Wagner Moura
Os dois são minha vida no momento. Eu poderia começar dizendo que Marighella adorava cinema e era fã de A batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo. Poderia dizer que foi dentro da sala de projeção do cine Eskye, na Tijuca, que ele, rendido pelo Dops, em maio de 64, levou um tiro no peito e, mesmo ensanguentado, saiu na porrada com vários policiais. Esse episódio fez com que ele escrevesse o clássico por que resisti à prisão? e estará no filme que vou dirigir em novembro sobre seus últimos anos. Poderia também adiantar que esse é o filme mais difícil que vou fazer na vida.
É quase impossível levantar dinheiro, no Brasil pós golpe de 2016, para um filme sobre Carlos Marighella. Empresas se recusam a patrocinar um filme sobre um “terrorista”, dirigido por um “petralha”. A dificuldade maior, no entanto, é meu mesmo. Como contar uma história que faça jus ao sacrifício dos que resistiram à ditadura, à veracidade da história, mas ao mesmo tempo, que funcione como cinema de ficção, de entretenimento? Como fazer um filme atraente que não fique restrito à bolha da esquerda, mas que, ao contrário, leve muita gente ao cinema para conhecer Marighella? Como fazer um filme que respeite a história de quem viveu a resistência à ditadura, mas que também não seja obrigado a retratar com exatidão a vida de cada pessoa que militou na ALN? Como fazer um filme humano sobre um super-herói que não teve tempo para ter medo?
Tomamos de cara uma decisão: com exceção de Marighella, de Carlinhos, seu filho, e de Clara Charf, sua mulher, todos os personagens serão amálgamas de personagens reais, ou personagens puramente inventados. Mesmo os três personagens “reais” do filme viverão situações, ora baseadas em acontecimentos reais, ora absolutamente fictícios. Nosso Marighella será, portanto, uma criação nossa. Uma criação cercada de cuidado, de pesquisa, de respeito, fiel ao espírito nobre que caracterizou Marighella, mas, sim, uma invenção. Faço duas recomendações aos que quiserem ir além do filme de ficção: o livro de Mário Magalhães e o documentário de Isa Ferraz, ambos excelentes.
E por que eu, que não sou nem documentarista nem biógrafo, decidi fazer um filme sobre Marighella? Porque quero ver essa história de resistência ser contada, sobretudo no momento pelo qual passamos. O que faz com que alguém sacrifique tudo, inclusive a vida, por uma ideia, por uma convicção, por um imperativo moral? Quero contar essa história. Quero também dizer, com esse filme, que o Estado que assassina negros e pobres nas favelas, é o mesmo que matava e torturava dissidentes políticos durante a ditadura. Quero dizer que a história geralmente é contada pelos “vencedores”, por isso é fundamental disputar narrativas. Quero dizer que os que lutaram contra a ditadura são vencedores e que o Brasil não seria o mesmo sem a sua resistência. Para falar de Marighella e cinema, eu também posso falar de utopia e de vocação para querer mudar o mundo, inerentes aos dois.
Decidi fazer esse filme sobre Marighella sobretudo porque quero vê-lo no cinema.