Marcelo Badaró Mattos
Os sovietes, forma usual no português para os conselhos de trabalhadores que surgiram em meio à Revolução de 1905 na Rússia, foram organizações autônomas criadas pelo proletariado das indústrias. Tiveram papel destacado no processo revolucionário, dirigindo greves gerais e debatendo os projetos políticos da classe trabalhadora.
O fim do impulso revolucionário de 1905 representou também o fim dos sovietes, que permaneceram, entretanto, na memória das lutas da classe trabalhadora, além de terem se constituído numa referência importante para a elaboração estratégica da esquerda socialista. Em 23 de fevereiro de 1917 (no calendário juliano), uma passeata de trabalhadoras em homenagem ao Dia Internacional da Mulher originou uma greve geral, reivindicando o fim da fome e da guerra. Diante da sangrenta repressão e do alastramento da revolta, o regime autocrático do czar, cairia em uma semana. Quando na virada de fevereiro para março constituiu-se um governo provisório, praticamente ao mesmo tempo surge o soviete dos deputados trabalhadores e soldados de Petrogrado. Antes de retomar a história de 1917, voltemos um pouco no tempo para avaliar o impacto que essa forma de organização gerou no pensamento estratégico da liderança bolchevique.
Lenin, os sovietes e a estratégia da revolução
No contexto da repressão sanguinária da autocracia czarista e da disputa política interna à social-democracia Russa, contra os que definiria como “economistas” (pela centralidade que conferiam às lutas econômicas da classe trabalhadora), Lenin escreveu, em 1902, que fazer? 1Uma obra que continua a inspirar o debate sobre a importância fundamental da organização política o partido para a luta revolucionária da classe trabalhadora. Naquele livro, embora afirmasse que “o ‘elemento espontâneo’, no fundo, não é senão a forma embrionária do consciente“, Lenin era categórico em negar a possibilidade de que “espontaneamente” a classe trabalhadora pudesse ir além das reivindicações e da consciência de natureza sindical: “A história de todos os países atesta que, pelas próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários”. O salto dessa consciência sindical para a consciência socialista dependeria de um fator externo à luta sindical: a ação pedagógica da vanguarda socialista organizada em partido político.
Alguns anos depois, diante da revolução de 1905, Lenin se posicionaria contra alguns de seus camaradas bolcheviques, aferrados estaticamente a uma concepção fechada de partido de vanguarda, defendendo a necessidade de ampliação da organização partidária. No texto significativamente intitulado Novas tarefas e novas forças, de 1905, defendeu que tais tarefas seriam: “O alargamento da agitação a novas camadas dos pobres da cidade e do campo, a criação de uma organização mais ampla, flexível e sólida, a preparação da insurreição e o armamento do povo, além do acordo com a democracia revolucionária com estes objetivos.
Citando Que fazer? e explicando o que havia mudado desde então, Lenin argumentou que a revolução tornara possível a uma maioria da classe trabalhadora o acesso a elementos de fundamentação política socialista antes restritos à vanguarda partidária. Do ponto de vista imediatamente organizativo, não caberia manter o partido fechado em torno do reduzido círculo da vanguarda revolucionária profissional dos primeiros anos.
O que explica essa posição de Lenin, que havia formulado a mais conhecida defesa do partido de vanguarda em 1902? Com certeza, a mudança do regime político, como resultado da luta revolucionária. Mas também, o surgimento de uma forma organizativa nova, que não nasceu da iniciativa do partido, mas diretamente da greve geral que impulsionara o movimento revolucionário: os sovietes.
Por isso Lenin flexibilizou a leitura de Que fazer? sobre os limites das organizações surgidas “espontaneamente”. Seu entendimento era de que, em momentos revolucionários como aquele, surgem “organizações à margem dos partidos”, nas quais “não há limites nitidamente assinalados semelhantes aos das organizações europeias”, pois os “sindicatos adquirem caráter político” e a “luta política funde-se com a econômica”. Nessas situações, Lenin advoga que “seria erro afirmar-se não ser admissível, em nenhum caso e em nenhuma circunstância, a participação dos socialistas nas organizações situadas à margem dos partidos”, orientando os bolcheviques a ingressarem nos sovietes e buscarem dirigi-los numa linha revolucionária.
Em 1917 Lenin iria muito mais longe. Nas conhecidas Teses de Abril, após retornar do exílio, defenderia a estratégia da tomada do poder pelo proletariado russo e pela parcela do campesinato a ele aliado, conferindo um papel central aos sovietes. Nas Teses, Lenin assumia a perspectiva de que já estaria em curso, no processo revolucionário iniciado em fevereiro, uma transição entre a “primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia (…), para a sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato”. Suas teses chocavam-se com a posição da maioria de seus camaradas bolcheviques, que até aquele momento convergiam com os mencheviques em torno de um programa para o Governo Provisório centrado na convocação de uma assembleia constituinte, a reforma agrária e a jornada de oito horas e numa postura dúbia em relação à guerra (que seria justificada como uma “guerra defensiva”).
A situação de transição entre a revolução “democrático-burguesa” e a revolução proletária – se caracterizaria, segundo Lenin, pela “dualidade de poderes”, manifestando-se através da existência de dois governos: “O governo principal, autêntico e efetivo da burguesia, o ‘governo provisório’ (…), que tem em suas mãos todos os órgãos de poder, e um governo suplementar, secundário, de ‘controle’, personificado pelo soviete de deputados de operários e soldados de Petrogrado”.
Naquele momento central da revolução, mesmo sabendo que os bolcheviques ainda eram uma minoria em seu interior, Lenin entendeu os sovietes como uma criação revolucionária (iniciada em 1905) decorrente da “iniciativa própria” das massas populares. Por sua natureza de invenção de uma forma democrática de Estado “à maneira” do proletariado, o governo dos sovietes seria o equivalente russo do Estado Comuna que Marx enxergara em Paris, em 1871, como “a forma política por fim descoberta na qual pode ser realizada a emancipação econômica dos trabalhadores”.
Defendendo aquela posição, Lenin valorizou a autonomia da iniciativa popular, entendendo o novo tipo de Estado a que pretendia chegar como uma “nova atividade organizativa do próprio povo”. Nesse processo, o papel dos bolcheviques seria ajudar “o povo a construir sem demora e por toda a parte sovietes de deputados operários e camponeses, a tomar nas suas mãos toda a vida”.
Embora naquele momento (abril de 1917) seu entendimento fosse minoritário entre os bolcheviques e os bolcheviques fossem minoritários no Soviete de Petrogrado, Lenin representava uma posição que já se manifestava entre o setor mais radicalizado da classe trabalhadora, organizado nos comitês de fábrica do distrito industrial de Petrogrado e atuante no soviete.
Os sovietes em 1917
Quando da instalação do Governo Provisório, como decorrência da Revolução de Fevereiro, convocou-se imediatamente a formação do Soviete de Petrogrado, que funcionaria como uma espécie de soviete central de todo o país, ainda que surgissem conselhos por toda parte. A iniciativa foi dos mencheviques, que acreditavam ser essa a única forma de organizar as demandas da classe trabalhadora e dirigir seu apoio ao novo governo. Essa perspectiva se expressou no decreto publicado em 2 de março, no jornal do soviete, que definia o sentido da colaboração entre ele e o governo provisório, afirmando-se que, apesar das vacilações dos partidos burgueses, “seria um grave erro” não participar do governo, pois a radicalização da posição dos delegados do soviete seria vista como um golpe socialista e o temor do “‘fantasma vermelho’, é claro, irá reforçar e intensificar as tendências da burguesia e, dessa forma, ao invés de impulsionar a burguesia para frente, nós a jogaremos de volta à necessidade de implementar a força a restauração da autocracia como a única forma de combater o socialismo.”
Ainda que predominasse essa linha, o caráter em si dos sovietes era subversivo e trazia à tona a questão da dualidade de poderes. Como ficara claro com a Ordem nº 1 do Soviete de Petrogrado, publicada em 1º de março, que determinava a eleição de delegados para o soviete em todas as “companhias, batalhões, regimentos, baterias, esquadrões e serviços anexos (…) e a bordo dos navios” e subordinava as ordens do comando das Forças Armadas russas, em guerra, à aprovação do soviete.
Nos meses seguintes continuou a predominar a linha de apoio ao Governo Provisório e conclamação à manutenção da guerra. Mas, a continuidade do conflito radicalizou a crise e em Petrogrado o prestígio dos bolcheviques cresceu. Em julho, essa radicalização dos trabalhadores já se manifesta na proposta de imediata tomada do poder pelos sovietes. Como na resolução de 3 de julho, da Seção Operária do Soviete de Petrogrado, na qual se afirmava que “em vista da crise do governo, a Seção Operária considera que é necessário insistir que o Congresso dos Sovietes de toda a Rússia dos Delegados Operários, Soldados e Camponeses tome o poder.” Tal resolução visava influenciar o referido Congresso, que fora instalado em fins de junho, com mais de mil delegados, representando 305 sovietes de trabalhadores, soldados e camponeses e outros 53 sovietes regionais, provinciais e distritais. Mas, os bolcheviques era minoria naquele congresso.
No início de julho, manifestações massivas em Petrogrado colocaram em xeque o governo provisório, que teimava em adiar a convocação da Constituinte e as tratativas para a paz. Uma intensa repressão se fez abater sobre esses protestos, atingindo particularmente os bolcheviques. Em agosto, a tentativa de golpe de Kornilov seria sustada pelo Governo Provisório, com o suporte do poder armado dos sovietes. A repressão de julho e a conciliação da liderança do governo provisório com representantes do partido Kadet que haviam apoiado o intento contrarrevolucionário de Kornilov foram, de certa forma, divisores de águas para a radicalização do Soviete de Petrogrado e a conquista de maior apoio por parte dos bolcheviques entre os delegados que nele se reuniam.
Ainda assim, os bolcheviques, Lenin à frente, procuraram conter o ímpeto das lideranças de base pela imediata tomada do poder. Para evitar uma derrota prematura, Lenin entendia que o momento da tomada do poder chegaria quando os bolcheviques fossem a maioria no Soviete de Petrogrado e quando a insurreição estivesse madura em outras cidades. A situação caminhou nessa direção, com a rapidez que caracterizou o processo revolucionário, nos dois meses seguintes, com a ampliação da influência das teses bolcheviques para outros sovietes e localidades, como Moscou. Em 9 de setembro, o Soviete de Petrogrado consagra a maioria dos votos às propostas bolcheviques (519 votos para os bolcheviques, contra 414 para a direção pró-Governo Provisório e 67 abstenções), que a partir de então passam a dirigir efetivamente seus trabalhos e, através do Comitê Militar Revolucionário, organizarão a tomada do poder.
Em 25 de outubro, a ata da reunião de emergência no Soviete de Petrogrado registra que Trotski declarou, em nome do Comitê Militar Revolucionário, “que o Governo Provisório não mais existe (aplausos entusiásticos e gritos de ‘longa vida ao Comitê Militar Revolucionário’)”. A tomada do poder fora possível porque, ao lado do Comitê dirigido por Trotski estavam entre 30 e 40 mil proletários armados, além de guarnições militares inteiras, como a dos marinheiros do Kronstadt.
Na mesma reunião Lenin discursou, afirmando: “Camaradas, a revolução dos operários e camponeses, cuja necessidade nós, bolcheviques, sempre defendemos, foi cumprida (…) Seu significado é, acima de tudo, que nós teremos um governo dos Sovietes, nosso próprio órgão de poder, no qual a burguesia não terá qualquer participação. As massas oprimidas irão elas mesmas criar o poder. O velho aparato do Estado será completamente destruído e um novo aparato administrativo irá se formar a partir das organizações dos sovietes. De agora em diante, começa uma nova fase na História da Rússia e isso, a terceira revolução russa, terminará com a vitória do socialismo.”
Poucos dias depois, o Segundo Congresso dos Sovietes de toda a Rússia, com uma maioria de pelo menos 60% de bolcheviques e apoio de outros grupos, como a ala esquerda dos Socialistas Revolucionários, ratificou a tomada do poder. Não há espaço aqui para discutirmos os rumos tomados pelo processo revolucionário nos anos seguintes, quando o “governo dos sovietes” sucumbiu ao poder da burocracia. Nada, no entanto, nos autorizaria a dizer que esse destino já estava traçado desde antes, pelos rumos dos acontecimentos de 1917. Ao contrário do que os governos ocidentais afirmaram no calor da hora, e os defensores da ordem (inclusive em suas formulações acadêmicas mais sofisticadas) continuaram a afirmar ao longo dos cem anos seguintes, a trajetória dos sovietes em 1917 e o cuidado da liderança bolchevique para legitimar sua estratégia de tomada do poder na conquista da maioria no interior dos órgãos de poder popular demonstram o caráter revolucionário e o potencial transformador daquele processo histórico. Não à toa, continuamos a buscar nele, despidos de ilusões dogmáticas de que a história possa se repetir como numa receita mágica, a inspiração para a revolução socialista que ainda precisamos fazer, cem anos depois.