Luiz Gonzaga Belluzzo
A Revista Socialismo e Liberdade me oferece um espaço em suas páginas. Solicitou que eu me disponha a tecer considerações a respeito do Teto de Gastos e seus efeitos sobre as políticas públicas e os direitos sociais no Brasil.
Em 16 de setembro de 2016, nas páginas de outra resistente, CartaCapital, arriscamos, Gabriel Galípolo e este escriba que ora vos fala, um pequeno texto sobre a então PEC 241, a Proposta de Emenda à Constituição que instituiu o Novo Regime Fiscal, popularmente conhecido como “teto de gastos”.
O “novo regime fiscal” fixou um limite à despesa primária dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para cada exercício e por 20 anos. O limite é equivalente à despesa primária realizada no ano imediatamente anterior corrigida pela inflação (calculada pelo IPCA).
Naquela oportunidade alertamos: “A imposição de um limite linear e genérico às despesas primárias pode deteriorar ainda mais a qualidade do gasto público. Historicamente, as despesas com atividades-meio e custeio apresentam tendência mais autônoma de crescimento. Por exclusão, os investimentos assumem o papel de despesas discricionárias. Os investimentos, já baixos e insuficientes, podem ser comprimidos ainda mais com a imposição de um limite genérico”.
Em carta enviada ao jornal Financial Times, economistas ingleses capitaneados por Robert Skidelsky, o biógrafo de John Maynard Keynes, fizeram um apelo ao Office for Budget Responsibility: “Nosso apelo é simples. Poderia a OBR discutir economia, a economia e a política econômica necessárias, e abandonar sua obsessão com o problema contábil de equilibrar orçamentos que raramente foram equilibrados nos últimos 326 anos?”.
O debate econômico aparenta uma oposição entre aqueles que desejam limitar e controlar o gasto público, ainda que isso implique comprometer políticas públicas, e os que priorizam ampliar a rede de proteção social do Estado, sem compromisso com o controle dos gastos e da dívida pública.
O cidadão de carne e osso fica cindido entre a percepção de um excesso de Estado na hora de pagar tributos e o sentimento de desamparo na carência dos serviços públicos essenciais. A contradição aponta para a verdadeira questão: superar o debate de mais ou menos Estado e avançar para a análise de quem devemos cobrar impostos e a quem deve se destinar os recursos públicos.
Mais da metade de tudo o que o governo arrecada vem da tributação de bens e serviços, que incide de forma igual sobre desiguais. Isso significa que, independentemente de sua renda, o cidadão paga o mesmo imposto sobre aquele bem ou serviço consumido, o que proporcionalmente onera mais os que têm menos.
A busca desesperada por segurança e estabilidade encontra refrigério no equilíbrio dos orçamentos públicos. O debate brasileiro sobre o teto de gastos é um exemplo da produção da “realidade” pela linguagem dos mercados. É o truque formidável para garantir a estabilidade de um sistema econômico inerentemente instável.
Na visão dos catastrofistas, o risco fiscal está associado a uma trajetória “insustentável” da dívida pública. Insustentável, porque essa vileza vai mortificar os mais jovens e os que ainda não vieram à luz, com o aumento da carga de impostos ou, na pior das hipóteses, com um calote devastador na riqueza financeira que frequenta os balanços de bancos, fundos, gestoras de ativos e seus clientes do dinheirão e do dinheirinho. Ecoa a pergunta: quem vai pagar a dívida?
Em sua trajetória secular, o capitalismo abriu espaço para o surgimento e desenvolvimento de instituições encarregadas de administrar a moeda e os estoques direitos – títulos de dívida e ações – que nascem de seu incessante movimento de criação e apropriação do valor.
No afã de se apropriar da riqueza, as criaturas do mercado estão submetidas à soberania monetária do Estado. O Estado é o senhor da moeda, mas os bancos, sob a supervisão e o controle do Banco Central, são incumbidos de atender à demanda de crédito das gentes privadas. Esse sistema complexo, em sua evolução, engendrou essa forma de criar dinheiro para dar início ao jogo do mercado. Os bancos apresentam-se como os agentes particulares do senhor da riqueza universal. Universal, porque a forma inescapável que deve denominar e mediar todas as negociações, transações e, sobretudo, marcar o valor da riqueza registrada nos balanços.
Os títulos de riqueza são emitidos primariamente pelas instituições financeiras bancárias e não bancárias e negociados pelas mesmas senhoras em mercados ditos secundários, em que se formam os preços e as taxas de remuneração dos papéis. Não só as mercadorias têm de receber o carimbo monetário, mas também a situação patrimonial – devedora ou credora das empresas, bancos e demais instituições – deve estar registrada nos balanços. Os agentes privados do senhor da moeda estão permanentemente obrigados a manejar os riscos de crédito e de liquidez que afetam seu patrimônio líquido, a relação crucial entre ativos e passivos.
Os estudos sobre as relações entre crescimento da dívida privada e da dívida pública ao longo dos ciclos de expansão-contração das economias capitalistas mostram o que deveria ser óbvio, mesmo para um principiante nas coisas da economia monetária: nas expansões, o otimismo faz prevalecer o crescimento do endividamento privado, nas contrações eleva-se o endividamento público. Quando se acentuam as desconfianças dos mercados, a tigrada corre para os títulos públicos, avaliados como ativos seguros de última instância.
Em seu livro mais recente, In Defense of Public Debt, Barry Eichengreen recorre a Adam Smith para lembrar que ele estava ciente dos aspectos positivos da dívida pública. Smith reconheceu que os governos também tomam emprestado para construir estradas, canais e pontes. Esses investimentos podem aumentar a extensão do mercado a ponto de gerar receitas suficientes para o Estado pagar seus credores. Além disso, Smith entendeu que os títulos da dívida do governo poderiam ser revendidos no mercado secundário para outros investidores, garantindo que eles permanecessem em mãos privadas. “A segurança que [o governo] concede ao credor original é transferível para qualquer outro credor”, e, [apoiado] na confiança universal da justiça do Estado, o credor geralmente vende no mercado por mais do que foi originalmente pago por ele.”
A transferência de títulos da dívida pública, dos quais Smith falou, por sua vez, conferiu outras vantagens. Comerciantes e fabricantes poderiam buscar investimentos produtivos quando estes se apresentassem, apesar de terem emprestado anteriormente ao Estado. Os poupadores, buscando um repositório seguro para seus fundos, poderiam adquirir essa segurança sob a forma de títulos da dívida pública . Não apenas da poupança e do investimento adicionais, mas da dívida pública resultariam também o aprofundamento e o desenvolvimento dos mercados financeiros. Esta visão positiva é subestimada, talvez porque é menos sensacional do que os avisos apocalípticos.
O antropólogo Jack Mosse escreveu em seu recentíssimo livro Pound and Fury: “Há implicações que decorrem da visão da economia como um ‘pote de dinheiro’. Essa visão, diz Mosse, “deforma as estruturas institucionais que moldam o funcionamento da sociedade; demoniza ou elogia indivíduos e grupos que são vistos como pagando ou tirando grana do pote nacional. É também uma visão que limita a imaginação política e econômica, vinculando-nos à ideia de que estamos sempre restritos pela quantidade de dinheiro no pote, e que devemos estar sempre procurando ‘equilibrar o orçamento’. Além disso, não concorda com a realidade de como funciona nossa economia. O primeiro ponto a fazer é que os governos, assim como os bancos privados, criam dinheiro do nada. A ideia de que simplesmente não há dinheiro suficiente no pote não faz sentido.” É um mito.
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Luiz Gonzaga Belluzzo é economista, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-presidente da Sociedade Esportiva Palmeiras