Com 100 dias de Lula de volta à Presidência da República, a mídia empresarial buscou repercutir os resultados da pesquisa Datafolha do final de março como sintoma de um governo “fraco” e “sem rumo”, cujo mandatário escolhe manter a polarização com Bolsonaro e só falar para os convertidos em vez de fazer um governo de frente ampla.
Uma das chamadas aponta que Lula “tem início de mandato com desempenho inferior ao de suas outras passagens pelo Planalto”. Já a análise assinada por Igor Gielow na Folha de São Paulo destaca que o atual presidente tem “desaprovação igual a de Bolsonaro no mesmo momento do seu governo”, ao final de março de 2019, “repetindo assim o que foi o pior desempenho desde a redemocratização de 1985 entre presidentes em primeiro mandato”.
O estranho é que os números mostrados no mesmo artigo desmentem a afirmação acima. Lula tem aprovação menor apenas do que ele próprio em 2003 e 2007 e do que Dilma em 2011. O Lula de 2023 empata tecnicamente com FHC de 1995 e supera o Bolsonaro de 2019, a Dilma de 2015, o FHC de 1999, e o Collor de 1990.
Uma leitura mais cuidadosa da pesquisa exige que se coloque essa fotografia do momento no quadro mais amplo da política brasileira contemporânea: vivemos uma intensa polarização política que, longe de ser uma escolha, é imposta em parte pelas desigualdades – de classe, de gênero, de raça, ambiental e regional – que marcam a nossa sociedade e em parte pela extrema-direita bolsonarista que passou os últimos 4 anos tentando destruir a democracia, inclusive com uma tentativa de golpe de Estado no dia 08 de janeiro.
Diante deste quadro geral, seria espantoso se Lula tivesse uma rejeição menor que 30%, patamar que Bolsonaro conservou durante todo o processo eleitoral de 2022 (e que depois, na reta final cresceu, com o voto útil anti-Lula). Uma parte do eleitorado não votará nem aprovará qualquer medida do governo Lula. Isso sempre existiu, na casa dos 10%. Agora, com a extrema-direita organizada, esse contingente alcança 1/3 do eleitorado.
A extrema direita brasileira possui uma relação direta com o sentimento antissistema que é estruturante da atual polarização política brasileira. Primeiro, porque sua força e, especialmente, sua vitória em 2018, foram um resultado do crescimento deste sentimento, algo que foi alimentado pela ausência de soluções concretas para problemas importantes por parte dos governos e pela Lava-Jato e o uso político e criminoso da pauta anticorrupção por parte da mídia empresarial, dos partidos de esquerda e do sistema de justiça (juízes e promotores) que se politizou contra a esquerda.
Segundo, porque, uma vez no governo, essa extrema-direita alimentou ainda mais o sentimento antissistema com Bolsonaro atacando o STF, o Congresso, os prefeitos e governadores, a mídia, as universidades e a ciência por todos os males que ele não só não resolveu, como potencializou enquanto esteve no governo.
A vitória de Lula em 2022 por estreita margem e a expressiva votação de Bolsonaro mostram que esse sentimento segue forte. E além da já mencionada dimensão diretamente ligada ao bolsonarismo, existe outra, mais difusa, que se expressa em um mal estar generalizado com a política e com a economia. Assim, de 2013 para cá, quase a totalidade dos governos vem apresentando índices de aprovação menores e de rejeição maior do que aqueles registrados nas primeiras décadas da redemocratização brasileira.
Longe de mostrar um governo fraco, a pesquisa deve ser inserida nesse contexto de polarização e sentimento antissistema e em como esse quadro torna ainda mais difícil a tarefa de um governo de reconstrução nacional. E, neste sentido, ela é mais positiva do que negativa para Lula. Primeiro, porque é fiel à polarização política, cenário no qual Lula sabe se movimentar. Assim, respostas positivas são confrontadas com outras negativas, cabendo às forças políticas disputar qual lado do pêndulo vai prevalecer: enquanto 50% dos entrevistados acredita que Lula fará um bom governo, outros 51% acham que ele fez menos até aqui do esperado; para 61% das pessoas, Lula se comporta adequadamente sempre ou quase sempre e 50% acreditam que ele só vai cumprir parte das promessas.
Nenhuma área ilustra melhor essa polarização do eleitorado do que a economia. Por um lado, o total de pessoas otimistas com a economia caiu de 49% em dezembro de 2022 para 46% em março de 2023, enquanto o número de pessoas pessimistas subiu de 20% para 26%. Seria uma má notícia para o governo. Mas não é, uma vez que a pesquisa mostra que a população apoia amplamente a luta do presidente Lula contra o Banco Central de Roberto Campos e seus juros exorbitantes. Para 71% dos entrevistados, os juros estão mais altos do que deveriam. Para 80% das pessoas, Lula age certo ao criticar os juros e pressionar pela sua redução. Essa questão vem sendo estruturante na ação política de Lula. Segundo o Poder 360, de 18 de janeiro até 03 de abril, Lula criticou publicamente os juros e o Banco Central 11 vezes, seus ministros criticaram outras 11 vezes.
Tais ataques foram inicialmente muito questionados pela mídia empresarial e por parte do sistema político. No marco dos 100 dias, o quadro é outro: há um amplo consenso em torno da necessidade de redução das taxas de juro, vocalizado por articulistas como Míriam Leitão e Reinaldo Azevedo, por lideranças empresariais de todos os setores, por movimentos sociais e pelo conjunto dos partidos políticos.
Lula, ao comprar essa briga com os juros e o Banco Central, dialoga com o sentimento antissistema de um modo que não é potencialmente danoso para a democracia. Enquanto a extrema-direita direciona esse sentimento contra as instituições, Lula busca proteger e fortalecer a política. Mas seria um erro simplesmente não dialogar com o sentimento antissistema, mantendo um tipo de liturgia que a população não valoriza mais.
Pelo contrário, é preciso sim que o presidente mobilize as forças democráticas da sociedade contra o Banco Central para viabilizar um projeto econômico de crescimento e melhoria das condições de vida sem o qual será impossível derrotar a extrema-direita no Brasil. E a pesquisa Datafolha do final de março confirma isso, mostrando que Lula chega nos seus 100 dias de governo ainda bem posicionado junto ao povo pobre e trabalhador.
O desafio é consolidar esse processo de reconstrução nacional e de criar as condições para melhorar a vida do povo ao longo do ano. Isso não será possível sem derrotar Roberto Campos e sua gestão antidemocrática no Banco Central.
Por Josué Medeiros, cientista político e professor da UFRJ. É coordenador do Observatório Político e Eleitoral (OPEL) e do Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (NUDEB)