Milton Temer
Revolução das Revoluções. É o título do livro de Jean Ellenstein, publicado pela Editions Sociales francesa, em 1967, celebrando o cinquentenário do outubro épico. E fazia todo sentido naquela conjuntura.
Era o mínimo que se podia dizer da verdadeira façanha bolchevique porque, nunca antes, na História da Humanidade, os oprimidos mergulharam de forma tão profunda, e por tão largo período, na conquista da propriedade dos meios de produção, até então inteiramente controlados pelos opressores.
Nunca foram tão longe na transformação qualitativa das estruturas sociais vigentes, fazendo de um país em seus primeiros passos de industrialização a segunda potência econômica e militar do mundo, no meio século seguinte.
Uma revolução, enfim, que concretizou num só ano, e dessa vez com êxito, aquilo que, a França necessitou de quase um século. Em fevereiro de 17 (no calendário juliano), com a versão russa da queda da Bastilha, em 1789 a derrocada e a substituição do czarismo por um regime democrático-burguês. Era a Revolução Política.
Depois, em 25 de outubro, com a superação desse período burguês pela Comuna de Petrogrado e, depois de uma longa e destruidora guerra civil, veio a União de Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS.
Era a Revolução Social, proletária, versão russa da Comuna de Paris de 1871.
Historiadores liberais ou conservadores tentam minimizar esse episódio histórico, pintando o como um golpe eventual, só possível por conta do desmantelamento do país devido às perdas na Primeira Guerra Mundial.
Sem dúvida, o desdobramento dos fracassos militares do czarismo tem peso qualitativo na conjuntura favorável à ruptura. Mas esse fato não dá a ninguém o direito de esquecer deliberadamente as rupturas provocadas bem antes, a partir da Revolução de 1905, quando o czar Nicolau II foi obrigado a substituir o conselho da corte por uma Duma, espaço político e de Poder Legislativo que nobres dissidentes e uma burguesia industrial, ainda efêmera, impuseram ao absolutismo até então por eles divinizado.
Não se pode esquecer, ainda, que em 1905 nascia também, no contraponto das instituições das classes dominantes, a primeira versão dos conselhos de operários e camponeses, no qual um jovem de 26 anos, Leon Trotski, surgia no proscênio revolucionário, dirigindo o Soviete de Petrogrado, instrumento dirigente do proletariado no processo revolucionário.
Já se apresentava também, naquele levante, a figura que viria a se consolidar como o dirigente máximo da Revolução de 17, um certo Vladimir Ilich Ulyanov. Tratava-se de Lenin, que já havia publicado em 1902 o seu Sto Dilash? (Que fazer?) obra em que descreve o partido revolucionário como sujeito orgânico indispensável para que crises revolucionárias não fossem administradas e recuperadas pelas classes dominantes, como ocorrera em processos referenciais anteriores, especialmente nas revoluções francesas e na alemã. Partido sem o qual, afirmava ele, seria inimaginável que o proletariado saltasse da condição de “classe em si”, nos limites da atividade sindical, para a de “classe para si”, nos horizontes mais amplos que os contidos nas reivindicações salariais. Com isso, elevava o caráter da luta do âmbito estrito dos domínios burgueses para o confronto direto contra a burguesia na disputa do poder.
1905 foi, enfim, uma revolução porque os fatores objetivos que geraram a experiência preliminar não cessaram, nem sequer perderam intensidade, nos anos que se seguiram, a despeito da repressão do regime contra os bolcheviques, jogados num isolamento que foi facilitado, em favor do absolutismo, por conta de um efêmero “milagre” industrial entre 1908 e 1910 do regime contra os bolcheviques, jogados num isolamento que foi facilitado, em favor do absolutismo, por conta de um efêmero “milagre” industrial entre 1908 e 1910.
Pelo contrário. E, simbolicamente, vale até lembrar que uma primeira versão do cruzador Aurora, de 1917, foi mais célebre com o Potemkim de 1905.
Em 1914, aliás, o czarismo só havia se salvado, diante de um novo ascenso do movimento de massas, em razão da entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial e do falacioso sentimento de patriotismo que se impôs até nas hostes de mencheviques e socialistas-revolucionários. Todos os partidos socialistas, com exceções de alguns dirigentes, como Rosa Luxemburgo, estavam se alinhando com suas burguesias nacionais, não só na Rússia como nos demais países envolvidos no confronto. Só um partido se manteve solidamente ancorado na concepção de que se tratava de uma guerra imperialista, na qual os revolucionários deveriam se concentrar em transformá-la em guerra civil interna: os bolcheviques, na Rússia.
A onda patriótica favorável ao absolutismo começa, no entanto, a se esvanecer em 1915, não só por conta da decepção gerada na condução incompetente das questões militares, mas principalmente pelo peso das perdas, jogado nos ombros das classes trabalhadoras, com os burgueses enriquecendo nos negócios gerados na economia de guerra, ao tempo em que as massas populares eram submetidas a intoleráveis racionamentos alimentares.
Em dezembro de 1916, a corte do czar é abalada com o assassinato, por um príncipe do seu entorno, do seu então principal conselheiro, o místico Rasputin, cujo poder se afirmava pela influência direta que exercia sobre a czarina.
Foi um episódio marcante da corrida que se iniciava entre nobres liberais, com vistas ao controle da substituição do czar por uma monarquia constitucional, nos moldes da inglesa. Essa expectativa foi mantida durante todo o ano seguinte por esses mesmos grupos, principalmente como protagonistas do governo estabelecido a partir da Revolução de Fevereiro.
Entre o tudo e o nada
1917.Este foi um ano pródigo em obstáculos e armadilhas para os bolcheviques, por razões que até hoje atravessam discussões das esquerdas em todo o planeta. Uma leitura mecanicista do marxismo dava a mencheviques e socialistas-revolucionários a base teórica para tentar impedir a radicalização do processo.
O argumento era que a Rússia ainda não havia desenvolvido suficientemente sua industrialização, de molde a contar com um proletariado de peso para o salto qualitativo contra o regime capitalista. Defendiam a revolução democrático-burguesa como etapa indispensável para que o proletariado ganhasse peso decisivo.
Fazia sentido a posição moderada, o que tornava sempre difícil o combate dos então isolados e numericamente débeis bolcheviques mais próximos de Lenin.
Para estes, a posição dos adversários no campo da esquerda espancava a realidade concreta, na qual se deveria espelhar uma análise objetiva.
Pelo que ocorria não só nas cidades, mas principalmente no campo e nas próprias Forças Armadas, onde motins se sucediam na contestação do regime em si, o governo provisório, ao qual mencheviques e socialistas-revolucionários davam apoio, não se sustentava e poderia ser caminho para uma restauração monárquica. O proletariado russo podia ser de menor peso proporcional, mas mostrava, juntamente com os camponeses, uma combatividade bem mais intensa do que seus parceiros naturais dos países mais ricos e avançados da Europa Ocidental.
Lenin se colocara como referência teórica já no primeiro semestre. Defendia sem meias palavras: ou bem o salto qualitativo da revolução democrático-burguesa se dava o mais rapidamente possível, ou bem a restauração monárquica, com novas pompas e circunstâncias, seria inevitável. Já contava então com o apoio de Trotski, que se apartara dos mencheviques por desacordo com a acomodação moderada do grupo em relação à participação russa na guerra.
Mas não se encerrava aí o espectro de quizílias contra Lenin. Entre os próprios bolcheviques, ele encontrava dificuldades para defender tal posição. Suas cartas enviadas para o Pravda, órgão oficial do Partido, ainda antes de deixar o exílio, não eram publicadas por Stalin e Kamenev, que controlavam a redação. Somente a primeira foi tornada pública. As demais só vieram a ser conhecidas com Lenin no poder.
Essa atitude restritiva é decisiva para definir o fim do exílio de Lenin e seu retorno à Petrogrado. Esse retorno se dá em abril, quando ele lança as teses hoje célebres, mas pelas quais teve que se bater com convicção. Teses que, por conta da competente campanha elucidativa, na sequência, transformaram os minguados filiados bolcheviques num expressivo partido de massas insurretas. Os fatos da realidade objetiva foram comprovando a correção da análise de Lenin.
Mais atilado que seus companheiros, ele conseguia identificar uma contradição crescente nas entranhas da coalizão formada na Duma entre a burguesia e os partidos de esquerda que optaram por essa aliança. Contradição gerada principalmente pela leitura entre, de um lado, cadetes e outubristas, defendendo a monarquia constitucional, e de outro mencheviques e socialistas-revolucionários, agarrados na legalidade republicana. Tudo num clima pesado, resultante dos fracassos sucessivos nas ofensivas do Exército que se decompunha na guerra.
Embora não tivesse apreço especial pelo campesinato, Lenin não hesitava em encontrar as consignas que minariam a influência quase absoluta que sobre eles exercia o populismo dos socialistas-revolucionários, dando-lhes total apoio nas demandas de paz e terra e nas manifestações contra os latifundiários.
De julho a setembro, o processo entra em intensa aceleração. Sem ter a maioria nos sovietes, Lenin contava com a maioria que construía no apoio às lutas crescentes dos diversos segmentos. Crescia sua influência, principalmente, entre os militares amotinados nos anseios da paz, que nunca seria assinada pelo governo provisório, em conluio com as potências ocidentais.
Kerensky, até então membro do gabinete, chega ao poder na crista dessas contradições. Sua ascensão supostamente representaria uma guinada à esquerda na política da Duma, quando, contraditoriamente, convoca o general Kornilov, czarista convicto, para a chefia do Exército.
Erro crasso, que abre passo a um golpe restaurador. Por conta de uma suposta manobra de contenção dos alemães, Kornilov decide movimentar e concentrar tropas em Petrogrado. Na verdade, não era dos alemães que pretendia proteger a cidade, pois tais invasores começavam a ser bem vistos pela direita pelo que representariam de obstáculo ao acirramento das manifestações populares. Tratava-se, sim, de derrubar o próprio governo Kerenski e reprimir os sovietes.
Mas a resistência em Petrogrado se afirmar e Kornilov termina deposto do comando e preso.
Isso não representou alívio para os bolcheviques. Em setembro, a repressão burguesa se intensificava contra as suas lideranças. Lenin mergulha na clandestinidade, a partir da qual continua a dirigir o partido, não sem ter que vencer com dificuldade os embates internos.
Em 10 de outubro envia carta ao Comitê Central, na qual vai ao extremo do confronto ideológico contra correligionários que insistiam no defensivismo tático. Vence a parada e nomeia Trotski para conduzir o processo insurrecional.
Estava tão correto em sua ousadia, que nem o fato de Kamenev e Zinoviev, batidos na discussão interna, denunciarem o movimento ao tornarem pública a divergência tática, impediu que, no dia 25, as instituições do Estado em Petrogrado fossem tomadas quase sem resistência. Tão pacificamente que permitiu o surgimento da versão popular quanto a ter havido, então, menos feridos na tomada do poder do que durante a filmagem do Oktober, de Eisenstein, em 1927.
Em 2 de novembro, era Moscou que caia.
O que vem depois guerra civil, NEP (Novaya Ekonomiceskaya Politik Nova Política Econômica), stalinismo é matéria para espaço distinto deste artigo limitado ao Ano Vermelho. Artigo que não pode, no entanto, se encerrar sem deixar de registrar questões fundamentais, consequentes desse momento épico.
O papel do partido e do indivíduo na história
Historiadores afirmam, com razão, ter sido fator decisivo na Revolução de Outubro o desempenho pessoal de Lenin na condução do partido. Sem ele, provavelmente haveria no máximo uma primeira edição da fracassada República do Weimar que, na Alemanha, colocou os social-democratas à testa de um governo num período em que foram assassinados Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Para reforçar essa avaliação de Lenin, vem em reforço uma citação do próprio, que José Paulo Netto, em introdução a uma antologia de textos por ele produzidos, destaca:
“Já afirmamos que os operários sequer podiam ter consciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de fora. A história de todos os países comprova que a classe operária, valendo-se exclusivamente de suas próprias forças, só é capaz de elaborar uma consciência ‘trade-unionista’, ou seja, uma convicção de que é preciso reunir-se em sindicatos, lutar contra os patrões, cobrar do governo a promulgação de umas e outras leis necessárias aos operários etc. Já a doutrina do socialismo nasceu das teorias filosóficas, históricas e econômicas formuladas por representantes instruídos das classes proprietárias, por intelectuais (Lenin, 2010: 89) “(…) A social-democracia revolucionária sempre incluiu e continua a incluir na órbita de suas atividades a luta pelas reformas. Mas usa a agitação ‘econômica’ não só para exigir do governo todo tipo de medidas, como também (e em primeiro lugar) para exigir que ele deixe de ser um governo autocrático. Ademais, considera seu dever apresentar ao governo essa exigência não só no terreno da luta econômica, mas também no terreno de todas as manifestações da vida política e social. Numa palavra, como parte de um todo, que subordina a luta pelas reformas à luta pela liberdade e pelo socialismo (Lenin, 2010: 126-127). (…) A consciência política de classe não pode ser levada ao operário senão do exterior, isto é, de fora da luta econômica, de fora da esfera das relações entre operários e patrões (Lenin, 2010: 14).”
Tal reflexão é de 1915, numa avaliação do papel negativo que Lenin apontava na II Internacional social-democrata, por sua sujeição ideológica às burguesias nacionais empenhadas na Primeira Guerra Mundial.
Ou seja, uma confirmação premonitória do que foi seu papel decisivo na Revolução de Outubro, quando se comprovou que as condições objetivas não são suficientes para que um processo revolucionário se concretize. Para tanto, é fundamental que haja o agente revolucionário, com a capacidade subjetiva de aglutinar o potencial de ânsia transformadora das classes oprimidas contra os seus opressores. Nisso, Lenin foi exemplo, sobre o qual Hobsbawm, no seu Era dos Extremos, não faz por menos: “O fato extraordinário de Lenin foi transformar essa extraordinária onda anárquica em poder bolchevique”.
Socialismo num só país
Se a guinada não se consolida nos diversos exemplos que se seguiram em 1918 na Alemanha, na Hungria, na Áustria ou na Polônia não será, no entanto, explicado pela desqualificação de líderes da estatura de Rosa ou Bella Kuhn, para citar apenas estes.
Ao contrário da Rússia, o campesinato desses países se afirmava no campo moderado ou até conservador da sociedade. Porque neles, para além de certa aristocracia operária já ter se formado, fortalecendo o regime capitalista ao invés de negá-lo, a realidade mostrava que não apenas fatores econômicos determinavam os caminhos na luta de classes. Tradições culturais e influências religiosas também disputavam o jogo que Gramsci viria a desenvolver teoricamente nos seus Cadernos do Cárcere, quando trata das relações Estado/sociedade civil.
Se Lenin, Trotski, Kamevev, Zinoviev, Stalin, Dzersjinski, Bukharin, Lunacharski, Kolon tai, Krupskaia e mais a plêiade de dirigentes de uma geração privilegiada entendiam que a Revolução de Outubro deveria ser apenas o motor de arranque da Revolução Mundial que deveria se seguir, o fato de esta última não ter se realizado colocou-lhes a questão concreta do “socialismo em um só país”.
Mas, qual seria a alternativa? Devolver o poder e esperar que novas condições revolucionárias se apresentassem? Nem pensar.
A partir da paz de Brest-Litovski e com a guerra civil dramática que o Exército Vermelho teve que mover contra os russos monarquistas, apoiados com homens, equipamento e armas por Inglaterra, França e Estados Unidos, a única saída era o avanço, a despeito do que houvesse pela frente.
Na situação desesperadora que obrigou o retrocesso com a implementação da NEP, o que estava em jogo era a sobrevivência do projeto revolucionário russo. Perspectiva que Lenin e seus liderados já almejavam com a instalação da III Internacional, em 1919, antes mesmo da vitória sobre inimigos internos e os exércitos que atacaram o país para sufocar a revolução. A solidariedade nas campanhas de defesa externa da URSS passava a ser uma consigna para os comunistas onde estivessem.
A influência histórica da revolução
A União Soviética se decompôs em 1991, com o golpe liderado por Boris Ieltsin e a restauração capitalista no conjunto de nações que compunham a URSS.
Fim ou pausa na dinâmica gerada pela Revolução das Revoluções? Eu aposto na casa da pausa histórica.
Quando faz o balanço dos não poucos esforços posteriores, e em condições quase impossíveis de superar, que transformaram a Rússia atrasada na poderosa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, decisiva na derrota do nazismo hitleriano na Segunda Guerra Mundial, Isaac Deutsher, trotskista de papel passado, em seu Revolução Inacabada, publicado também no clima da comemoração do meio século do regime, é incisivo:
“Outubro de 17 abriu, na história moderna, e para milhões de homens e mulheres, uma era de transformações radicais irremediáveis e sem precedentes. Nenhuma outra revolução conseguiu reverter tantos princípios estabelecidos, nem conseguiu deslanchar um processo de lutas tão violentas, liberando forças tão consideráveis. Portanto, a Revolução Russa ainda não terminou. Ela segue seu curso, podendo ainda nos surpreender por suas viragens bruscas e imprevistas e proporcionar novas perspectivas.”
Por que tal citação? Simples. Porque ela permite tratar de outra complexa dúvida. Como tal experiência pode desabar de forma tão brusca? Como imaginar que uma figura bizarra, vulgar, como o energúmeno Ieltsin, tenha podido desmontar um aparato centralizado, e privatizá-lo, sem que uma sangrenta guerra civil deslanchasse?
A resposta pode ser encontrada em As questões de Outubro, de Daniel Bensaid, em ensaio publicado no blog da Boitempo Editora, quando vai às origens do que talvez tenha sido a falha genética do processo implantado após a gesta revolucionária:
“Se os fatores sociais e as circunstâncias históricas jogam um papel determinante no ascenso poderoso da burocracia stalinista, isto não significa que as ideias e as teorias não tenham nenhuma responsabilidade na sua existência. Particularmente, não há nenhuma dúvida de que a confusão sustentada, desde a tomada do poder, entre o Estado, o partido e a classe operária em nome do definhamento rápido do Estado e do desaparecimento das contra dições no seio do povo, favorece consideravelmente a estatização da sociedade e não a socialização das funções estatais. O aprendizado da democracia é uma questão longa, difícil, que não caminha no mesmo ritmo que os decretos de reforma econômica. Ela toma tempo, energia. A solução fácil consiste, então, em subordinar os órgãos de poder popular, conselhos e sovietes a um tutor esclarecido, o partido. Na prática, ela consiste também em substituir o princípio da eleição e do controle dos responsáveis pela sua nomeação, por iniciativa do partido, desde 1918, em alguns casos. Esta lógica desemboca, então, na supressão do pluralismo político e das liberdades de opinião necessárias à vida democrática, assim como a subordinação sistemática do direito à força (…) A engrenagem é tanto mais implacável quanto a burocracia não procede somente ou principalmente de uma manipulação das altas es – feras. Ela responde também, às vezes, a uma espécie de demanda das bases, a uma necessidade de ordem e de tranquilidade dos cansaços da guerra e da guerra civil, das privações e do desgaste que as controvérsias democráticas, a agitação política, a demanda constante de responsabilidade provocam. Marc Ferro assinalou, em seus livros, de forma pertinente, está terrível dialética.”
Bensaid vai na linha do que Rosa Luxemburgo, apoiadora radical dos bolcheviques, já pré-anunciava no ponto de largada, como ressalva crítica que fazia a eles na questão democrática.
Mas tal falha genética não seria uma prova a mais da superioridade histórica do regime que, mesmo com esses problemas, se revelou capaz de superar obstáculos dramáticos, verdadeiras tragédias, se comparado com as condições favoráveis que ocorriam simultaneamente nos Estados Unidos, a principal das potências capitalistas?
Porque é indiscutível que a URSS chegou ao seu cinquentenário comprovando ser o socialismo um regime suficientemente poderoso para suportar não poucos obstáculos. Longo bloqueio econômico até meados dos anos 30, quando a URSS é enfim reconhecida pelo governo Franklin Roosevelt. Destruição de metade do país, com a morte de 30 mihões entre civis e militares na Segunda Guerra Mundial, enquanto os Estados Unidos mantinham intocadas as suas fronteiras, perdendo não mais que 250 mil combatentes. E, a despeito disso, colocando satélites na estratosfera antes da grande potência capitalista do Ocidente.
Certamente isso é o que estava no cerne do pensamento de Hobsbawm no seu Era dos Extremos publicado em 1994, posterior, portanto, ao desmantelamento da URSS:
“A Revolução de Outubro produziu, de longe, o mais formidável movimento revolucionário organizado na história moderna. Sua expansão global não tem paralelo desde as conquistas do islã em seu primeiro século. Apenas 30 ou 40 anos após a chegada de Lenin à Estação Finlândia, em Petrogrado, um terço da humanidade se achava vivendo sob regimes diretamente derivados dos Dez dias que abalaram o mundo e do modelo organizacional de Lenin, o Partido Comunista”
Por mais frustrante que tenha sido o resultado final, Michael Dobbs jornalista britânico conservador, que viveu entre Varsóvia e Moscou entre 1980 e 1991 em seu Queda do Império Soviético nos informa, criticando como dado da desorganização final algo inimaginável se alguma potência capitalista viesse a sofrer o mesmo tipo de colapso.
Grande parte da crise financeira final da URSS se devia à imensa quantidade de recursos despendidos em empréstimos a fundo perdido feitos pela URSS a partir de sua integração com os movimentos independentistas, anticolonialistas e anti-imperialistas nas suas lutas após a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.
Não é um dado desprezível. Comprova que, com todas as suas mazelas, o regime tinha um legado histórico no quadro da solidariedade internacional.
E, por que pausa de processo? Porque com a barbárie crescente que o regime capitalista implanta em toda a parte, a esperança do socialismo renasce no surgimento de fenômenos importantes como os liderados por Bernie Sanders, Jeremy Corbyn, Melenchon e Pablo Iglesias no Velho Continente.
Falando em socialismo e ganhando multidões para a luta contra o capital e a certeza de que não há futuro para a humanidade se não houver a desconstrução do capitalismo e, a partir dos “tijolos do velho regime”, como afirmava Lenin, a sua superação, na direção de outro mundo Um mundo onde a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade joguem a ameaçadora barbárie predatória do capitalismo na lata do lixo da História. Ou seja, não no “elo fraco”, mas nos países do dito Primeiro Mundo, estará aí mais uma prova de que, adaptados às circunstâncias de cada tempo, a despeito de todos que pretendem enterrá-los, Marx e Engels se mantêm.
Lenin Vladimir Ilich Ulianov 1879-1924: O principal líder do Partido Bolchevique desde a sua criação, com a separação do antigo Partido Operário Social-Democrata Russo. Foi uma figura decisiva na mobilização do movimento socialista internacional contra a Primeira Guerra Mundial e para a aprovação, pelos bolcheviques, da linha política de ruptura com o governo de Kerensky e o desencadeamento da Revolução de Outubro. Depois da revolução ocupou o principal cargo no recém-formado governo. Morreu aos 54 anos, em janeiro de 1924, depois de ter sofrido, em março do ano anterior, um terceiro acidente vascular-cerebral.
Trotski Liev Davidovich Bronstein 1879-1940: Principal líder de massas da revolução e presidente do Soviete de Petrogrado. Aderiu ao Partido Bolchevique em 1917. Organizou o Exército Vermelho na guerra civil. Marginalizado depois da morte de Lênin, foi expulso da URSS e assassinado no México, em 1940, a mando de Stalin.
Stalin Joseph Vissarionovitch Djugashvili: 1878-1953 Assumiu o controle do Partido Bolchevique após a morte de Lenin. Encabeçou o processo de industrialização da URSS e a liderou na II Guerra Mundial. Promoveu expurgos que atingiram a velha guarda bolchevique. Após a sua morte, o partido denunciou seus crimes.
Kamenev Lev Borisovich Kamenev 1883-1936: Membro do núcleo dirigente do Partido Bolchevique, em 1918, se tornou presidente do Soviete de Moscou. Foi um dos dirigentes condenados por sabotagem e executados nos processos de Moscou em 1936. Foi reabilitado pelo governo soviético em 1988.
Alexandra Kollontai Alexandra Kollontai 1872-1952: Oriunda de família aristocrática, no fim do século 19 integra-se ao movimento socialista. Entre 1908 e 1917, vive exilada. Foi a principal figura feminina da revolução e precursora na defesa de teses feministas. Foi embaixadora da URSS na Noruega, no México e na Suécia.
Zinoviev Grigori Evseieviteh Zinoviev 1883-1936: Parceiro de Kamanev, teve trajetória semelhante à dele. Foi dirigente bolchevique por décadas e presidiu a Internacional Comunista de 1919 a 1926. Foi também condenado e executado nos processos de Moscou, em 1936. Foi reabilitado pelo governo da URSS em 1988.
Bukharin Nikolai Ivanovich Bukharin 1888-1938 Integrante do Partido Bolchevique desde 1906, Entre 1926 e 1929 foi presidente da Internacional Comunista. Entre 1924 e 1929 foi redator-chefe do Pravda. Preso em 1937, foi condenado por traição e fuzilado no ano seguinte, sendo reabilitado no governo Gorbachov em 1988.