Rodrigo da Silva Pereira
O famigerado movimento “Escola sem partido” (ESP) tem ocupado pensamentos e ações de diversos educadores pelo país afora. Trata-se de um movimento orquestrado por setores conservadores da sociedade civil que busca “disciplinar” o trabalho docente, sobretudo nas escolas de educação básica pública.
Espraiados pelo movimento conservador que ganhou fôlego após a falência do projeto de conciliação de classes dos governos petistas, o ESP ganha destaque e a simpatia nos setores mais atrasados do Congresso Nacional e dos legislativos estaduais e municipais. Idealizado pelo procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib, o ESP propõe uma verdadeira mordaça aos educadores com o argumento de que a função da escola é somente ensinar, diferente, portanto, daquilo que mandam a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases, que deixam clara a função social da escola e suas finalidades: pleno desenvolvimento da pessoa; formação para cidadania e preparação para o trabalho, permeados pelos princípios da liberdade de aprender e ensinar e da pluralidade das ideias e concepções pedagógicas.
São vários os projetos de lei que tramitam pelas casas legislativas do país, porém, para além dos fundamentos cerceadores do trabalho docente, há no mínimo três elementos que lhes dão certa unicidade: i) são propostos por parlamentares de partidos conservadores; ii) atacam a educação e a escola pública; iii) detêm apoio do empresariado educacional e dos detentores dos meios de produção.
Nesse sentido, o ESP dever ser analisado para além de sua aparência fenomênica via discurso da liberdade de ensinar. É preciso desvelar o que está oculto no projeto, quais são, de fato, suas intencionalidades? Qual a sua essência? Nos ajuda nessa reflexão não isolar o ESP das demais iniciativas que ganharam força no período que se abriu após o golpe de 2016 e, estas, da dinâmica mais geral do processo de reconfiguração do capital internacional e nacional e suas repercussões na educação.
Gramsci nos alertava para o fato de que toda relação de hegemonia é uma relação pedagógica, e essa relação será desenvolvida pelos grupos dominantes na direção do Estado, imputando a este uma condição educadora que intenta obter (falsos) consensos a favor dos interesses de classe à qual está submetido. Nesse processo, as classes dominantes formam seus intelectuais orgânicos para que sejam os caudatários das intencionalidades do capital. Por sua vez, esses intelectuais constroem, difundem e organizam um determinado tipo de sociabilidade que precisa ganhar terreno, sobretudo, na superestrutura, a fim de formar cidadãos de novo tipo que consentem com uma realidade estranhada do seu fazer cotidiano.
Nesses termos, escola e educação são fenômenos essencialmente políticos. Não há neutralidade no ato de ensinar e educar. Todas as teorias de ensino-aprendizagem são permeadas de metodologias e métodos que respondem a determinadas concepções de homem, de sociedade e de mundo. O que há de fato, nesse discurso de suposta neutralidade que empreende o ESP, é o absolutismo, em última instância, a negação do diferente, a intolerância com o diverso.
Localizam-se nesse processo as contrarreformas educacionais empreendidas pelo governo Temer. Não por acaso foram a PEC do Teto dos Gastos e a do Ensino Médio as primeiras iniciativas do governo golpista. Isso porque retirar recursos da educação e da saúde é de interesse do capital em duas direções: a primeira corresponde à disputa e à expropriação do fundo público; a segunda à mercantilização e à privatização, atacando o direito universal à educação pública. Por outro lado, retomar as teses do Capital Humano, via ensino médio, é resgatar o aprofundamento da dualidade estrutural nessa etapa da educação básica, fortalecendo um ensino para ricos e outro para pobres, como bem apontou Andrea Caldas em número anterior desta revista.
As duas iniciativas corroboram aquele processo de formação de cidadãos de novo tipo, devidamente instruídos e treinados para atender às demandas do mercado de trabalho, e às novas exigências do processo de reestruturação produtiva do capital. Coadunam com elas, a “liberdade de ensinar” defenda pelos arautos do ESP que tem a ver com essa sociabilidade capitalista que busca estudantes e professores apaziguados, sem opinião, corpos sem mente, desumanizados, generalizados, expropriados dos determinantes que lhes dão sentido humano.
Nesses termos, a essência da “Escola sem partido” parte da aparente defesa da liberdade de ensinar para percorrer o caminho do pensamento único, da escola de partido único. A “liberdade de ensinar” refere-se, apenas, ao ensino instrumental, comprometido com as determinações do capital, do seu empresariado educacional local e global. Uma educação competente, eficiente e eficaz, segundo os parâmetros privados, meritocráticos, sem função social e coletiva.
Embora ainda não aprovados no Congresso Nacional, os parâmetros da ESP já gozam de ampla aceitação nos setores conservadores, a exemplo da reação aos debates sobre gênero nos planos nacional, estaduais e municipais da educação. Ou ainda no debate sobre o kit anti-homofobia nas escolas, indo além, no sentido do enfraquecimento do princípio da laicidade do Estado e, por conseguinte, de suas instituições, em favor do ensino religioso nas escolas públicas.
Como se não bastassem esses ataques ao caráter público, laico e gratuito da educação e à sua função social, coletiva e solidária, o governo golpista intenta um novo currículo para educação básica pública no qual o slogan das competências de aprendizagem assume centralidade, materializando as diretrizes do ESP. Mesmo que, à primeira vista, essa simbiose esteja velada, a análise mais aprofundada da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) defendida pelo atual Ministério da Educação, caminha para fixar aos educadores conteúdos estáticos que engessarão ainda mais o trabalho docente, impondo aos profissionais do magistério uma cartilha linear, a exemplo do que já acontece em diversos sistemas municipais de ensino que se utilizam de métodos de apostilamento de conteúdos, prática que tem origem nas instituições privadas.
O projeto hegemônico-conservador caminha a passos largos na sociedade brasileira. O golpe acentuou essa marcha e, na educação, esse projeto tem se materializado de maneira mais acelerada do que em outras áreas sociais.
Isso porque estamos lidando com intelectuais orgânicos que reconhecem o papel da educação na formação para a cidadania, com olhar crítico e libertador dos seres humanos. Portanto, faz parte da sociabilidade do capital uma educação desnutrida de sentidos.
Tanto é assim que o governo golpista rompeu com todas as conquistas democráticas mesmo que contraditória do último período, a exemplo do protagonismo da sociedade civil organizada na construção da Conferência Nacional de Educação, na participação no Fórum Nacional de Educação e do monitoramento e implementação do Plano Nacional de Educação. Ação autoritária que levou diversas entidades científicas, sindicais e sociais do movimento social de educação a construírem o Fórum Nacional Popular de Educação e organizarem uma Conferência Nacional Popular de Educação, em paralelo às ações do MEC golpista.
É importante salientar, portanto, que o movimento “Escola sem Partido” não é apenas uma manifestação isolada do conservadorismo que assombra a sociedade brasileira, ele faz parte de um todo muito organizado e que concatena suas ações, ora via representantes na sociedade civil, ora no mundo político.
Por um lado, criam manifestações ideológicas para a construção de (falsos) consensos; por outro, materializam ações que enfraquecem o financiamento público da educação e limitam o trabalho docente.
Se é verdade que todos somos filósofos e que cabe a nós não só interpretar o mundo, mas, decididamente, transformá-lo, precisamos continuar mobilizados para enfrentar essa e outras atrocidades que atentam contra a educação pública, gratuita, democrática, laica e com qualidade socialmente referenciada.