Ana Cristina Carvalhaes
Por que aqueles acontecimentos de 1917, num país periférico, camponês, recém-livre da servidão e de tradição totalitária, continuam, um século e um profundo retrocesso depois, a reverberar como grito exemplar de libertação para os que sonham e lutam por justiça, solidariedade e igualdade?
Entre as muitas respostas possíveis, ou partes indissociáveis de uma mesma resposta, historiadores e analistas políticos nos relembram, como base, a profundidade e a radicalidade do descontentamento social que deu origem à tomada do poder pelos conselhos (sovietes) de operários e soldados russos e à vitória na encarniçada guerra que se seguiu contra 14 forças beligerantes invasoras. É a chamada “energia revolucionária” dos sujeitos das rupturas, força social sem a qual as mais apaixonantes utopias e programas dos líderes não se concretizam. É possível explicar aquela radicalidade por muitas razões particulares do desenvolvimento russo, mas sempre em articulação com as circunstâncias mundiais, ou pelo menos europeias, de seu tempo. Um tempo de intensa internacionalização das forças produtivas, competição acirrada entre as potências colonizadoras, fortíssima organização de um amadurecido operariado industrial, início da dominância do imperialismo. Tempo de uma primeira grande guerra sangrenta entre as potências do Ocidente.
É esse o panorama em que se enquadra a extrema ousadia e a visão estratégica dos bolcheviques em tomar o poder, sem aliança alguma com adversários de classe, pela primeira vez de forma (por algum tempo vitoriosa) na História. A primeira, derrotada depois de poucos meses, havia sido a Comuna de Paris, em 1871. Um atrevimento num país “atrasado” muito menos industrializado e menos proletário que as “avançadas” França, Inglaterra, Alemanha da época. Portanto, para os parâmetros do marxismo até então, nada indicado para o experimento de uma revolução anticapitalista.
[Essas características do velho Império czarista, aliás, não só motivaram críticas frontais de marxistas da época, como Plekhanov e Kautsky, à política bolchevique, como ressuscitaram, em fins do século XX, uma suposta explicação para a degeneração do regime político soviético: a cogitação de que a tomada do poder de Outubro teria sido “precipitada”. Ao que Daniel Bensaid, respondeu: “Uma revolução ‘mesmo a tempo’, sem riscos nem surpresas, seria um acontecimento sem acontecimento. (…) A revolução é por essência intempestiva e, numa certa medida, sempre prematura. Uma imprudência criadora”.]
Assim, criadora, foi outra “marca registrada” de Outubro: a originalidade do pensamento e da ação dos que foram sua linha de frente. Graças à formação de seus dirigentes, militantes socialistas internacionalistas, forjados nas lutas contra o czarismo e nos debates qualificados do movimento operário e da social-democracia europeus que viviam seu apogeu naquelas primeiras décadas do século passado a Revolução de Outubro de 1917 foi a primeira a se projetar e se realizar conscientemente na expressão do historiador inglês E. H. Carr (1985). Característica que já lhe conferiria “lugar único na História”.
Guerrero, López e Herrera 3 (2017) explicam: “A revolução russa foi a única que preparou suas ferramentas teóricas, seus métodos e instrumentos, seus dirigentes e seu aparato político de maneira consciente e com projeção ao futuro. (…) Revolução e internacionalismo, princípios reitores do socialismo científico desenhado por Marx e Engels no Manifesto Comunista como projeto de uma luta global e uma revolução mundial, instalaram-se na vida política [dos movimentos sociais no planeta, N.R.] e em sua literatura com a vitória bolchevique”. Se a disposição em romper com o Estado e o sistema burgueses já eram “fora de série” e exemplo para os trabalhadores de toda parte, o que dizer da aposta explícita numa revolução mundial? De fato, um elemento está ligado ao outro: a ousadia não teria se dado sem a visão global e a fé no proletariado de outras paragens. Os bolcheviques encaravam a “sua” revolução como mera introdução ao levante dos trabalhadores da Europa e de outros rincões do globo.
Perry Anderson (2005) nota que o que se ergueu a partir de Outubro na Rússia “foi o primeiro e único Estado na História a não incluir referência territorial ou nacional em seu nome ele seria simplesmente a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas [no início República Socialista Federativa Soviética da Rússia], sem designação de lugar e povo. Ou seja, a intenção de seus fundadores foi incondicionalmente internacionalista”. A esta observação se pode somar o detalhe que, de 1917 a 1941, o hino “nacional” da URSS seria uma canção composta para celebrar o levante dos communards de Paris, a Internacional.
Ao cumprir de imediato um dos objetivos fundamentais do processo negociar o fim da carnificina da Primeira Guerra Mundial o governo bolchevique não somente foi fiel à promessa feita à soldadesca camponesa, como colaborou sensivelmente para a aceleração do fim do conflito. Estendeu o reconhecimento do direito das nações a tomar em suas mãos seu próprio destino aos países coloniais e semicoloniais e assim conquistou simpatia e aliados por todo o mundo explorado, em particular no Oriente. Aboliu tratados desiguais com a China. Incorporou esses princípios inéditos na primeira Constituição do país, considerando cidadãos e cidadãs da República não apenas seus habitantes, mas todas/os que ali quisessem residir e trabalhar.
Em manifesto lançado ainda em suas primeiras semanas, o governo dos sovietes mostrava como via a si mesmo e ao seu entorno:
“Ao dirigir esta proposta de paz aos governos e aos povos dos países beligerantes, o governo provisório operário e camponês da Rússia dirige-se também e, sobretudo, aos operários conscientes das três nações mais adiantadas da humanidade e dos três Estados que levam adiate esta guerra: Inglaterra, França e Alemanha.(…) O governo da Rússia considera o maior crime contra a humanidade continuar esta guerra pela partilha, entre as nações fortes e ricas, dos povos fracos conquistados por elas e proclama solenemente sua decisão de assinar sem demora a paz, nas condições indicadas, justas para todas as nações, sem exceção”.
Os bolcheviques foram resultado de tradição e circunstâncias. Beberam do Proletários do mundo, uni-vos do Manifesto do Partido Comunista (1848) e de toda a obra política dos fundadores. Sobre o alicerce da compreensão do caráter supranacional da exploração, o internacionalismo marxiano defende a necessidade de combinar a luta nacional e a internacional, “uma como base para a outra”, como observa John Bellamy Foster: “(…) Marx insistia em que essas lutas nacionais deviam ser organizadas num movimento internacional (…) Ele era um internacionalista não no sentido de advogar por um sistema de relações mundiais cooperativas, mas no sentido mais específico de conceber esse sistema como resultante ou função da interação fraterna entre grandes nações que se organizassem entre elas”
Os bolcheviques haviam se reivindicado militantes da poderosa Segunda Internacional Socialista, fundada por Engels depois do enterro da Primeira Internacional, em 1876. A Segunda, nascida em fins de 1889, tinha como centro o vigoroso Partido Social-Democrata alemão, de Bebel, Kautsky, Clara Zetkin, Rosa de Luxemburgo e Karl Liebknecht. Nessa organização internacional, Anderson percebe pela primeira vez uma forma de internacionalismo diretamente oposta ao tipo dominante de nacionalismo, o chauvinismo da Belle Époque. Os socialdemocratas russos referenciados em Lenin haviam rompido justamente com o chauvinismo que contagiou a maioria do partido alemão e da Segunda Internacional, que apoiaram ou os esforços de guerra de seus governos imperialistas.
Desse modo, é compreensível que, no impulso da vitória na Rússia e em seu entorno, os bolcheviques dedicassem esforços tão grandes quanto os exigidos pela gestão de seu país enorme e destruído pela guerra, a um empreendimento “para o mundo”: a construção da Terceira Internacional, a Internacional Comunista (ou Komintern), fundada em março de 1919. Não foi um intento vanguardista. A façanha bolchevique se apoiava numa onda descomunal de levantes anticapitalistas, que varreu da Finlândia à Bulgária, da Áustria-Hungria otomana à Alemanha, em cuja Baviera surgiu um poder paralelo soviético num ensaio do que seria a grande revolução alemã bem próxima.
Durante os cinco primeiros e álgidos anos do Estado soviético, a Terceira Internacional realizou quatro congressos anuais (1919 a 1922), cujos debates e resoluções são os maiores legados que os revolucionários daquela geração brilhante deixaram à posteridade. Além da magnética atração exercida pela jovem URSS, a Terceira Internacional teve nesse período acertos colossais, como o reconhecimento da “importância histórica dos movimentos de libertação nacional nos territórios coloniais e semicoloniais e o apoio à luta das nações escravizadas contra a opressão imperialista”. (Novak, Frankel e Feldman, 1977). Em três anos, até aproximadamente 1921, criaram-se seções partidos comunistas “em todos os continentes e praticamente em todos os países construíram-se a Internacional Sindical Vermelha e a Internacional da Juventude Comunista”.
Uma combinação trágica de circunstâncias viria a burocratizar o regime nascido da revolução dos sovietes e, com ele, a partir de 1923, também o Komintern. Com o fechamento da onda de revoluções na Europa e em particular com a derrota daquela na qual os bolcheviques mais apostavam a revolução alemã de 1919-1923, a URSS viu-se isolada mundialmente, ao mesmo tempo em que o PCUS e suas cúpulas substituíam a passos largos o que haviam sido os conselhos. Como explica Anderson, “a vitória de Stalin dentro do PCUS, baseada na promessa de que seria possível construir o ‘socialismo num país’, cristalizou uma nova forma de nacionalismo, específica à autocracia em franca construção interna”. O internacionalismo militante dos comunistas, profundo, abnegado, heroico em milhares de casos, passou paulatinamente a se configurar como uma defesa intransigente e acrítica das políticas do Kremlin. Durante a guerra, em 1941, Stalin finalmente extinguiu a Internacional, gesto no qual os historiados veem uma concessão aos governos aliados no segundo grande conflito mundial.
A inexistência, desde então, de uma Internacional massiva dos que combatem o capitalismo é a mais trágica lacuna dos movimentos antissistêmicos de nosso tempo. Essa ausência, no entanto, não impede que sobrevenham ondas de solidariedade internacional, sempre associadas a grandes processos de luta e sublevação e sobreviva, mesmo de forma fragmentada, o internacionalismo militante. Porque, como diz Rousset (2009), o internacionalismo “é um compromisso subjetivo antes de ser uma orientação política”.
O internacionalismo sobreviveu no pós-guerra transformado em “terceiro-mundismo”, “encarnado nos movimentos de libertação nacional e anticoloniais dos anos 1950, de composição social ampla”. Reviveu na luta do Che, nos anos 60, com sua bandeira de “criar um, dois, três Vietnãs”. Entre os anos 90 e os anos primeiros deste século, avançou com a organização da Via Campesina (1993), as marchas europeias contra o desemprego (1996) e o Jubileu Sul (2001). E como projeto mais amplo, com as lutas antiglobalização e os Fóruns Sociais Mundiais em que pese a paralisia destes diante da falta de resposta para qual é o “novo mundo possível” e as tensões em torno do apoio de parte do movimento aos governos ditos “progressistas” da América Latina.
Mais recentemente, o mais eloquente exemplo da necessidade e da possibilidade de articulação internacional das lutas foi o movimento global das mulheres, no último 8 de março, reunindo iniciativas que foram do Leste Europeu aos Estados Unidos, à Argentina e ao Brasil. Mas não nos enganemos, os níveis de associação, coordenação e ação comum internacional, do ponto de vista dos movimentos, ainda são bem frágeis diante da urgência em combater um capitalismo cada vez mais invasivo, depredador, espoliador, devorador de direitos, guerreiro.
A confluência e a aglutinação entre movimentos (e também entre organizações políticas) não cai do céu, tem que ser construída. Temos mais dificuldades do que as gerações de cem anos atrás porque o fracasso dos movimentos emancipatórios do século XX provocou uma ruptura entre as resistências atuais e a tradição do movimento operário daqueles tempos. Mas dificuldade não é impossibilidade. E os tempos globalizados exigem. Dirigentes e militantes do PSOL têm muito o que fazer a respeito, começando por conhecer o legado internacionalista de Outubro.