Danilo Horta
Introdução
O trabalho é, sem sombra de dúvidas, um dos elementos fundamentais para a sobrevivência de grande parcela da população brasileira, e para quase todos os trabalhadores e proletários do mundo. Muito por conta de sua centralidade, a precarização do trabalho e a existência de trabalhos precários constituem dois dos principais problemas sociais no Brasil. Apesar de economias localizadas na periferia do capitalismo concentrarem, historicamente, trabalhos precarizados, é com as transformações apresentadas no sistema capitalista e com a ascensão do neoliberalismo, a partir da década de 1970, que observamos uma crescente exploração das forças de trabalho, assim como uma crescente precarização da vida dos trabalhadores no Brasil. Para compreendermos os desafios enfrentados pela classe trabalhadora brasileira na atualidade, especialmente sob os gigantescos ataques neoliberais impostos não somente por Bolsonaro e Guedes, mas também por elites políticas e financeiras do Brasil, faz-se necessário, antes de tudo, analisarmos algumas transformações que ocorrem no sistema capitalista e que acabam por elevar os desafios impostos à classe trabalhadora.
Trabalho, financeirização e neoliberalismo: uma retrospectiva histórico-econômica dos desafios impostos à classe trabalhadora
Harvey (2008) e Paulani (2009) compreendem que, na década de 1970, o capitalismo sofre importantes transformações que foram responsáveis por fazer com que a esfera financeira ganhasse crescente importância sobre as dinâmicas econômicas e sociais observadas em todo o mundo. O ganho crescente de importância da esfera financeira seria responsável por aumentar o poder dos capitalistas financeiros, que passariam a impor suas vontades e necessidades a toda sociedade, de modo a transformar também a forma pela qual a produção se desenvolve em nível mundial.
As transformações que ocorrem na esfera produtiva, causadas pelas imposições e pressões oriundas dos capitalistas financeiros globais, impactam diretamente o trabalho e a classe trabalhadora. Isso ocorre pois, na década de 1970, o toyotismo passa a ser determinante para a organização da produção industrial em nível global; significa dizer que as empresas passam a organizar sua produção a partir de 3 pilares: 1º) buscando adequar a oferta à demanda, de modo que a produção passa a ser organizada para atender uma demanda já existente, não se produzindo em excesso e evitando custos com estoques; 2º) passa-se a buscar reduzir todos os custos possíveis no processo produtivo, especialmente os custos variáveis (custo com força de trabalho), o que faz com que as empresas passem a buscar aumentar o número de máquinas e equipamentos nos processos produtivos ao invés de elevar o número de trabalhadores empregados na produção (Marx chama isso de aumento da composição orgânica do capital); e 3º) passa-se a exigir trabalhadores cada vez mais qualificados e exige-se trabalhadores cada vez mais polivalentes (responsáveis por cumprir mais funções em seus trabalhos), com o objetivo de reduzir o número de trabalhadores necessários nos processos produtivos (PINTO, 2012; HARVEY; 2008; PAULANI, 2009). Tais transformações foram responsáveis por gestar mundos do trabalho em que se observam crescentes níveis de desemprego e crescentes níveis de trabalhadores empurrados ao setor informal (ou a bicos; “rolos” ou trabalhos intermitentes); crescentes níveis de intensificação da exploração do trabalho e o surgimento de novas formas de trabalho precário (tal como é o caso da uberização -ou dos trabalhos por aplicativos).
Ao mesmo tempo em que observamos transformações nas dinâmicas econômicas e sociais em todo o mundo, com mudanças na forma de organizar a produção, responsáveis por impor diversos desafios a uma classe trabalhadora submetida a condições crescentemente adversas, ganha força uma ideologia/programa econômico responsável por auxiliar os capitalistas em suas ambições e sede por lucros: o neoliberalismo. O neoliberalismo pode ser entendido enquanto um programa econômico que busca alterar as funções básicas do Estado a fim de assegurar maior lucratividade para capitalistas, especialmente os financeiros (a defesa de um “Estado mínimo” constitui, na realidade, um ataque às funções sociais do Estado, que visam assegurar a trabalhadores e às massas seus direitos conquistados e qualidades básicas de vida). Conclamado e explicado a partir dos pontos expressos no denominado “Consenso de Washington”, o programa econômico neoliberal defende diversos pontos tais como privatizações de empresas públicas; diminuição dos gastos do Estado (especialmente com programas sociais) para assegurar a capacidade de pagar dívidas financeiras; aumento da flexibilidade do trabalho e desregulamentação da legislação trabalhista (entenda-se liberdade e legalidade para precarizar, ainda mais, o trabalho e a vida dos trabalhadores); etc. (DARDOT; LAVAL, 2015). Além de ser um programa econômico, o neoliberalismo constitui uma ideologia individualista, que visa transferir aos indivíduos e trabalhadores a exclusiva responsabilidade por seu sucesso (ou fracasso) no trabalho e por suas condições de vida, sem contar aspectos econômicos e sociais estruturais que são determinantes destas.
Se tais dinâmicas surgem na década de 1970, seus efeitos aumentam com o passar do tempo, sendo que, no século XXI, são enormes os desafios enfrentados pela classe trabalhadora em sua luta por melhores condições de vida e trabalho e por sua emancipação. Entender estes aspectos estruturais é de suma importância pois é a partir deles que podemos ter em mente os perversos impactos das políticas praticadas no e pelo governo Bolsonaro.
Bolsonarismo, neoliberalismo e elites econômicas contra o trabalho e a vida dos trabalhadores
Se existem tendências no capitalismo, oriundas das transformações observadas na década de 1970 e pelo surgimento do neoliberalismo, tais tendências passam a se intensificar quando contam com auxílio dos dirigentes do Estado e/ou não encontram grande resistência político-social na sociedade.
O bolsonarismo, ideologia de extrema-direita que aglutina os mais diversos tipos de ideias e ideais reacionários ao neoliberalismo (como não se lembrar da frase “conservador nos consumos, liberal na economia”?), ao tomar posse do aparelho estatal brasileiro, passou a adotar diversas ações que visavam atender as demandas das elites políticas e financeiras nacionais e internacionais e também aos interesses de ruralistas e do agronegócio em detrimento dos direitos sociais historicamente conquistados no Brasil e da qualidade de vida dos trabalhadores e do povo brasileiro (REIS; 2020).
É bem verdade que as políticas neoliberais vêm sendo aplicadas desde o golpe de 2016, de modo que observamos a imposição de leis como a reforma trabalhista (Lei 13467/2017) e o teto de gastos públicos (imposto por meio da Emenda Constitucional nº 95). Mas é inegável que com a ascensão de Bolsonaro e de Guedes ao poder, no atual governo, observamos uma série de privatizações; a crescente ameaça aos direitos conquistados por servidores públicos; a crescente precarização do trabalho e dos trabalhadores (que ocorre, por exemplo, com a tentativa de aplicar a carteira de trabalho verde amarela, além de permitir crescentes níveis de exploração de trabalhos intermitentes e auxiliar diretamente a expansão de trabalhos informais). Contando com apoio de grande parcela da elite política e econômica do país, os projetos político-econômicos de Bolsonaro e Paulo Guedes têm encontrado espaço para se reproduzir, especialmente porque estes deturpam ou abusam de instituições públicas no país, seja a partir da crescente polarização ou a partir da utilização de meios imorais (para não dizer ilegais), como é o caso do uso do orçamento secreto.
Tais fatores se traduzem em níveis crescentes de problemas sociais e econômicos no Brasil, e impõem maiores desafios à classe trabalhadora, que passa a conviver com níveis crescentes de precarização do trabalho, desemprego e falta de oportunidades. De acordo com a Organização Mundial do Trabalho, em 2020, cerca de 13,9% dos trabalhadores brasileiros estavam desempregados e 23% dos trabalhadores formais ocupados eram subutilizados (empregos ocupados por trabalhadores que possuem mais capacitações do que a função que cumprem e que recebem, portanto, salários mais baixos). Além disso, em 2020, 47,1% da população economicamente ativa ocupada no país, cerca de 45 milhões de pessoas, estava trabalhando no setor informal e realizando bicos ou trabalhos desprotegidos, fator este que se traduz não apenas em piores salários e desproteção trabalhista, mas também em uma degradação da saúde da maioria destes trabalhadores (INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION, 2022). Esse número pode ser superior ao relatado, não somente no ano de 2020 (data em que há dados disponíveis), mas na atualidade, tendo em vista a falta de oportunidades e os desafios à classe trabalhadora que a condução econômica em favor das elites realizada no governo Bolsonaro impõe. Em grande medida, é por conta disto que observamos milhões de pessoas jogadas à miséria e à fome em nosso país, fato este ignorado por bolsonaristas e liberais como Guedes. Nesse sentido, resta perguntar: o que fazer?
A organização da classe trabalhadora, para além das suas tradicionais formas de luta, deve ocorrer com o objetivo de eleger candidatos (tanto no Executivo quanto no Legislativo) comprometidos com as reivindicações dos trabalhadores, que visem, não somente, resistir à precarização do trabalho e à degradação da vida dos trabalhadores, mas que busquem lutar contra tendências existentes no sistema capitalista contemporâneo. E isto só pode ser feito opondo-se e lutando-se contra os projetos neoliberais (em seus mais diversos sentidos) e contra ideias/ideais de extrema-direita, que em nosso país são seguidos por Bolsonaro e bolsonaristas.
Referências
DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2015.
HARVEY, David. Condição Pós- Moderna: Uma pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. 17a edição. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. Informal Economy. 2022. Disponível em: <https://ilostat.ilo.org/topics/informality/>. Acesso em: 22 de set.. de 2022.
_________. Unemployment and Labour Underutilization. 2022. Disponível em: <https://ilostat.ilo.org/topics/unemployment-and-labour-underutilization/>. Acesso em: 20 de set. de 2022.
PAULANI, Leda Maria. A crise do regime de acumulação com dominância da valorização financeira e a situação do Brasil. Estudos Avançados [online]. 2009, v. 23, n. 66, pp. 25-39. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0103-40142009000200003>. Acesso em: 20 de set. de 2022.
PINTO, Geraldo Augusto. O Toyotismo e a mercantilização do trabalho na indústria automotiva do Brasil. Caderno CRH [online]. 2012, v. 25, n. 66, pp. 535-552. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0103-49792012000300010>. Acesso em: 20 de set. de 2022.
REIS, Daniel Aarão. Notas para a compreensão do bolsonarismo. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 1-11, jan./abr. 2020. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/3670 . Acesso em 5 de set. de 2022.
Danilo Horta é graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Uberlândia, pesquisador do grupo de Estudos em Capitalismo Contemporâneo da mesma universidade, tendo desenvolvido diversos artigos sobre trabalho e uberização.