Rejane Carolina Hoeveler
Quando as burguesias europeias colocam milhões de trabalhadores a se matarem uns aos outros, em 1914, quase todos os partidos socialistas empunham junto a elas a bandeira da “união sagrada” contra o inimigo nacional. Na Alemanha, lar do gigantesco SPD (Partido Social-Democrata Alemão), o partido modelo da Segunda Internacional fundada em 1889, é uma minoria exígua que se posiciona contra a escalada belicosa. No dia 4 de agosto de 1914, com as honrosas exceções de Karl Liebknecht e Otto Ruhle, todos os deputados social-democratas votam a favor dos créditos de guerra no Parlamento alemão. “Desde 4 de agosto”, afirmaria Rosa Luxemburgo, “a social democracia alemã é um cadáver putrefato”. Na mesma torrente social-patriota embarca a grossa parte dos partidos operários europeus; e à velha divisão no movimento socialista entre reformistas e revolucionários corresponde, agora, a divisão entre chauvinistas e internacionalistas.
Ainda em agosto de 1914, Lenin escreve uma proposta ao Comitê Central do Partido Operário Social-Democrata (bolchevique) propondo uma nova Internacional. Intitulado O socialismo e a guerra, o texto afirmava que era preciso desde logo preparar a cisão com os “partidos oportunistas”, isto é, aqueles que capitularam ao belicismo burguês.
No mesmo mês, Leon Trotski publicava, na Suíça, A Internacional e a guerra, brochura escrita “tendo em mente a idéia da nova Internacional, que deve nascer do cataclismo mundial atual”. Se a Segunda Internacional estava condenando os trabalhadores à morte nas trincheiras, era hora de sepultá-la.
Mas em setembro de 1915, em uma conferência de socialistas contrários à guerra realizada no vilarejo de Zimmerwald, na Suíça, ficou claro que a idéia de fundar uma nova Internacional ainda era muito incerta. A maioria dos delegados pôs-se contra a ruptura com a Segunda, e somente o pequeno grupo de Lenin defendeu a fundação imediata de uma nova. Ainda assim, a chamada “Internacional de Zimmerwald”, como ficou conhecida, bem como o “Comitê para a Retomada das Relações Internacionais”, montado na França por um grupo heterogêneo de militantes da esquerda da Segunda, seriam os primeiros passos em direção a uma nova organização mundial dos revolucionários.
Curiosamente, foi dentro dos campos de prisioneiros de guerra na Rússia que se formaram os embriões de diversos futuros partidos comunistas. Através da organização de “seções estrangeiras” do Partido Bolchevique, dezenas de húngaros, sérvios, croatas, tchecoslovacos, búlgaros e turcos aderem às idéias revolucionárias e ao comunismo. Bella Kun, futuro dirigente da fracassada revolução húngara, e Josip Broz, o Tito, futuro dirigente comunista iugoslavo, talvez sejam os nomes mais conhecidos entre eles. A própria guerra burguesa, assim, ajudou a internacionalizar a revolução que conquistaria o poder na Rússia em Outubro de 1917 – vitória que germinaria o “partido mundial da revolução”, 17 meses depois.
As burguesias européias unem-se para derrubar o governo revolucionário e para impedir, a qualquer custo, que a insurreição se alastre. Tem início uma guerra civil na Rússia. A necessidade de defender a revolução soviética contra seus inimigos era tarefa obrigatória dos revolucionários em qualquer lugar do mundo; e os russos, por sua vez, sabiam que a internacionalização da revolução era sua única salvação. A questão da Internacional estava na ordem do dia.
Em dezembro de 1918, decide-se pela convocação de uma conferência socialista internacional para janeiro do ano seguinte. Em 24 de janeiro de 1919, a emissora de rádio do governo soviético anunciava uma convocatória, redigida por Trotski, de “uma nova internacional revolucionária”. Em meio à guerra civil na Rússia e à repressão na Europa, a reunião tem lugar em Petrogrado, transcorrendo entre 2 e 6 de março de 1919.
Dois meses antes, Rosa Luxem burgo e Karl Liebknecht haviam sido assassinados nas sangrentas jornadas de janeiro de Berlim, com a cumplicidade dos chefes social-democratas. Seria uma ausência muito sentida no debate fundacional da nova Internacional, pois, tendo conhecimento das enormes debilidades do recém fundado Partido Comunista Alemão (KPD), Rosa se colocava contrária à fundação de uma nova Internacional tendo como única base larga o partido russo. Porém, a divergência acerca do momento da fundação era secundária diante da total comunhão de pontos de vista nas questões de fundo: a estratégia revolucionária e o pro jeto de sociedade (a democracia dos conselhos).
O caráter improvisado da conferência de 1919 foi tal que esta já havia terminado há uma semana quando os destinatários canadenses recebem o convite de Moscou. A preponderância russa era inquestionável, a representatividade dos delegados, baixíssima, e os poucos partidos comunistas com existência própria, àquela altura, eram frágeis.
De toda forma, estava fundada a Internacional Comunista ou Komintern, em seu acrônimo russo. E a ela se dirigiriam as esperanças de milhões de trabalhadores conforme a vaga revolucionária se aprofundava ao longo de 1919. O poder de atração da revolução dos sovietes foi tal que obrigou diversos setores reformistas a se aproximarem da Internacional Comunista, o que vai se refletir claramente nos debates de seu segundo Congresso, chamado pelo historiador Pierre Broué como “o congresso das grandes esperanças”
Este já se configura de maneira totalmente diferente daquela reunião fundacional de 1919: reunindo 217 delegados de 37 países e 67 organizações, tinha indiscutível representatividade. O material de recepção distribuído aos delegados que chegaram a Moscou no verão de 1920 incluía relatórios nacionais, projetos de resolução, um livro de Trotski contra Kautsky, Terrorismo e Comunismo, e um livro de Lenin: Esquerdismo, doença infantil do comunismo. Preocupado com o crescimento de uma tendência ultra esquerdista em diversos partidos, Lenin utilizava exemplos da história da Revolução Russa para condenar a recusa em disputar os sindicatos reformistas, bastante forte entre comunistas alemães e americanos, e para criticar o abstencionismo eleitoral defendido por diferentes quadros importantes do comunismo internacional, como o italiano Amadeo Bordiga ou a inglesa Sylvia Pankhurst, militante feminista e uma das fundadoras do comunismo na Inglaterra.
A intervenção do jornalista americano John Reed, o grande cronista da revolução russa, constituiu um momento singular no segundo Congresso. Reed dedicou sua fala a uma análise detalhada da situação dos trabalhadores negros nos Estados Unidos. Descreveu o sistema de discriminação conhecido como “Jim Crow”; falou sobre a exclusão dos operários negros da AFL (American Federation of Labour); a história da luta por direitos políticos desde a Guerra Civil; as iniciativas capitalistas de disciplinarização dos trabalhadores negros; e informou sobre as valorosas iniciativas desses trabalhadores negros socialistas, como o jornal Messenger, que, segundo Reed, unia a propaganda socialista com o chamado à consciência racial dos negros e com o chamado a organizar a auto-defesa contra os brutais ataques dos brancos da extrema-direita racista. Ele encerrou sua intervenção afirmando categoricamente que “os comunistas não devem se colocar à margem do movimento negro que reivindica, no momento, sua igualdade política e social, ao mesmo tempo que desenvolve entre os negros, rapidamente, a consciência racial.
Nesse congresso também se afirmar a imprescindibilidade das organizações de juventude e de mulheres, a serem dirigidas por quadros experimentados do movimento comunista e com recursos da Internacional. Em seguida à intervenção de Reed, o delegado americano Louis Fraina falaria sobre a especificidade dos trabalhadores imigrantes nos países centrais, classificando como colonialismo o controle econômico e político exercido pelos Estados Unidos na América Latina.
Mas o debate mais importante sobre a questão nacional e colonial foi trazido pelo delegado indiano M.N. Roy e por Lenin. As teses apresentadas pelo último e emendadas por Roy sublinhavam que os comunistas deviam apoiar os movimentos “nacional-revolucionários” nas nações oprimidas, mas que estas não precisariam passar por uma fase de desenvolvimento capitalista antes que pudessem ter condições de derrubá-lo.
Certamente, a relevância da intervenção de Roy na questão colonial não era proporcional à sua base de representação (o Partido Comunista Indiano só seria fundado meses depois, com sete membros, chegando ao total de 13 no final do ano). Mas no sistema de voz e voto adotado no congresso, não eram os partidos mais numerosos que tinham necessariamente mais peso. Isso, somado à seriedade do tratamento teórico dado ao tema do imperialismo, ajudou a garantir debates de alta qualidade.
Nos primeiros anos da Internacional, não existia o rígido “marxismo-leninismo” pelo qual ficaria conhecida a Komintern. Ao contrário, entre a sua fundação e a morte de Lenin (1924), o marxismo da Terceira Internacional é marcado pela enorme atenção atribuída aos debates teóricos; pelo retorno à leitura de Marx e Engels com vistas à investigação de novos problemas; e por uma multiplicidade de centros de elaboração marxistas. Não era casual que diversas figuras de proa dos grupos dirigentes comunistas fossem teóricas.
Por parte dos dirigentes russos, existia a vontade de compartilhar uma série de métodos, como disciplina organizativa e flexibilidade tática, que foram fundamentais para sua vitória; mas não havia a intenção de prefigurar um modelo abstrato de desenvolvimento histórico da revolução para todos os países. Lenin dizia que sua esperança era que a Rússia deixasse de ser o “modelo” e se tornasse de novo um país “atrasado”, do ponto de vista soviético, comunista.
A preocupação de expulsar os reformistas da nova Internacional, à luz do balanço da derrota da revolução húngara de 1919 (onde uma aliança dos comunistas com os social-democratas constituiu um dos ingredientes para o desastre), foi o motivo central para a aprovação das famosas “21 condições” de admissão para os partidos que desejassem ingressar na Komintern, aprovadas no segundo Congresso.
A aceitação das condições foi, em muitos casos, negociada e, em outros, rejeitada. Ainda assim, a adesão ou a criação de partidos vinculados à Terceira Internacional contou-se às dezenas. A Internacional, por sua autonomia em relação aos partidos e grupos nacionais, conseguia equilibrar conflitos e resolver problemas antigos, como o do sectarismo dos grupos estadunidenses, que nunca conseguiam se juntar.
Entretanto, nem só de acertos viveria a relação da Internacional com suas seções, como demonstrariam as desastrosas intervenções dos emissários do Executivo (principalmente Karl Radek e Bella Kun) nos partidos alemão, francês e italiano. Em diversos episódios, Paul Levi, o ex-advogado de Rosa, e Clara Zetkin, a prestigiada dirigente do movimento de mulheres comunistas, batalharam duramente tanto contra o esquerdismo como contra o chamado “putchismo” (a tentativa de tomar o poder sem estabelecer uma maioria nas instâncias proletárias). E, nesse ínterim, trouxeram à tona uma questão latente: seria o tipo de revolução (e, portanto, de partido e de método), nos países ocidentais democráticos, o mesmo da Rússia atrasada e autocrática?
O fato é que os balanços sobre as intervenções desastradas da Komintern não foram feitos até o fim, culminando na ratificação de Lenin à ignóbil exclusão de Paul Levi da direção do Partido Comunista Alemão, e no cerceamento do debate público sobre o tema. Mas o problema de fundo, conforme constatou o próprio Lenin ainda no final de 1920, era que o período de ascensão revolucionária havia se esgotado. No III Congresso da Internacional, em junho/julho de 1921, o relatório sobre a situação mundial redigido por Trotski e Varga afirmava: “Em 1919, nós dizíamos [sobre a revolução]: ‘É uma questão de meses’. Hoje, nós dizemos: é uma questão de anos’”. Era preciso reunir forças e adotar as táticas compatíveis, como a da frente única de todas as organizações operárias, para lutar por melhores condições de vida.
A Internacional Comunista, cujas raízes remontam à solidariedade entre os trabalhadores do mundo e à luta contra a guerra imperialista, foi parida da primeira revolução proletária vitoriosa com a genuína convicção de que esta não poderia confinar-se aos limites nacionais russos. As vicissitudes da revolução na Rússia, junto com o processo de burocratização que se impôs principalmente a partir da ascensão de Stalin, levaram a Terceira Internacional a ficar cada vez mais sujeita aos ditames das necessidades diplomáticas de uma isolada URSS. A partir da segunda metade dos anos 1920, e concomitantemente com crescentes problemas de democracia interna, a Internacional Comunista seria responsável por políticas desastrosas tanto no Oriente quanto no Ocidente. E acabaria seria extinta numa canetada pragmática em 1943.
Leituras indicadas:
BROUÉ, Pierre. História da Internacional Comunista: a ascensão e a queda (1919-1943). São Paulo: Sundermann, 2007.
AGOSTI, Aldo. “As correntes constitutivas do movimento comunista internacional”; “O mundo da Terceira Internacional: os ‘estados-maiores’”. In HOBSBAWN, Eric (org.) História do Marxismo. Volume 6. São Paulo: Paz e Terra, 1985.