Qual modelo de legalização a esquerda organizada deve defender para o Brasil
Pauta defendida quase que exclusivamente por ativistas e militantes de esquerda nas últimas décadas, a legalização da maconha está avançando no mundo todo seguindo os passos do imperialismo, tal como aconteceu com a perseguição a esta mesma planta num passado não tão distante.
Acontece que as mudanças nas leis sobre a Cannabis nos EUA, Canadá ou em outros países acontecem quase que exclusivamente por motivos econômicos e privados, mas com pouco interesse no fim da violência racista da guerra às drogas e seus efeitos na questão da segurança.
O que podemos perceber é que a legalização da Cannabis só passou a ser debatida após o interesse das grandes indústrias farmacêuticas no seu uso medicinal. E do despertar dos bilionários para o aumento no consumo recreativo da planta e sua aceitação na sociedade.
Prova disso é que hoje em dia são essas grandes empresas do ramo dos medicamentos quem detém a produção (monopólio) dos principais produtos à base de Cannabis, da mesma forma que são grandes empresas que comandam os principais cultivos, dispensários e marcas que dominam o mercado legal da maconha recreativa.
Muitas delas já estão até na bolsa de valores. Ou seja: a Cannabis virou uma “commodity”, assim como o café, o açúcar, o cacau, etc. E todos os países estão interessados nela, nem que seja somente para exportar, pois ela pode ser utilizada para fazer muitas coisas, tanto de forma industrial mesmo, como matéria-prima, quanto para uso medicinal.
Mas esse interesse e eventuais mudanças em leis não significam que a guerra acabou, pois a legalização justamente pelos motivos que levam a ela não está beneficiando a todos.
Diante deste cenário pré-legalização, é fundamental que a esquerda organizada brasileira debata qual o tipo de legalização que queremos para o Brasil, a fim de que não sejam cometidos os mesmos erros de outras nações no assunto.
Precisamos responder se queremos uma legalização que atenda aos interesses das grandes empresas e bilionários interessados simplesmente em lucrar com isso, ou uma regulamentação que vise os usuários, as comunidades mais prejudicadas pelo tráfico e que repare os danos causados por anos de criminalização com uma reforma que pense na população, e não simplesmente no dinheiro que isso irá trazer?
A criminalização da maconha e suas consequências
A história já confirmou que a criminalização e proibição da maconha, tanto no Brasil quanto no mundo, foi motivada por motivos racistas que seguem até hoje. Por aqui, a maconha foi proibida e vítima de propagandas mentirosas por ser trazida e consumida inicialmente pelas pessoas escravizadas vindas da África, que já fazem uso da “diamba”, embora o Império Português tenha incentivado o cultivo da maconha industrial por aqui. Mas essa é outra história.
O que precisamos lembrar é que a primeira lei proibindo a maconha no país, publicada no Rio de Janeiro, em 4 de outubro de 1830, já visava criminalizar o consumo feito pelos escravos. Ela previa também que contraventores seriam multados, mas pessoas escravizadas seriam, além de multadas, presas por até três dias.
No resto do mundo não foi diferente. O racismo foi quem guiou o início da guerra às drogas nos EUA e uma perseguição em massa aos usuários, na sua maioria negros. Depois que se cessaram os investimentos na falida lei seca, o Império Americano fez o mundo comprar a ideia da erradicação do consumo da Cannabis, numa tentativa de controle social e racial.
Essa guerra durou até pouco tempo atrás em alguns lugares e segue até hoje por aqui. Mas interesses medicinais, pesquisas e os fortes interesses comerciais começaram a mudar as políticas em relação à planta.
Modelos de legalização: privado x estatal
Primeiramente, é bom explicar que o termo correto, mas pouco utilizado, é regulamentação da maconha, pois existem regras para o cultivo, o consumo, a compra e a venda. Não é um liberou geral como muitas pessoas pensam. E existem diferentes maneiras de se fazer isso, dependendo da política e legislação a serem adotadas e dos resultados que se quer atingir.
Nos EUA, o que prevalece na maioria dos estados é um sistema de capital privado, onde lojas comerciais vendem a Cannabis cultivada por empresas também privadas para os usuários. Essas empresas pagam impostos aos estados em cada negociação, como acontece com qualquer outra transação comercial de qualquer produto.
O grande problema desse tipo de legalização é que ele não é acessível tanto para quem quer atuar nesse mercado, quanto para quem consome. As licenças para abertura dessas lojas (dispensários) e também para cultivos comerciais são altíssimas, o que faz com que esse seja mais um negócio onde só ricos conseguem competir e empreender.
Além disso, a Cannabis que é vendida nessas lojas costuma ser cara e inacessível para usuários com baixo poder aquisitivo, que vão continuar comprando de maneira ilegal. Logo, esse tipo de política não acaba com o tráfico ilegal e a consequente criminalização de quem não consegue fazer parte desse mercado legal.
Por outro lado, temos o modelo de legalização colocado em prática no Uruguai, por um governo de centro-esquerda do ex-presidente José Mujica. Trata-se de uma legislação muito mais democrática para lidar com o tema, mas que também tem suas falhas do ponto de vista do acesso ao mercado e da reparação de danos.
No país vizinho, usuários cadastrados podem comprar 40g de Cannabis por mês nas farmácias. Essa maconha é vendida por um preço relativamente médio (cerca de R$ 45 para algo equivalente a 5g). Essa maconha é cultivada por duas empresas privadas que venceram a licitação do Governo. Ou seja, essas empresas e as farmácias é que lucram, somente.
Os usuários também podem se associar em um clube e retirar sua quantidade de Cannabis diretamente com eles, que cultivam exclusivamente para os sócios. E também podem cultivar até seis plantas no estágio de floração, sem limite para plantas no estágio vegetativo. Esses dois pontos são positivos, pois criam outras formas de acesso.
Porém, a principal reclamação é que não há um mercado legal que envolva os ativistas, cultivadores, especialistas e usuários que desejam trabalhar com a planta no país. Não existe um mercado uruguaio da Cannabis que realmente gere empregos nesse setor, pois até mesmo os cultivos medicinais estão restritos às grandes empresas.
O que está se debatendo agora por lá, é a permissão para que turistas comprem maconha legalmente, o que iria atrair mais visitantes, porém o atual governo (liberal) não sabe ainda quem vai ser autorizado a fazer essa venda.
No que uma legalização brasileira deve pensar
Entendendo esses modelos e suas falhas, o que devemos pensar para uma legalização da maconha no Brasil são três eixos principais: acesso (ao produto e ao mercado), reparação dos danos sociais e fim da guerra aos pobres.
No ponto de vista do acesso, é preciso primeiramente garantir a legalização do autocultivo, que permite que qualquer pessoa possa cultivar sua própria maconha, sem necessidade de intermediários, tanto para consumo recreativo quanto medicinal. Só assim qualquer pessoa que queira vai ter a possibilidade de consumir sem financiar qualquer atividade ilícita para isso.
Outra maneira de solucionar essa questão é fazendo com que chegue a uma maconha barata e acessível em eventuais lojas que possam vir a ser utilizadas como espaço de comércio. Isso pode se tornar possível com uma lógica diferente privatista de cultivo em grande escala, colocada em prática nos EUA e no Uruguai. O fornecimento da maconha para lojas legais pode ser feito de maneira estatal, através de universidades ou parcerias com pequenos agricultores, acompanhada de um preço tabelado e regulamentado.
Da mesma forma, essas lojas não devem ser um privilégio somente de quem tem dinheiro para investir nelas. É preciso fomentar o acesso às comunidades mais prejudicadas pela guerra à maconha ao novo mercado legal, para que se comece uma reparação aos danos causados por essa criminalização. Do contrário, teremos lojas legais em bairros nobres e manteremos as biqueiras nas periferias.
Essa reparação também deve incluir a capacitação e inclusão de pessoas negras e da periferia no novo mercado legal, para que possam ocupar as vagas de empregos e de empreendedorismo que serão abertas com essa nova indústria.
Por fim, mas não menos importante, é preciso entrar no campo judicial e eliminar todas as condenações criminais relacionadas a crimes envolvendo posse, cultivo, e tráfico de maconha, tendo em vista que tais práticas passarão a ser legais. Mas, principalmente, porque grande parte dessas condenações podem ter sido racistas e discriminatórias.
É preciso entender que este trata-se de um tema complexo e que causa grande polêmica na sociedade, justamente por envolver tanto preconceito e desinformação. E que agora envolve também interesses econômicos, enquanto segue rendendo mortes e violência. Por conta disso, uma esquerda organizada precisa debater esse assunto de frente, apresentando soluções que de fato atendam os mais atingidos por essa política.
Vale lembrar ainda que a legalização da maconha pode incluir, além do uso medicinal e recreativo, o uso industrial da planta. É possível fazer praticamente tudo com ela sendo utilizada como matéria-prima e assim esse tipo de cultivo/produção também pode se tornar uma área econômica forte no Brasil, exigindo logo ali um outro debate de como se fazer isso sob um viés popular.
Guilherme Darros é jornalista e militante. Pesquisador sobre cannabis, escreveu TCC sobre ‘mídia e maconha’. Atua na produção de conteúdo para sites de Cannabis, como Growroom.