David Broder é escritor e tradutor. Morando atualmente em Roma, é editor da revista Jacobin Europa e escreve regularmente sobre política italiana para publicações como a Internazionale. No Brasil, é autor de “Primeiro eles tomaram Roma: como a extrema direita conquistou a Itália após a operação Mãos Limpas”, lançado pela editora Autonomia Literária. Historiador do comunismo francês e italiano, Broder está atualmente escrevendo um livro sobre a crise da democracia italiana no período pós-Guerra Fria. Nesta entrevista para Pedro Charbel, assessor internacional e de direitos humanos da Liderança do PSOL na Câmara dos Deputados, o pesquisador analisa a extrema-direita italiana e apresenta aspectos sobre o crescimento do fascimo no mundo, passando por EUA, Brasil, Hungria, França e também sobrevoando detalhes das suas próprias obras.
Pedro Charbel – O partido pós-facista Fratelli d’Italia (Irmãos da Itália) passou de 4%, em 2018, a 26% dos votos na eleição deste ano, levando Giorgia Meloni a se tornar primeira ministra da Itália em uma coalizão com o Forza Italia (Força Itália), partido de Berlusconi, e o Lega (Liga) de Salvini. O que explica o crescimento tão rápido e expressivo do Irmãos da Itália? Quão diferente este partido é do Força Itália e do Liga do Norte e de que maneira o governo de Melloni está acomodando todos eles?
David Broder – Há duas coisas a se considerar em relação à ascensão repentina do Irmãos da Itália. A primeira é que o governo passado, liderado por Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, foi considerado um governo de unidade nacional, que reuniu de tudo: da centro-esquerda, os Democratas, à direita dura, a Liga de Matteo Salvini. O partido de Giorgia Meloni, o Irmãos da Itália, era o único partido que não estava no governo e desfrutou da habilidade de se mostrar como única oposição, criticar o governo de diversas maneiras contraditórias e basicamente se alimentar do apoio daqueles insatisfeitos com o governo. Em todas as eleições italianas nas últimas três décadas, o governo da situação perdeu as eleições, e não foi diferente neste caso. Então acredito que vimos, particularmente, a partir das evidências que temos, que os eleitores da Liga e do partido de Silvio Berlusconi, o Força Itália, também de direita, basicamente desertaram para o Irmãos da Itália, o partido de Meloni. E essa é a principal razão desse crescimento repentino: a maioria desses eleitores votou na Liga três ou quatro anos antes. Isso me leva à segunda explicação sobre sua força, que é o fato de que o voto total na direita não cresceu, e tem basicamente o mesmo nível em termos percentuais desde os anos 1990. A real mudança, o real avanço repentino de um partido pós-facista aconteceu naquele momento, no primeiro governo Berlusconi em 1994, que foi o primeiro a incluir o partido conhecido naquele momento como Alleanza Nazionale (Aliança Nacional), o antecessor do Irmãos da Itália. Este é um partido de tradição fascista, cuja história remonta ao fascismo da era Mussolini, que já nos anos 1990 estava no governo pela primeira vez e, basicamente, ao longo dos últimos trinta anos vimos ser totalmente normalizado.
Agora, quão diferente é o Irmãos da Itália desses outros partidos que têm estado no poder recentemente? Frequentemente, quando partidos como o Movimento 5 Stelle (Movimento 5 Estrelas) ou a Liga entraram no governo ou pareciam prestes a fazê-lo, havia muita excitação na mídia internacional classificando-os como “partidos populistas que vão desmembrar a União Europeia” e coisas do tipo – e esses partidos não fizeram isso, e foi errado esperar que o fizessem. Novamente, o Irmãos da Itália não está buscando explodir o lugar da Itália na UE ou coisa do tipo. O que esse partido realmente quer é defender o lugar da Itália na ordem internacional e demonstrar-se um aliado dos EUA contra a Rússia e a China, enquanto ao mesmo tempo desenvolve uma intensa guerra contra seus oponentes domésticos: seja as pessoas de esquerda, que chama de comunistas, sejam as pessoas imigrantes, dentro de ideias variadas de que existe uma “trama globalista” para substituir italianos brancos por mulçumanos, africanos, e coisas desse tipo. Então eu acho que não têm uma posição econômica radical que vai colocar a Itália contra a União Europeia e os EUA, nada disso é provável de modo algum, mas certamente veremos, e já vemos, uma intensificação de uma política nacionalista, racista, obcecada pela família e por aí vai. E é importante dizer que se trata de uma política muito dura contra pequenos proprietários e o Estado de bem-estar social.
PC – Poderia-se esperar que uma vez no poder Meloni tentaria pelo menos parecer moderada, inclusive para não ficar isolada na Europa, mas temos visto ações bem agressivas e racistas contra a imigração – ela até negou a entrada de barcos de ONGs que resgatam refugiados, causando até um incidente internacional com a França -, contra festas nas ruas, e até contra a ciência, como no caso da recontratação de funcionários não vacinados para o sistema de saúde. Conhecemos bem esse tipo de política no caso do Brasil, mas como esta agenda reacionária opera em linha com os interesses do grande capital na Itália? De que modo está coordenada com a extrema direita internacionalmente?
DB – Frequentemente, jornalistas e cientistas políticos questionam se partidos como o Irmãos da Itália estão se tornando moderados ou mainstream. E o que eu fico pensando é com o que a direita mainstream se parece hoje. No caso da Itália, é comum dizerem que a esquerda vê o Irmãos da Itália como “extremista” e que tenta associá-lo ao fascismo e seu passado, mas no fim das contas Giorgia Meloni é convidada para falar em eventos como o CPAC (Conservative Political Action Conference) nos EUA, ou lidera o partido europeu chamado Europeus Conservadores, um partido que também inclui outros de extrema direita, como o Vox na Espanha e assim por diante. Eu acho que as barreiras entre os chamados partidos conservadores “normais”, como os Republicanos nos EUA, ou o Partido Conservador no Reino Unido, e aqueles com passado colaboracionista ou fascista se colapsaram. O fato de o Irmãos da Itália virem de uma tradição fascista basicamente não o deslegitima mais na direita internacional, assim como tampouco o fato de que ele se engaje em teorias da conspiração sobre substituição étnica ou vacinas de Covid, etc. O que vemos em vez disso é que o radicalismo do seu discurso e do seu programa é confinado a certas áreas políticas. Então, como disse antes, não em relação a coisas como política exterior, ou questionamentos ao seu lugar no Euro, mas sim nesse tipo de questões de guerra cultural.
É preciso enfatizar que guerra cultural não deve ser considerada como um tipo de eufemismo para racismo e sexualidade, e assim por diante. Guerra cultural também é sobre questões econômicas. Um bom exemplo é o fato de que Meloni quer se livrar do auxílio às pessoas que estão em busca de emprego, o qual foi criado em 2019. Trata-se de um pagamento mensal às pessoas que não conseguem achar trabalho, introduzido pelo Movimento 5 Estrelas quando estava no governo. O Irmãos da Itália prometeu, antes da eleição, se livrar disso, e agora está levando essa promessa adiante. Meloni disse em sua live no Facebook recentemente que “trabalho pode levar você a qualquer lugar, enquanto esse auxílio te deixa deitado no sofá”. Então existe essa ideia promovida por intelectuais e pela mídia de que benefícios de bem-estar social encorajam a preguiça, que pessoas pobres estão se aproveitando do sistema, que a razão pela qual a Itália está enfrentando dificuldades econômicas é porque não há uma “cultura do trabalho”. Também vemos coisas do gênero no caso do ministro de Educação falando do potencial das escolas em basicamente preparar trabalhadores, que, desde a educação primária, as crianças mais jovens já devem ser preparadas em uma cultura de trabalho duro, disciplina… Ele falou do valor da “humilhação social” no preparo de pessoas para serem cidadãos modelos.
Então, o que de fato vemos na extrema direita no poder é quase uma ideia vitoriana de austeridade e trabalho duro, cortando o bem-estar social, se opondo a coisas como salário mínimo e outras. Esse tipo de ideias reacionárias é obviamente perfeitamente compatível com os interesses das partes mais ricas da sociedade italiana. E é claro que em geral é verdade que grandes porções da classe dominante italiana e da classe média alta votariam em partidos mais liberais que o Irmãos da Itália, mas não vejo nada no programa do Irmãos da Itália que seja de algum modo incompatível com os interesses do capitalismo italiano ou nada do tipo. É um partido que, além de seu chauvinismo e racismo, tem o livre mercado e ideias econômicas com certo toque nacional, que é aberto sobre suas intenções de se livrar do estado de bem-estar existente.
PC – Você disse em uma entrevista que a guerra na Ucrânia permitiu que Meloni se normalizasse, no sentido de que, condenando duramente a Rússia e não tecendo críticas à OTAN, ela garantiu um assento à mesa que em outro contexto talvez não tivesse. Você poderia explicar mais essa análise e de que maneira esse processo está coordenado com governos como o da Hungria e da Polônia, e também com grupos de extrema direita que ainda não estão no poder, como no caso do Vox, que você mencionou, ou o partido de Le Pen na França? Como esses grupos estão se organizando ao redor da Ucrânia e como a extrema direita está reformulando sua coordenação internacional nesse contexto?
DB – Na extrema direita europeia sempre houve partidos com relações muito mais próximas com a Rússia, o caso mais óbvio é o da Liga, liderado por Salvini, que abertamente fez uma aliança com o Rússia Unida, o principal partido pró-Putin no Duma, e é apontado por muitos como receptor de verbas deste parceiro na Rússia. Também se olharmos para Le Pen na França, que fez vários comentários efusivos e positivos sobre a Rússia de Putin, tendo-a como uma espécie de modelo civilizacional, uma espécie de Estado cristão e conservador, o qual também enfrenta a hegemonia estadunidense. Há outras forças na extremadireita europeia que não fizeram isso. Eu acho que, particularmente em 2021, Mateusz Morawiecki, o primeiro ministro da Polônia, tentou criar uma espécie de aliança da extremadireita de toda a Europa, incluindo pessoas como Salvini e Le Pen, mas também Meloni e outras. E a questão da Rússia foi um grande problema. Foi um grande problema na política doméstica da Polônia e impediu que essa aliança acontecesse e aí a guerra fez isso ser ainda mais difícil. Então a guerra também causou certa divisão entre as partes da extremadireita europeia que olhavam para a Hungria, o governo de Erdogan em específico, o qual basicamente é o mais pró-Rússia ou menos pró-Ucrânia na União Europeia; e aqueles que, em vez disso, são mais próximos do governo polonês, do partido Lei e Justiça, o qual está no grupo de Meloni no Parlamento Europeu. Assim, mesmo que em geral o argumento liberal contra a extrema direita europeia seja basicamente associá-la à Rússia, à influência russa, o partido de Meloni, o Irmãos da Itália, não tem muito dessa tradição, na verdade, diferentemente do partido de Salvini, a Liga, ou o francês Reagrupamento Nacional. É possível encontrar exemplos de Meloni dizendo coisas positivas sobre Putin no passado, mas não é o mesmo tipo de colaboração prática, muito pouca evidência de financiamento ou apoio real para o partido dela, de modo que as tentativas de desgastá-la com isso não funcionaram.
Há uma conferência de negócios na Itália antes da eleição chamada Cernobbio, uma espécie de versão italiana do Fórum Econômico Mundial de Davos. Lá, Meloni disse que, para ter credibilidade internacional, a Itália tinha que apoiar a Ucrânia, mas isso não faria muita diferença no campo de batalha. O que ela diz é verdade, mas existe algo em relação ao partido dela também: para o Irmãos da Itália, apoiar a Ucrânia era necessário para que fossem vistos como um partido legítimo de governo, com boas relações com outros governos europeus e com Washington. No entanto, a Itália não conta muito na política internacional, e o apoio militar e econômico da Itália para a Ucrânia é muito menos importante do que o de países como Reino Unido ou França, mesmo que suas economias tenham tamanhos semelhantes. Então, acredito que no mundo da União Europeia e da aliança dos EUA foi simbolicamente importante que o Irmãos da Itália tomasse a posição que tomou, que é de total comprometimento a apoiar a Ucrânia, mesmo que na realidade isso não tenha custado muito. Uma posição relativamente fácil de tomar. Uma das ironias é que no caminho para a eleição, quando havia cobertura de imprensa crítica sobre Meloni e as raízes fascistas do seu partido, o foco era menos ela e seu partido e mais o fato dela ter Salvini e a Liga como aliados, não se podendo confiar que que apoiariam a Ucrânia. A questão de se você está de fato ou não do lado da Ucrânia substituiu a questão do fascismo versus anti-facismo em certos discursos liberais mainstream em relação a se partidos são ou não extremistas.
PC – No seu livro “Primeiro eles tomaram Roma: como a extrema direita conquistou a Itália após a operação Mãos Limpas”, publicado pela Autonomia Literária, você demonstra como a extrema direita na Itália se beneficiou do contexto gerado pela Operação Mãos Limpas nos anos 1990. Isso antecipa um cenário que nós iríamos conhecer muito bem em outros lugares, especialmente no Brasil – o próprio Sérgio Moro elogiou esta operação e disse publicamente que a considerava uma inspiração. Você poderia explicar como essa atmosfera anti-sistema foi gerada e como ainda permanece viva? Que lições podemos aprender para lidar com o crescente lawfare que opera ao redor do mundo, especialmente na América Latina, abrindo caminhos para a extrema direita?
DB – Eu costumo dizer que a Itália é um tipo de previsão, ou oferece uma perspectiva num processo que está acontecendo em todo o mundo. O que aconteceu na Itália no começo dos anos 1990 concretiza e reúne muitas das mudanças políticas gerais que vemos na maioria das democracias ocidentais. Isso porque temos ao mesmo tempo os julgamentos de corrupção da Operação Mãos Limpas – que destroem os partidos políticos existentes, todos eles, a Democracia Cristã, os Socialistas, e o partido Comunista já fora dissolvido no fim de 1991 – e, junto a isso, no mesmo momento político, a criação da União Europeia e a Itália entrando no caminho para se unir à moeda comum. Nesse momento, há muito desse triunfalismo neoliberal, o fim da Guerra Fria, o fim das grandes ideologias. Então temos basicamente juízes, tecnocratas, economistas e presidentes de bancos centrais tomando o campo político, enquanto há o colapso daquilo que anteriormente governou a política, partidos de massa, organizações democráticas, etc. Neste momento inicial, quando esses juízes estavam se livrando de políticos corruptos, questionando-os na televisão, havia um grande otimismo – talvez difícil de ser lembrado hoje – de que esse tipo de espírito judicializador iria quebrar as velhas burocracias, modernizar a Itália, tirá-la de sua condição estagnada e levá-la ao futuro. O Euro também tinha o propósito de fazer esse papel : as questões de economia política seriam decididas basicamente por banqueiros europeus, idealmente alemães, que saberiam mais e fariam da Itália um país “normal” como a Alemanha. Todas essas receitas produziram, grosso modo, efeitos desastrosos. Mesmo no nível de se livrar da corrupção não funcionaram, porque basicamente substituíram partidos de massa democráticos por um campo político desertado, no qual aqueles que já tinham mais poder foram capazes de conquistar poder por meios eleitorais. O melhor exemplo disso é, evidentemente, Silvio Berlusconi, que, mesmo sem um partido e sem apoiadores reais, pôde utilizar sua posse privada de mídia para conquistar as eleições em 1994 e basicamente se tornar o líder hegemônico por praticamente as duas décadas seguintes.
Assim, ainda que a promessa inicial da Operação Mãos Limpas fosse se livrar das velhas burocracias partidárias e assim por diante, e objetivasse fazer as instituições mais transparentes e democráticas, etc., o que vimos, em vez disso, foi que as instituições ficaram menos responsivas porque não há organizações coletivas, partidos, ou batalha de programas políticos que poderiam gerar uma competição democrática saudável. No lugar disso, falando de modo muito resumido, o que vimos foram cidadãos italianos ainda menos capazes de controlar o que acontece politicamente, menos capazes de se organizar e se mobilizar por ideias alternativas de mudança social, e assim por diante. Isso também teve como efeito que menos italianos participem da democracia: na última eleição, em setembro, tivemos apenas 68% de participação dos votantes, enquanto nos anos 1970 e 1980, essa taxa era de 90%.
Eu não conheço o Brasil muito bem, passei apenas algumas semanas aí recentemente e não estudei o país a fundo, mas fazendo uma comparação grosseira, acho que o que é interessante no contraste entre o que ocorreu na Itália nos anos 1990 e o que ocorreu nos anos 2010 no Brasil é que no caso brasileiro, com os limites de Lula e Dilma, mesmo com os aspectos morais, o golpe e tudo isso, ainda se tem um movimento de massa organizado, há grandes partidos, organizações sociais. Houve resistência na época e temos a vitória eleitoral recente – houve uma espécie de luta de volta. No caso italiano, em vez disso, os líderes do que fora o Partido Comunista, os líderes da esquerda, foram, na verdade, os mais entusiastas apoiadores dessa tomada liberal e tecnocrata da política. Eles desmobilizaram por completo o seu próprio lado e a esquerda destruiu a si mesma. Obviamente o Brasil é muito mais desigual que a Itália, há muito mais conflito social, mas também há muito mais potencial nesta situação. No caso da Itália, a ideia de mudança política ou de se organizar para conquistar qualquer coisa é muito limitada, então a luta fica muito mais limitada a essas questões de identidade.