Daniela Mussi
Uma das primeiras decisões do Governo Provisório estabelecido pela Revolução de Fevereiro de 1917 foi abolição do antigo sistema de inspeção e multa às prostitutas e seus clientes. A medida visava transformar radicalmente a maneira de lidar com a questão da prostituição sob o novo governo, de forma diferente da política czarista, estruturada na lógica da punição às mulheres ou, quando muito, da tolerância à exploração sexual sustentada na dupla moral sexual masculina.
Naquela época a prostituição era uma prática transversal na sociedade russa, sendo que prostitutas de luxo em hotéis, bordéis e cafés de alta classe conviviam com mulheres pobres e desempregadas, que ofereciam seus corpos nas ruas e praças das grandes cidades. Tampouco se restringia a uma faixa etária somente, sendo comum a prostituição de “meninas, quase crianças, com maquiagem carregada, olhar meio bêbado, cigarro dependurado entre os dedos”, conforme relato da época.
Durante os anos da guerra civil que se seguiu à tomada do poder pelos bolcheviques em outubro de 1917 e a instauração da ditadura do proletariado, as prostitutas pareciam ter desaparecido das ruas das cidades soviéticas, enquanto bordéis floresceram nos centros “brancos” defensores do czar como Omsk, Rostov e Vladivostok. Não se pode dizer que prostituição tenha “desaparecido” devido a uma política social direcionada à proteção das mulheres. As razões para tal devem ser encontradas em outras circunstâncias, tais como a falta de dinheiro, a entrada de uma parte das prostitutas no mercado de trabalho, a fuga ou o confisco de bens das pessoas de posses, a nacionalização ou o fechamento de hotéis, cafés e outros lugares onde a prostituição se dava. Com a retirada de seus requisitos meio de troca, compradores, vendedores e camas disponíveis a prostituição entrou em eclipse nestes primeiros anos.
“Quando a revolução bolchevique aconteceu”, escreveu uma prostituta nas páginas do Pravda, “nossos ganhos despencaram; não sei se devido à liberação do casamento ou ao fechamento das ‘esquinas’, não saberia dizer”. Documentos e escritos desse período mostram, contudo, que a prostituição seguiu existindo depois da guerra civil e que passou a ser preocupação consciente de dirigentes e ativistas.
revolucionárias. Em 1921, a importante dirigente bolchevique russa, Alexandra Kollontai, escreveu o artigo A prostituição e as formas de combatê-la, apontando para o fato de que em que este era um tema ainda pouco discutido na Rússia Soviética: “A prostituição continua a existir e ela afeta o sentimento de solidariedade entre trabalhadores e trabalhadoras e este sentimento é a base do comunismo”, escreveu.
Para Kollontai, o fechamento dos bordeis e a aprovação de novas leis que modernizavam temas como divórcio e reconhecimento da paternidade das crianças eram importantes, mas não excluíam a necessidade de “ir fundo nas razões que explicam a prostituição” e sua existência continuada. O mais grave, a seu ver, era o fato de que a prostituição havia sido completamente marginalizada enquanto questão soviética, apesar do reconhecimento público de que era um problema que afetava a sociedade que se construía. Em outras palavras, mesmo na sociedade soviética persistia a hipocrisia no tratamento do tema, e Kollontai atribuía o “silêncio” a respeito em parte à dupla moral burguesa não superada e, em parte, à relutância em reconhecer que esta prática afetava em larga escala a vida e o trabalho coletivo.
“A falta de entusiasmo [para discutir a questão da prostituição] se reflete em nossa legislação”, continuava, que até então não tratava especificamente das causas e dos impactos da prostituição na vida das mulheres. “Quando as leis czaristas foram abolidas, os estatutos relativos à prostituição também o foram, mas nenhuma medida condizente com os valores do trabalho coletivo foi estabelecida no lugar, o que fez com que a política pública soviética a este respeito fosse contraditória e oscilante”, afirmou. Em alguns lugares, as prostitutas seguiam sendo tratadas como caso de polícia; em outros os bordéis operavam abertamente sem nenhuma forma de controle; e havia casos em que prostitutas eram tratadas como criminosas e enviadas para campos de trabalho forçado.
A atitude vaga da política soviética diante de um fenômeno social complexo provocava distorções que afetavam diretamente os princípios legislativos e morais que haviam sido estabelecidos com a revolução. Kollontai, como muitas ativistas e dirigentes de sua época, encarava a prostituição como “um fenômeno estreitamente vinculado à falta de renda [pelas mulheres] e que prospera em épocas dominadas pelo capital e pela propriedade privada”. As prostitutas, para Kollontai, eram “as mulheres que vendem seu corpo por algum benefício material comida decente, roupas e outras vantagens”. No espírito da época, concluía “são mulheres que evitam a necessidade trabalhar oferecendo-se a um homem, temporária ou permanentemente”.
A visão de Kollontai pode parecer “anacrônica” para os dias de hoje, quando o feminismo foi capaz de estruturar uma visão mais abrangente do fenômeno da prostituição, sem reduzi-lo à ideia de “mulheres que não querem trabalhar”. Ao mesmo tempo, é possível dizer que ela estabelece a base para repensar criticamente as instituições familiares particularmente o casamento como mediadas por relações de compra e venda. Em todo caso, é importante considerar que no momento em que Kollontai escreve, era comum o argumento “biológico” a respeito das mulheres que se prostituíam, ou seja, era aceita a ideia de que a prostituta era uma mulher nascida “com marcas da corrupção e da anormalidade sexual”. Kollontai confrontava esta ideia com a observação de que “em tempos de crise e desemprego o número de prostitutas cresce” e que este fenômeno não poderia ser explicado com argumentos biológicos quaisquer. “Por que tantas mulheres se prostituem apenas em anos de fome e desemprego?”, perguntava. Para a revolucionária russa, a prostituição deveria antes de mais nada ser compreendida como uma questão social, intimamente ligada à falta de moradia, à pobreza aguda e à necessidade de muitas mulheres alimentarem crianças (filhos, irmãos etc.).
Em 1921, portanto, ao olhar para o problema da prostituição, Kollontai concluía que, na Rússia revolucionária, “as relações entre os sexos estão sendo transformadas, mas ainda estamos limitados por velhas ideias.” Com este sentimento, evocava o texto recém-aprovado pelo Congresso de Camponesas e Trabalhadoras de toda a Rússia: “Uma mulher da república soviética do trabalho é uma cidadã livre e não pode ou deve ser objeto de compra e venda.” Os termos nos quais o problema era colocado eram o do combate à prostituição como uma forma de “deserção do trabalho”, de salário “não merecido”. A argumentação de Kollontai neste sentido era bastante rígida e, ao mesmo tempo em que expõe as contradições, representa os limites da elaboração e da cultura das mulheres soviéticas no período imediatmente posterior à guerra mundial, à revolução e à guerra civil.
As prostitutas, assim como os soldados que abandonavam o front, eram vistas como “mulheres desertoras” e de “mentalidade política atrasada” e, neste sentido, poderiam em certas circunstâncias serem “forçadas a trabalhar”, afirmava Kollontai, assim como as “donas de casa”. Estas são afirmações surpreendentes para a cultura feminista dos dias de hoje e incômodas para quem quer resgatar a importância e a possível atualidade das ideias das revolucionárias russas para as lutas das mulheres. Em todo caso, Kollontai fala da possibilidade de forçar as mulheres que se negarem a tomar parte na produção ou no cuidado das crianças, “mesmo se estas forem esposas de comissários”. O que ela quer dizer com isso?
Kollontai parte da premissa de que a cultura e os valores burgueses individualistas e mercantis não foram “superados” pela revolução e continuavam a estruturar as relações entre homens e mulheres na Rússia soviética. Esta cultura e estes valores, por sua vez, encontram expressão mais grave entre aqueles que possuíam prestígio e poder, ou seja, nos representantes soviéticos. Pesquisas mais recentes sobre a participação das mulheres na Revolução Russa, como aquela levada a cabo por Richard Stites no fim dos anos 1970, evidenciaram que de fato a presença de mulheres em organismos dirigentes e como representantes políticas era escassa nos primeiros anos após a revolução e cresceu de maneira lenta e sempre oscilante. Mostra, ainda, o esforço permanente do Zhenotdel Departamento de Mulheres criado depois da revolução e no qual Alexandra Kollontai teve um papel importante para promover a inclusão feminina nas instituições políticas da nova sociedade.
Se as mulheres não estão presentes de maneira ativa nos organismos soviéticos de representação e poder e, portanto, não podem falar por si mesmas, como está sociedade seria capaz de lidar de maneira efetiva com uma questão tão fundamentalmente feminina como a prostituição? Kollontai acreditava que, se as mulheres fossem paulatinamente deslocadas para o ambiente produtivo da fábrica e dos serviços, encontrariam formas mais viáveis para lutar pela inclusão progressiva na política soviética. Além disso, via na legislação uma forma de coibir a manutenção de relações “burguesas” entre os dirigentes soviéticos e as mulheres, ou seja, uma forma de prevenir a reprodução dos privilégios destes no regime que se instaurava.
Apesar dos limites de sua argumentação, os receios de Kollontai a respeito dos perigos da “exceção” aos privilégios do “comissário” sobre as mulheres soviéticas tinham fundamento. Ao longo da década de 1920, com o estabelecimento da NEP (Nova Política Econômica) e a conformação progressiva de uma gigantesca burocracia estatal, o reaparecimento sistemático da prostituição foi uma surpresa dolorosa. Por volta de 1921, de acordo com estatísticas soviéticas, existiam 17 mil prostitutas em Petrogrado e dez mil em Moscou. No ano seguinte, este número total passou para 32 mil, ou seja, semelhante ao que existia antes da revolução de 1917. Em sua pesquisa, Stites mostra que, apesar dos bordéis serem proibidos nesta época, lugares para encontros informais começaram a aparecer. Onde estes não estavam disponíveis, as relações aconteciam em dormitórios de mulheres, jardins, florestas.
Os cassinos e hotéis se encheram de estrangeiros e dos “homens de negócios da NEP”, e de “filhas da fome e da revolução que possuíam apenas sua juventude para vender e estavam sedentas demais pela vida para se inserir na lista dos suicidas”, nas palavras de Victor Serge. Quem eram as prostitutas soviéticas neste novo contexto? Estimativas soviéticas mostram que 43% eram de origem camponesa, 14% de origem na classe operária e 42% vinham dos estratos sociais dissolvidos pela revolução (sendo 21% destas vindas da burguesia, 14% da classe comerciária, 7% da classe proprietária de terra). Se, por um lado, as estatísticas da prostituição evidenciam a drástica transformação das relações de classe na Rússia depois de 1917 com ônus evidente para as mulheres das famílias burguesas e latifundiárias explicitam também a situação de fragilidade e exposição das mulheres pobres, especialmente as camponesas, à exploração sexual.
Por um lado, as políticas sociais soviéticas foram capazes de diferenciar-se do espírito de regulação czarista da vida das mulheres, essencialmente policialesco, e neste sentido foram capazes de resguardar certos direitos às prostitutas. A dificuldade em tratar a prostituição e a vida das prostitutas de maneira aberta, específica e sistemática, contudo, acabou por fazer com que boa parte das medidas relativas à exploração sexual não conseguisse sair dos limites da assistência. É importante notar que este era um dos receios de Kollontai, ou seja, de que as mulheres russas seguissem sendo tratadas pelo Estado soviético como inferiores e subalternas. Além disso, em alguns casos, o assistencialismo em relação às prostitutas tinha por consequência o surgimento de uma imagem negativa pelas mulheres que eram acolhidas pelas instituições do governo soviético, que passavam a percebê-las como algo não muito diferente das antigas prisões do czar.
Neste sentido, é de enorme valor a história das prostitutas no contexto da Revolução Russa, assim como é difícil reconstruir individualmente a trajetória destas mulheres devido à invisibilidade característica com que são tratadas. Este valor reside, justamente, nos contrastes que a vida delas revelam. Foi no esforço por lidar com estes contrastes que as revolucionárias russas começaram por individualizar uma dimensão problemática no interior da sociedade nova que construíam. Contudo, não havia para elas elaboração sobre os sujeitos possíveis da luta das mulheres capaz de, em algum nível, conectar as mulheres operárias e camponesas às prostitutas.
Kollontai não discutiu em termos “feministas”, portanto, mas percebeu que a política revolucionária de sua época não dava conta do problema das mulheres em sentido amplo. Em suas ideias, conviveram certo economicismo para lidar com o problema da prostituição e o incômodo com o desprezo a respeito desta questão no interior da Rússia soviética. O incômodo de Kollontai encontraria lugar de reflexão e desenvolvimento muito tempo depois, no interior de uma cultura feminista que ela não conheceu. Uma cultura que acolheu e aceitou a prostituta como uma mulher trabalhadora e, ao fazer isso, permitiu que a luta das revolucionárias russas continuasse a vibrar na história.