossas tradições socialistas, anti-imperialistas e revolucionárias.