Funk: Arma de emancipação periférica
A origem do funk é estadunidense, ele nasce, por volta de 1950, da mistura do rhythm.&. blues com música gospel. Desde o princípio, o funk sempre falou explicitamente sobre sexo sem nenhum pudor, contando a realidade de jovens negros de periferias estadunidenses. No final dos anos 70, esse movimento cultural chega ao Brasil e se espalha nas comunidades do Rio de Janeiro, tornando-se popular entre os jovens e adolescentes e os “bailes” – festas geralmente feitas em ruas com equipamentos de sons e carros – começam a se espalhar.
O funk é o lugar da contradição, da mistura do proibido e do liberal, do glamour e das mazelas sociais, do sexo desmedido e do pudor. São ecos que impulsionam o movimento e o torna cada vez mais intrigante. (AMORIM, 2009)
Ainda hoje o funk sofre um processo de marginalização, sendo associado a facções criminosas, acusado de proliferar a cultura do estupro e de converter jovens de boa índole ao “mau caminho” das periferias. A verdade é que o real problema da elite brasileira com o funk é o seu potencial emancipatório para negros favelados. Historicamente, os estilos musicais com origem periférica e preta sofrem um processo de marginalização extrema que perdura até o seu embranquecimento – momento em que o estilo musical é apropriado por uma elite branca e passa a ser “aceito” –, e com o Funk não é diferente. O movimento do funk vai além de um estilo musical. Ele também se torna um estilo de vestuário, linguagem e comportamento, e aqui podemos citar os estilos “cria” e “Mandrake” como exemplos.
Entre 2017 e 2019, popularizaram-se as “respostas” às músicas de funk pesadão – estilo de funk pornográfico muito tocado em bailes – em que mulheres, vale citar, brancas, produziam músicas para rebater o suposto machismo presente no funk produzido por meninos de periferia. Essa atitude é característica da classe média branca “progressista” brasileira, que não entende a estrutura de um movimento como o funk e o ataca sem nenhuma base teórica ou sem propor alguma forma de mudança da realidade dos MC’s. Afinal, se eles cantam sobre sua realidade, não adianta criticar o estilo musical e não mudar a realidade desses jovens. A consequência desse movimento é apenas o fortalecimento do processo de marginalização da cultura periférica com uma moral digna da direita conservadora que tanto criticam. O caráter emancipatório do funk é apagado de diversas formas pela esquerda elitista brasileira, e aqui gostaria de citar como exemplo a MC Drika, uma mulher preta, favelada e lésbica, que é acusada de objetificar a si mesma e outras mulheres em suas músicas ao falar abertamente sobre sexo em suas letras. Esse tipo de crítica se assemelha em diversos aspectos ao discurso da direita conservadora que não consegue lidar com uma mulher falando sem nenhum pudor sobre sua sexualidade. As mesmas mulheres que defendem a liberdade sexual e empoderamento feminino se sentem no direito de atacar uma cantora que coloca em prática a sua sexualidade e se emancipa através de suas músicas. Essa contradição só demonstra que o problema não é o funk, e sim de onde ele vem e quem faz parte do movimento. Vale ressaltar, aqui, que cantoras, também brasileiras, como Luiza Sonza, não são acusadas de se objetificar ao cantarem sobre sua vida sexual; a marginalização do funk reforça a marginalização dos corpos que o compõem.
O funk, na medida em que alcançou destaque inusitado no cenário midiático, foi imediatamente identificado como uma atitude criminosa, uma atitude de gangue, que teve nos arrastões e na “biografia suspeita” dos seus integrantes a “contraprova” que comprovaria esse tipo de acusação.
(HERSCHMANN, p. 51)
Para muitas crianças da periferia, o funk parece uma esperança de manutenção da vida e melhores condições para a família. A ascensão social através da música é vista em diversas favelas brasileiras. A maior parte dos MC’s tem origem periférica e serve de exemplo para as crianças que desejam dar melhores condições de vida para a sua família. A popularização das redes sociais tem aberto caminho para esse processo, já que é possível gravar uma música através de um celular e divulgá-la em aplicativos como o YouTube.
É importante ressaltar que a proposta, aqui, é apenas apresentar a sua forma emancipatória dentro das favelas brasileiras. As problemáticas presentes nesse estilo musical são decorrentes da realidade de jovens de periferia. Atacar as músicas em si não transformará essa realidade. A verdadeira mudança vem de um trabalho de base feito em conjunto com a juventude periférica brasileira. Esse trabalho pode ser realizado de diversas formas, inclusive através do próprio funk. O cantor Camarada Janderson é um exemplo de como a consciência política pode ser espalhada através da música. Compondo sobre a realidade da periferia brasileira e marxismo, Janderson tenta democratizar o acesso à teoria política para a população.
Ao marginalizar o funk, a elite brasileira tenta a todo custo apagar a imagem de uma cultura verdadeiramente periférica, assim como fez com outros estilos musicais como o rap e o samba, e dessa forma tenta colocar a sua cultura como superior, com um pensamento que chega a ser até eugenista, tentando categorizar toda a produção cultural proveniente da favela como algo de segunda categoria, que não é digno de apreciação. Luciana Soares da Silva (2016) diz que:
A perseguição à musicalidade de matriz africana não é um fato novo no Brasil. Mesmo nas infindáveis discussões sobre o nascimento do samba e a sua paternidade, não seria possível desconhecer que a prática de danças (incluindo aqui a capoeira) africanas quando exibidas em determinados espaços (quanto mais públicos, mais 10 combatidos) foram alvos de perseguição antes de ocupar o lugar de maior signo da brasilidade.
(SILVA, p. 319)
Entre 2019 e 2020, iniciou-se um processo de embranquecimento e elitização do movimento funk. Com a popularização do aplicativo TikTok, cada vez mais jovens da classe média brasileira começaram a se apropriar da estética do funk, tentando se vestir de modo parecido com os jovens de periferia e performar uma personalidade de alguém que cresceu na favela. Esse movimento esvazia a cultura do funk e a transforma apenas em um produto de mercado, uma estética “a ser vendida”. E com essa apropriação também surgiram os bailes fechados – festas realizadas em propriedades particulares, imitando os bailes realizados nas favelas – que mesmo contendo funk, bebida e um alto uso de drogas não incomoda a polícia, afinal são apenas jovens se divertindo. Esse fato deixa ainda mais claro que as ações de policiais nos bailes periféricos nunca foram para a manutenção da paz e a contenção do uso de drogas, e sim para o genocídio do povo e da cultura negra periférica. Luciana Soares da Silva (2016) escreve que:
O direito ao baile não é apenas o direito a uma festa. Aqui ele adquire significado que transcende o entretenimento: é o direito de ir e vir no espaço urbano, de expor-se com roupas e tênis próprios para a ocasião e acima de tudo, de fazer uso do tempo, fora do mundo do trabalho, marcado por humilhações cotidianas que começam nas formas de transporte (os trens lotados, as distâncias) as jornadas nem sempre remuneradas.
(SILVA, p. 321)
Os jovens de periferia sempre foram perseguidos por expor a sua cultura e arte. Mas quando jovens brancos começam a se apropriar dos mesmos movimentos, são vistos como “cults” por fazerem parte de uma “subcultura”. Cabe à periferia se apropriar do que é seu e ter orgulho daquilo que produz, de suas músicas, de suas roupas e sua arte. A força provinda dos marginalizados é poderosa e não deve ser apagada, não deve se sujeitar aos caprichos de uma elite intelectual que nunca pisou em uma favela e se sente no direito de definir o que é uma “cultura” válida. Essa forma de espitemicídio cultural pode ser vista em diversos momentos da história brasileira. O sistema tenta de todas as formas apagar a cultura periférica e ao não conseguir fazê-lo a embranquece e elitiza, esvaziando seus conceitos e lutas, transformando-a em uma arte de mercado sem caráter revolucionário. O funk é uma arma de emancipação, não só financeira, mas também cultural e deve ser utilizado como arma para invadir espaços de elite, mas não esvaziado de sua luta e embranquecido. O verdadeiro funk de favela deve ser levado acompanhado de corpos marginalizados, fazendo a sua luta presente em todos os locais.
A juventude periférica deve se armar da sua cultura e de seus movimentos, construir uma autoestima baseada nos seus movimentos e identidades, sem se sujeitar à cultura branca dominante e mostrar para a elite que a favela também produz arte e não precisa da aprovação deles para considerar o funk como cultura. A força da favela é o orgulho de si própria e daquilo que produz. Que através do funk mais corpos periféricos possam se emancipar e levar reconhecimento até onde vivem, que os jovens tenham orgulho de dizer que são favelados e funkeiros sem sentir medo.
Na medida em que o funkeiro foi o termo eleito pela mídia e setores conservadores da sociedade para designar estes jovens ameaçadores, com uma conotação claramente pejorativa, a identidade foi assumida com orgulho, já que é própria das subculturas delinquentes a polaridade negativa de suas ações, ou seja, assumir os valores da sociedade, mas com o sinal invertido, de maneira que o que é visto como repulsivo pela sociedade passa a ser motivo de status para o membro da subcultura. (CYMROT, 2012, p. 173).
A cultura negra periférica resiste mesmo com todos os esforços para o seu apagamento. A música e a arte seguem libertando os jovens do tráfico e lhe dando armas para lutar contra o sistema que os oprime de todas as formas possíveis. A luta continua e a arte resiste!
Referências
AMORIM, Márcia Fonseca de. O discurso da mulher no funk brasileiro de cunho erótico: uma proposta de análise do universo sexual feminino. Dispovivem em: < http://www.clam.org.br/bibliotecadigital/uploads/publicacoes/1455_1175_AmorimMarciaFonsecade.pdf > – Campinas, SP: [s.n.], 200
CYMROT, Danilo. Ascensão e declínio dos bailes de corredor: o aspecto lúdico da violência e a seletividade da repressão policial. Disponivem em: < https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/12364 >. Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 4, n. 2, p. 169-179, 2012.
HERSCHMANN, M. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
SILVA, Luciane Soares. Baile Funk, Missão Civilizatória e UPP: Cultura e Segurança Pública na Cidade do Rio de Janeiro. Disponível em.: Brasiliana: Journal for Brazilian Studies. Vol. 4, n.2, 2016.
TROTTA, Felipe. O FUNK NO BRASIL CONTEPORANÊO: uma música que incomoda. Disponível em: < https://www.jstor.org/stable/44985919 > Latin American Research Review Vol. 51, No. 4, 2016.
VIANA, Luciana. O Funk no Brasil: música desintermediada na cibercultura.
Disponível em: https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/sonora/article/view/641 Revista Sonora, 2016.
Thalita Alves Dias é graduanda em Licenciatura em Ciências Humanas, educadora popular e política na rede emancipa