Fascismo e tecnocracia: sua combinação determina a situação de emergência democrática que o secretário do Partido Democrata (Pd), Enrico Letta, denuncia, embora tenha contribuído a criá-la; e que o líder do Movimento 5 Estrelas (M5S) nega, porque é o seu produto. Concretamente, a emergência é encarnada por esses elementos: Meloni Primeira-Ministra, dois pós-fascistas como presidentes da Câmara e do Senado, um representante da burguesia produtiva no Ministério da Economia, um técnico pós-fascista como Ministro do Interior, a ocupação militar das potências culturais do país – TV, escola, universidade.
Certamente, como salta aos olhos, a menos que se esteja de má fé, o fascismo hoje não se apresenta marchando a “passos de tartaruga”. As linguagens, as estratégias, os meios de se comunicar mudaram. Contudo, o fundo, o núcleo do fascismo estava – e ainda está – aqui. Hoje, há a possibilidade de institucionalizar-se, de trazer a agressão racista e patriarcal a um nível superior. Veremos até que ponto as alianças internacionais, a União Europeia e a Presidência da República conseguirão limitar e conter os danos.
Por enquanto, o Presidente Sergio Mattarella tem mantido um perfil discreto, enquanto a União Europeia já interveio contra o sequestro de imigrantes no Mediterrâneo. Em qualquer caso, para interpretar o comportamento do Irmãos de Itália [FdI – o partido de Meloni que ganhou as eleições, NDT], o modelo do governo é o da Polônia, e não o da Hungria. Ou seja, um governo de extrema direita, dentro da Aliança Atlântica, que, no entanto, mantém uma distância maior de cruzar a linha vermelha; diferentemente de Orbán, que, ao invés disso, a atravessa em várias ocasiões. Veremos até que ponto Meloni conseguirá manter a aliança com Orbán.
Deve-se considerar também que Meloni não foi votada como herdeira do fascismo, mas “apenas” como uma pragmática extremista de direita – interessante, para os eleitores, constatar o modo como o foram igualmente outros líderes nos últimos anos, e não necessariamente de extrema direita, de acordo com a lógica do mercado político nas pós-democracias nacionais. A isto se soma o racismo institucional, refletindo resíduos que nunca deixaram o corpo social, bem como novas formas de discursos e práticas discriminatórias levadas adiante também pela centro-esquerda. A normalização do racismo e da agressão nacionalista precede o governo Meloni.
O governo Meloni provavelmente não será simplesmente como um governo Draghi mais racista. Vai se parecer mais ao primeiro governo de Giuseppe Conte com a Liga e o M5S. Só que pior. Será mais eficaz devido à cobertura dada por alguns técnicos que selecionou – cuja retórica é diferente da dos ministros do governo Conte 1 –, aos meios liberais que a normalizam e aos partidos centristas que a legitimam. Uma oposição à altura do fascismo vindouro não pode partir de uma nova coalizão que tenha em Conte o novo “líder dos progressistas”, seu pivô – embora a presença do M5S seja necessária. A fim de derrubar o governo Meloni o quanto antes, para que ele não tenha tempo de fazer nada ou quase nada – por exemplo, contra o projeto de autonomia em favor das regiões ricas do norte produtivo da Itália –, seria necessária uma ampla revolta nas ruas, uma revolta que dialogue com aqueles que se sentam nos lugares de representação. Em parte, já está começando. Alternativamente, se, devido a tensões internas dentro da coalizão de extrema direita, o governo Meloni cair – ainda assim um parlamento hegemonizado pelas mesmas forças permaneceria – provavelmente haveria mais um governo técnico que adiaria o problema para as próximas eleições. A extrema-direita poderia sair ainda mais forte.
Não há, portanto, equivalência entre o neoliberalismo e o fascismo, embora conscientes das suas muitas interseções. Para isto pode servir olhar para as mobilizações daqueles que já tiveram governos de extrema-direita semelhantes ao nosso, como no caso dos EUA ou do Brasil. E dizemos isto porque talvez o Conte 1 não tenha sido percebido como tal, mesmo por aqueles que se lhe opunham vigorosamente, como se as medidas não universalistas e seletivas dos Contes 1 e 2 fossem suficientes para fazê-los esquecer. Basta falar, ou ler o que elxs dizem, xs ativistas que arriscam suas vidas em contextos que não são “meramente neoliberais”, mas abertamente pós-fascistas. Onde os ativistas são mortos nas ruas – como no Brasil, na verdade. E poderia traçar alguns paralelos entre a Itália e o Brasil. Entre outros, anos atrás, em 1977, o diretor do Banco da Itália, Guido Carli, falou da Itália como uma espécie de Brasil da Europa: uma riqueza potencial tão forte quanto as desigualdades que a acompanham, em um contexto com elementos altamente modernizados. Ulrich Beck, mais recentemente, no final dos anos 90, escreveu (também questionavelmente) sobre a “brasilianização” do velho continente, para descrever o colapso da proteção social – mas isso foi antes de Lula e seus enormes planos contra a pobreza.
Na Itália, veremos até que ponto os planos de redistribuição inversa (imposto fixo e abolição da renda básica – ou pelo menos restrição de seus critérios e valores de acesso –, implementação do PNRR em linhas ainda mais regressivas [o PNRR é um plano de investimentos públicos financiado pela União Europeia, ND]) serão sustentáveis diante de uma pandemia inacabada, uma guerra na Europa e todas as consequências econômicas que essas duas dinâmicas acarretaram. Os impostos são altos, a inflação também, a energia custa muito e o Norte da Europa provavelmente continuará a se opor a uma maior integração europeia. O dinheiro que a direita pseudo-social de Meloni precisa para fazer suas medidas neoliberais não está à disposição – exceto retirando-o da proteção social e dos trabalhadores. O que quer que vários liberais italianos assustados pelo aparente estatismo de Meloni digam, é a nacionalidade da propriedade que importa mais para os pós-fascistas do que a propriedade em si.
No campo de centro-esquerda, que não é votado pelos mais pobres, e que tem enorme responsabilidade pelo desastre de hoje, há escombros. Em geral, seria desejável que a hierarquização entre direitos civis e sociais – que sustenta a lógica do populismo de esquerda e a variante progressiva do neoliberalismo – chegasse a um fim. Muitas vezes a questão da imigração é enquadrada em termos de direitos civis. Mas isto é um erro grave: a situação dos migrantes e daqueles que tentam atravessar as fronteiras é uma questão de se eles têm ou não direito a direitos e de “vulnerabilidade à morte prematura”. Deve-se perceber que a repressão de imigrantes – dentro e fora das fronteiras – e o ataque contra os direitos reprodutivos não são nada abstratos. Ao contrário, são operações que afetam a materialidade da exploração. Eles regulam o preço da força de trabalho e as condições sob as quais os direitos podem ou não ser reivindicados. Mulheres, comunidades LGBTQIA+, migrantes não são minorias. Eles são (também) força de trabalho.
Em qualquer caso, no desastre da esquerda radical italiana, pode-se esperar e trabalhar para que o grupo de parlamentares eleitos e administradores locais nos diversos municípios – de Roma a Turim, de Caserta a Bolonha e de Milão a Reggio Calabria – fortaleça uma rede de experiências cívicas e radicais. O modelo poderia ser o das “cidades-santuário” nos Estados Unidos contra o governo fascista de Trump.
Enfim, Enzo Traverso – e muitas mídias internacionais, certamente não radicais – não hesitou em falar da nova onda da extrema-direita em termos de pós-fascismo. No dia da instalação do governo Meloni, em 28 de setembro em Roma, houve um belo ato de Nem uma a Menos [maior movimento transfeminista italiano, NDT], e assim em várias cidades da Itália. Depois houve atos sindicais e ecologistas, assembleias e ocupações estudantis. Na frente oposta, a dos chamados liberais, houve aberturas para reformas constitucionais numa direção presidencial e a aprovação do projeto de lei orçamentária de Meloni. Eles afirmam que os perigos das “ondas negras” [cor das antigas camisas dos fascistas italianos, NDT] e do fascismo são notícias falsas. Por outro lado, há muito tempo ficou claro que populismo e tecnocracia se reforçam mutuamente e caem juntos. Em qualquer caso, sem trazer à tona fascismos eternos e outras figuras mitológicas, o que deve ser sustentado é que a estrutura racista, patriarcal e classista dentro do esqueleto (pós)democrático pode muito bem ser chamada de pós-fascismo.
Bruno Montesano
Tradução do italiano por Alberto Fierro e Anderson Piva
[Este artigo é inédito no Brasil. Porém já foi publicado, em versões menos atualizadas, na revista Gli Asini e em Mediapart. Também deve ser divulgado em uma mídia inglesa. Um parágrafo foi retirado de um editorial publicado no jornal Il Manifesto.]