Ediane Maria, coordenadora do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e deputada estadual eleita nas eleições de 2022 disse uma frase durante sua campanha que é um diagnóstico correto: “O Brasil deveria passar por uma grande ocupação de terra”. Essa frase foi repetida muitas vezes diante de tanto preconceito, desumanização e polarização agressiva que o governo e a campanha de Bolsonaro alimentaram. Uma ocupação de terra faz qualquer pessoa conhecer o Brasil de verdade, das maiorias, dos que não têm oportunidades de viver com dignidade e sonhar e lá encontram a solidariedade, a empatia e podem começar a enxergar perspectiva no futuro.
E por disputarem um projeto de futuro, os movimentos populares foram os primeiros a sair às ruas contra o golpe da presidenta Dilma Rousseff, contra todas as reformas perversas de Michel Temer, estiveram ao lado do presidente Lula contra sua prisão e na linha de frente virando voto para elegê-lo nestas eleições.
As eleições de 2022 foram marcadas, desde antes do seu início, pela polarização entre Lula e Bolsonaro; não houve espaço para o crescimento de uma tal “terceira via”. E por mais que se critique essa divisão, essa forma de fazer política não é nova, como coloca Boulos: “A polarização política existe há 500 anos. O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão, tem uma elite econômica que pensa com a cabeça da Casa Grande, que acha que o Bolsa Família é coisa de comunista”. É isso que temos pra hoje. Lula eleito e um Bolsonaro ainda muito forte.
Isso embora Bolsonaro tenha rompido com todas as formas de diálogo e participação da sociedade em seu governo. Fez uma política de morte, fome, devastação, ignorância, desemprego, a política da farsa. Mas, ainda assim, teve 49% dos votos. Do ponto de vista dos movimentos, o governo Bolsonaro foi um retrocesso sem igual. Acabou com todos os conselhos participativos e nunca sentou com as organizações populares para escutar suas demandas. Pelo contrário, combateu os movimentos sociais como inimigos.
Sua campanha sem propostas e baseada em fake news foi no mesmo sentido, estimulou sua militância a cometer todo tipo de prática intolerante, inclusive chegando a matar pessoas. Soma-se a isso ainda os bilhões entregues ao Congresso para o orçamento secreto e a utilização imprópria do Auxílio Brasil para conseguir se reeleger. Não conseguiu, mas uma parcela significativa da população apostou em seu projeto.
Não podemos dizer que 100% de seus eleitores de segundo turno são bolsonaristas, mas é certo que a frente progressista não os convenceu, e por isso faz-se necessário compreender essa insatisfação.
Lula, por sua vez, saiu dessa eleição com pouco mais de 50% dos votos, com o compromisso de acabar com a fome, de retomar políticas sociais de combate à pobreza e ao desemprego, de retomar o programa de moradia e preservação ambiental. E ainda de restabelecer a participação popular e o diálogo com os movimentos sociais.
Os movimentos sociais foram para as ruas disputar cada voto para Lula, numa estratégia refletida e não adesista, pois Lula era o único candidato popular com fortes condições de vencer Bolsonaro e também porque houve diversos avanços para o povo em seus governos anteriores. É importante dizer que parte desses movimentos não são de partido algum e sobreviveram ao pós-golpe e a esses últimos 4 anos com muita resistência.
Muitos desses movimentos que fizeram campanha nas ruas compuseram o conselho da campanha de Lula e, se hoje estão na equipe de transição de Governo, não quer dizer que existe um cheque em branco para que o futuro governo faça o que bem entender. Os movimentos sociais permanecem autônomos e mobilizados.
Agora é necessário que haja uma compreensão do momento histórico de nosso país, de unidade daqueles que querem reconstruir o Brasil, espoliado e saqueado até aqui por Bolsonaro e sua quadrilha.
É necessário e saudável para a democracia pressionar o Estado a partir da população organizada, porque do outro lado está o capital financeiro dando chilique se não é contemplado e não dita como a economia e a política devem ser. Por isso, não quer dizer que haverá concordância com todas as atitudes do futuro governo. O que há é uma vontade mútua de reconstrução do país.
E percebendo isso, os movimentos organizados elegeram nessa eleição alguns de seus representantes, sem teto, sem terra, indígenas, do movimento negro, do movimento LGBTQIA+, mulheres, entre outros grupos vulneráveis. Essa virada de chave tem a ver com a falta de representação dessas pautas nas bancadas e porque os movimentos têm projeto próprio e precisam colocá-los em prática como políticas públicas estruturais para o povo – que não se desmanchem com a alternância de governos e sejam suscetíveis a desmontes.
Por isso, o papel dos movimentos sociais nesse novo governo Lula será de dar início a uma política mais participativa, nos conselhos, como já foi anunciado, mas também podendo decidir o orçamento. A democracia não pode ser lembrada de quatro em quatro anos ou quando tem eleição, a cada dois anos. Por isso é fundamental que a democracia seja radicalizada, o que quer dizer que as pessoas precisam se sentir parte da política institucional e compreender que a política está no dia a dia e não só no voto. Mas pra isso precisa ser estimulada e ter mecanismos que aproximem o povo das decisões.
Contudo, esses próximos quatro anos não serão o suficiente para refundar o Brasil, tão massacrado pelo neoliberalismo de Paulos Guedes, pelo deslumbre dos filhos de Bolsonaro e pelo fundamentalismo de seus seguidores. Será necessário escutar o povo, retomar o trabalho de base e dialogar com a periferia. Não tem como fazer à distância ou pelas redes sociais, precisa estar no Brasil profundo, no Brasil ocupado pelo povo sem direitos.
Ana Paula Perles é membro coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil