Luiz Arnaldo Dias Campos
Para os poetas, como Maiakovski, revolução significava literalmente a possibilidade de virar o mundo de cabeça para baixo.
Sendo assim ele encenou o julgamento de Deus, que acabou condenado e executado por um pelotão de fuzilamento, que levantou os fuzis e atirou para os céus. Estamos em 1918, Petrogrado. Revolução Russa. Em meio à neve e ao tifo, centenas de escritores, poetas, músicos, cineastas, dramaturgos e artistas plásticos se agitam pelas ruas e cafés. Tal como seus antecessores da Revolução Francesa, querem reinventar o mundo. Estão dando partida a um período de extraordinária vitalidade no campo da criação. A Revolução das Artes começou.
A Onda Vermelha
De 1918 à primeira metade da década de 30, a Rússia foi palco de transformações não somente nas esferas política e social, mas igualmente no campo cultural. Foi um parto intenso, que lançou no planeta movimentos estéticos de repercussão mundial, como o futurismo, na prosa e poesia, o construtivismo, na arquitetura e design, o suprematismo na pintura, e o cinema de montagem, na arte cinematográfica. Foi como uma explosão incontrolada levada ao cabo em meio a dificuldades materiais inauditas, superadas pela vontade e o coração. Faltava papel e, por isso, se multiplicavam as leituras públicas de peças e poemas. Não havia dinheiro para fazer cinema, então milhares de cidadãos se alistavam gratuitamente como atores e figurantes dos filmes. Sem tintas, artistas criavam prodígios em preto, branco e vermelho. Um tempo inesquecível onde as palavras arte e revolução se converteram em sinônimos.
Evidentemente a revolução por si mesma não pode reivindicar o crédito de tal façanha. Mas ela forneceu alma e território para as tendências artísticas que já vinham se manifestando contra o academicismo durante a monarquia. Entre os protagonistas estavam artistas democratas, libertários e inclusive bolchevistas, como o cineasta Eisenstein, voluntário vermelho durante a Guerra Civil, e Maiakovski, jovem revolucionário, preso duas vezes por agitação e propaganda, antes de assumir integralmente sua militância poética. Na última estrofe do seu poema A plenos pulmões, dedicado ao Comitê Central do Futuro, escreveu: “Quando perguntarem sobre a minha condição de bolchevique/ao invés do registro partidário/mostrarei os cem tomos/de meus livros militantes”.
Choque de Correntes
Embora profundamente plural, a vaga artística revolucionária tinha determinados princípios e anseios comungados pelos seus principais artífices: a noção da arte como algo cotidiano e corriqueiro, que devia ser libertada das jaulas dos museus e academias, a paixão pela velocidade, a eletricidade, as máquinas, a geometria e o desejo apaixonado de transformar o mundo. Em mais de um destes sentidos, os realizadores russos se aproximavam de artistas de outros países, como o italiano Marinetti. Porém, ao contrário deste último, que acabou por se filiar ao fascismo italiano, rejeitavam a defesa da guerra, como higiene do mundo e a submissão dos fracos pela vontade dos fortes. Para os artistas revolucionários do país dos sovietes, o objetivo final da arte devia ser a libertação dos povos.
Até o ano de o início dos anos 30, os artistas soviéticos ao par da sua produção sustentaram um debate vigoroso, por vezes até sectário, sobre qual corrente das muitas que compunham o campo artístico representava verdadeiramente a arte e a cultura proletária. Esta discussão se deu com maior agudeza e paixão no campo da literatura com escritores e poetas se engalfinhando pelas páginas dos jornais, recitais e ruas, disputando todas as correntes o reconhecimento oficial do Estado soviético. Até a consolidação do stalinismo a polêmica se desenvolveu em liberdade, sem intervenção estatal. Em boa parte, porque o comissário para Instrução Pública (espécie de Ministério de Educação e Cultura), Lunacharsky, teve a sabedoria de manter o governo soviético longe da questão. Lunacharsky, homem sensível, segundo conta John Reed, nos Dez dias que abalaram o mundo, apresentou sua renúncia depois retirada do Comitê Central do Partido Bolchevique, quando soube da notícia falsa de que seus correligionários teriam bombardeado o Kremlin. E chegou mesmo a advertir Maiakovski que o reconhecimento oficial de uma arte proletária poderia se voltar contra os próprios futuristas.
Uma de suas biógrafas registrou um encontro dele com um grupo de professores inconformados porque o governo não demitia o diretor reacionário de um liceu público. Diante da queixa, Lunacharsky teria perguntado: “E porque faríamos isto? Façam vocês mesmo. Realizem uma assembleia, demitam o diretor. O governo revolucionário reconhecerá vossa atitude.”
Lenin igualmente se absteve de tomar partido nas polêmicas que dividiam os artistas, fazendo apenas intervenções pontuais. A mais importante delas foi quando advertiu o grupo Proletkult, defensor do rechaço de toda a produção cultural realizada durante o antigo regime e ressaltou que todo processo revolucionário possui dois pólos: ruptura e continuidade, citando inclusive a admiração de Marx pela obra de Balzac. É conhecido também seu comentário sobre o poema Contra o reunismo de Maiakovski. Após ressalvar não fazer parte do rol de admiradores do poeta, Vladimir Ilitch elogiou os versos de crítica à burocracia.
Trotski, por sua vez, impulsionado por seu voluntarismo não via relevância na discussão sobre a “arte proletária”, ponderando que a ditadura do proletariado na Rússia seria um período transitório de “dezenas de anos, mas não séculos, e ainda mais milênios” devido à inevitável vitória da Revolução Mundial e perguntava: “Pode o proletariado neste lapso de tempo criar uma nova cultura? Tanto mais favoráveis se tornarem as condições, tanto mais o proletariado se dissolverá na comunidade socialista.”
No centro da tormenta, Lunacharsky buscava garantir o patrimônio cultural pré-soviético e proteger os “companheiros de viagem”, como eram chamados os artistas que, embora não sendo explicitamente comunistas, participavam do processo revolucionário. O comissário também era poeta, frequentava os cafés literários, onde declamava seus versos e convivia cotidianamente com os produtores culturais. Amigo de todos ou de quase todos, procurou criar condições para que as mais diferentes vertentes culturais se desenvolvessem. Tarefa cada vez mais complexa à medida que gráficas, teatros, estúdios, galerias e verbas iam sendo estatizados e os espaços e os poucos recursos públicos disputados ferozmente pelas diversas tendências artísticas.
Explosão Criativa
Livres da intervenção estatal os artistas prosseguiam freneticamente com suas polêmicas, que se transformavam em obras de grande variedade e qualidade estética. No teatro, o diretor construtivista Meyerhold se enfrentava com o realismo psicológico do Teatro das Artes de Moscou, dirigido por Stanislavsky, à frente da revista LEF (Frente de Esquerda). Maiakovski, Ossip Brik e outros se batiam contra as obras do grupo Irmão Serapião, encabeçada pelo grande poeta Serguei Iessenin, acusado pelos futuristas de produzir um trabalho nostálgico de um passado camponês. No cinema, Eisenstein rompe com o Proletkult, afirmando que este grupo “apesar de sua intenção vanguardista segue a cartilha da velha tradição”.
O resultado do debate era enriquecedor e se traduzia em experimentos artísticos formidáveis no qual arte e revolução se retroalimentavam. Durante a Guerra Civil, no esforço de mobilização para a luta contra os brancos, trens de cinema percorriam o país, filmando, revelando, montando filmes nos seus vagões para serem exibidos nos povoados mais distantes. Na mesma toada, Tatlin fez o projeto da sede da Internacional Comunista, uma torre de 400 metros de altura, em espiral e giratória, que se inclinaria para os pontos cardeais, demonstrando assim o zelo da Internacional pelos povos dos quatro continentes. Malevitch e Kandinsky proclamavam que o objetivo da arte é organizar a vida, e não a decorar, e decretavam o fim da pintura de cavalete.
Este gigantesco esforço criativo não tardou ganhar o reconhecimento mundial. Em 1925, Eisenstein lança O encouraçado Potemkim, filme que rapidamente alcança sucesso mundial. Reconhecido como o “poeta da revolução”, Maiakovski tem sua obra traduzida para o alemão, o francês e, posteriormente, o inglês. Na arquitetura e no design, o construtivismo de Rodchenko, Tatlin e outros passa a ser uma tendência mundial, influenciando movimentos como o De Styl, de Mondrian e a Banhaus alemã.
Já em 1921, a grande bailarina britânica Isadora Duncan enviava uma carta ao governo soviético pedindo para lecionar balé na Rússia. Lunacharsky telegrafou de volta: “Venha a Moscou. Nós lhe daremos sua escola e mil crianças. Poderá executar sua ideia em grande escala”. Isadora foi e coreografou a Internacional, duas marchas fúnebres em homenagem a Lenin e uma série de danças inspiradas em canções revolucionárias do mundo inteiro, executadas pelo seu balé de jovens proletárias, debaixo do aplauso de plateias que iam desde a capital russa até a Sibéria e a China.
A Reviravolta
A partir da morte de Lenin, em 1924, as transformações no poder soviético, com a consolidação de Stalin, começam a incidir decisivamente na revolução artística em curso. A recém surgida Associação dos Escritores Proletários- RAPP (iniciais em russo), formada em boa parte por egressos do Proletkult e articulada com a nascente burocracia stalinista passa a ocupar postos importantes na crítica e no aparato oficial da cultura. Dessas posições passa a disparar contra a arte considerada “incompreensível para as massas”, atacando toda a vanguarda cultural. Num movimento análogo à concentração de poder no interior do Partido Bolchevique a RAPP promove a adoção de um modelo único de cunho positivista, baseado na literatura e no cinema na exaltação de “heróis proletários”, sem nenhum tipo de mácula e na apologia das realizações do Estado.
Nas artes plásticas, condenam o abstracionismo, considerado “arte decadente” e propugnam um retorno à pintura figurativa e decorativa. Ferindo a dialética, advogam por uma arte maniqueísta, na qual o bem enfrenta e triunfa sobre o mal. A escalada é rápida: em 1925, o Comitê Central se posiciona contra o abstracionismo. Quatro anos depois Lunacharsky, descontente e impotente se demite do Comissariado das Artes, vindo a falecer pouco depois. No ano seguinte, Maiakovski, assediado por dilemas amorosos e fortemente abalado pelas críticas devastadoras ao seu trabalho embora fosse o poeta mais popular da União Soviética, arrastando milhares de pessoas aos seus recitais é chamado de esnobe e produtor de uma obra sem sentido para as massas proletárias e se suicida. Em 1932 é ordenada pelo governo a dissolução de todos os grupos culturais e a unificação forçada dos artistas em uma única entidade de cunho oficial. Em 1934, em resolução proposta por Andrej Zdanov, o estilo realismo socialista, que consolida as tendências manifestadas pela RAPP é adotado pelo Comitê Central do partido soviético, como o padrão oficial das artes no país.
Destinos e Encruzilhadas
Dispersos e muitas vezes sem condições de prosseguirem suas pesquisas artísticas, os protagonistas da vanguarda cultural russa conheceram destinos distintos. Meyerhold foi preso e assassinado na prisão em 1940. Tatlin e Malevitch acabaram retornando à pintura figurativa. Rodchenko, que sobreviveu ao stalinismo, só teve a primeira exposição do seu trabalho fotográfico em 1957, um ano depois de sua morte. Eisenstein, cujo filme Outubro, baseado no livro Dez Dias que Abalaram o Mundo, de John Reed, apesar do sucesso mundial, tinha sido duramente criticado no II Congresso dos Trabalhadores do Cinema Soviético foi o mais bem sucedido, embora tendo trocado seus heróis coletivos marca registrada de A greve, O encouraçado Potemkin e Outubro pelo herói individual exigido pelo realismo socialista, conseguiu criar obras primas como Alexandre Nevsky, em 1938, filme que profetiza a invasão da URSS pela Alemanha e a vitória soviética e Ivan, o terrível, produzido em plena Segunda Guerra Mundial.
Sob a bandeira do realismo socialista, a União Soviética não produziu qualquer movimento artístico significativo. Arte, liberdade e revolução. Cada uma precisa das outras para juntas florescerem.