Pesquisar religião e gênero no Brasil é duplamente desafiador. De um lado, observamos os acirramentos entre movimentos religiosos progressistas que lutam por uma agenda de direitos sociais e aqueles que, entre conservadores e reacionários, atentam contra esses direitos conquistados impondo visões teocráticas sobre o Estado (que deveria ser laico). Do outro, acompanhamos e participamos das estratégias e mobilizações dos movimentos feministas na luta cotidiana por proteção, reparação e justiça nos mais diversos campos da vida social (política, territorial, econômica, sexual, reprodutiva etc).
Nos últimos anos, observamos junto da ascensão do contramovimento bolsonarista a rearticulação e organização de grupos antifeministas que atuam no revisionismo/negacionismo histórico e na deslegitimação das lutas feministas. Ora posicionando-as como ameaças à entidade família heteropatriarcal, sustentada na teologia moral judaico-cristã, ora subjugando-as como ameaça à “autonomia” da mulher (sempre esposa, mãe e servil).
Reflexo desse ativismo reacionário que vem se expandindo sem receber a devida atenção foi a eleição em 2019 da primeira “bancada” abertamente antifeminista na Câmara Federal. Algumas expoentes dessa bancada são as deputadas-ativistas declaradamente católicas Bia Kicis (PL/DF), Carla Zambelli (PL/SP) e Chris Tonietto (PL/RJ). Na esfera estadual, temos figuras como a deputada de Santa Catarina Ana Campagnolo (PL/SC), evangélica e autora do primeiro Curso Antifeminista do Brasil. Trata-se de um clube virtual inédito, fundado em 2018, que além de utilizar estrutura parlamentar para monetizar recursos cujo os fins são privados, fazem parte de uma estratégia maior das think tanks bolsonaristas que, através de métodos digitais, engajam e formam jovens com conteúdos abertamente antigênero e anticomunistas.
Organizadas no partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, antes o Partido Social Liberal (PSL) e hoje o Partido Liberal (PL), as “influenciadoras” antifeministas parecem ter encontrado na extrema direita o habitat ideal para falar contra o que convencionalmente chamam de “ideologia de gênero”, e fazer oposição política aos direitos das mulheres e ao movimento feminista. Como parte das suas estratégias, promovem desinformação sobre as Teorias de Gênero através de cursos, clubes, debates e seminários, além de destinarem recursos públicos – via emenda parlamentar, para organizações antiaborto (“pró-vida”) conduzidas por entidades religiosas filantrópicas.
A extrema direita é historicamente antifeminista, sendo possível apontar que foram nas últimas três décadas que esse contramovimento se espraiou e se estruturou. No entanto, com a ascensão do autoritarismo, alinhado ao projeto neoliberal, esta atuação antifeminista ganhou contornos próprios na sociedade. O que se vê em curso no Brasil, conectado com a extrema direita global, é a remodelação do discurso de matriz religiosa-moralista (mobilizado em espaços considerados seculares) como a falaciosa “ideologia de gênero”. Também se apresentam práticas antifeministas na consolidação de políticas neoliberais que veem no “empreendedorismo feminino” e no debate raso sobre “violência contra a mulher” – que flerta com a defesa do armamento feminino e o endurecimento penal, a solução para todo e qualquer tipo de abandono por parte do Estado. Ou, em outros casos, antifeministas e ideólogos da extrema direita (mas não somente) que questionam a adoção da linguagem neutra e a incorporação de expressões inclusivas como “pessoas que gestam”, “pessoas com útero” e etc, com objetivo de refutar as pautas e agendas dos movimentos feministas e LGBTQIA+.
O que nos chama a atenção é que em meio ao crescimento dessa ideologia antifeminista que resgata o papel conservador das mulheres na sociedade, a exemplo do que ocorreu no passado nas Marchas de União Cívica Feminina (1962), na Marcha da Família com Deus pela Liberdade (1964) e na Cruzada Democrática Feminina (1963), setores de esquerda e/ou feministas auto identificadas com o feminismo radical, fazem o uso de discursos biologizantes sobre o gênero, flertando, em certa medida, com esse antifeminismo em curso. Essa controvérsia da relação entre feministas antigênero (transexcludentes) e antifeministas gera aquilo que o autor William Connolly (2008) denomina como uma relação de “caixa de ressonância”. Ou seja, conexões entre grupos e filosofias que antes pareciam estar separadas e descoladas, e que a partir de um contexto político específico passam a atuar conjuntamente em uma atmosfera de discursos e práticas comuns, ressonando uns aos outros.
Sônia Côrrea, pesquisadora e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (SPW, na sigla em inglês), em entrevista para a SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, em 2016, já nos apontava que “a categoria mulher não serve mais para a luta feminista”. Segundo Corrêa, a afirmação de uma separação entre “mulher” e “gênero” (associada à agenda LGBTQIA +) é politicamente problemática, tendo em vista o ativismo antigênero estar articulado por forças religiosas e laicas em torno da falácia da “ideologia de gênero”. Essa separação também gera um conflito entre feministas transinclusivas e feministas antigênero que desde os anos 2000 divergem sobre quem é ou não os sujeitos do feminismo – “conflito esse que não poucas vezes adotou uma retórica de ódio em relação às mulheres trans”. (SPW, 2023, p. 5).
Em 2022, o Observatório de Sexualidade e Política (SPW) lançou o documento “Feminismos essencialistas: um desafio para a luta anti-patriarcal”[1], onde trata sobre os feminismos transexcludentes, essencialistas e/ou antigênero como correntes dos feminismos que remontam os anos 1970 e que vem adquirindo novos contornos. Nos anos 2000, o debate nos movimentos feministas, na esteira dos movimentos “identitários”, passaram a girar em torno da categoria “mulher”, questionando quem deve ou não ser considerado sujeito do feminismo. Diferentemente do que vinha ocorrendo, apontam que essas expressões feministas transexcludentes e antigênero, antes restritas ao âmbito dos movimentos feministas, passaram a ser manifestadas publicamente no espaço público. Ainda que se definam como “progressistas” e façam uso da legitimidade moral e política dado serem posições construídas no interior do movimento feminista, compartilham de muitas suposições conservadoras sobre gênero e transgeneridade. Tanto a narrativa conservadora como a transexcludente, enfatizam o risco de um “apagamento da mulher”, minimizando lutas sociais e populares mais amplas dos feminismos, seja a favor da igualdade entre homens e mulheres (discurso conservador), seja contra o sexismo e o patriarcado (única engrenagem de opressão reconhecida pelas feministas transexcludentes).
Feministas antigênero vem atuando sob o discurso do apagamento das “mulheres” (exclusivamente cisgêneras), e refutando a famosa posição da feminista francesa Simone de Beauvoir que apontou que não se nasce mulher, mas torna-se (1980), atribuindo o gênero enquanto uma construção social culturalmente associada e localizada. Nesse ponto, feministas antigênero apresentam-se como transexcludentes uma vez que compartilham da mesma matriz narrativa biologizante encontradas tanto no discurso transfóbico do deputado Nikolas Ferreira (PL), que subiu na tribuna no Dia Internacional da Mulher usando uma peruca se auto identificando como “Nikole”, como na narrativa de antifeministas que se somam à perspectiva da Teologia do Corpo[2] do Papa João Paulo II, que no seio da Igreja Católica propõe “o conhecimento puramente biológico das funções do corpo como organismo, relacionadas com a masculinidade e feminilidade da pessoa humana” (1981). Tratam-se de setores feministas com posições profundamente essencialistas e que produzem práticas de um feminismo referenciado na natureza humana e na experiência do corpo da mulher cisgênera (e majoritariamente branca), descartando a noção de “direitos humanos, gêneros e sexualidades” e descredenciando a possibilidade de outras formas de ser mulher na sociedade, sendo esse posto social exclusivo de mulheres portadoras de vagina e útero.
A noção binária que sustenta essa engrenagem essencialista e que alimenta desde setores religiosos e laicos a feministas antigênero, coloca pessoas trans e travestis em posição de rejeição extrema ao reforçarem o estigma social sobre essa população, já reconhecidamente marginalizada. Um dos efeitos práticos é a tentativa de impossibilitar que pessoas trans acessem serviços públicos (e competições esportivas) sob alegação em torno do uso de termos inclusivos na arena sexual e reprodutiva como “pessoas que menstruam” e “pessoas com útero”, utilizado sob justificativa de “invisibilizar” a realidade concreta e material das mulheres biológicas. Nessa mesma direção, segundo a autora Correa, os dados alarmantes de violência praticadas de transfeminicídio também são o efeito da violência normativa importada pela lógica binária do sistema sexo-gênero. Nesse sentido, interrogar gênero, raça e sexualidade sob a chave dos direitos humanos, requer, necessariamente, o enfrentamento do essencialismo binário biológico masculino/feminino, homem/mulher.
Diante da presença desse feminismo essencialista pouco comprometido com uma agenda de promoção de inclusão e de justiça social (a partir das interseccionalidades de raça, gênero, sexualidade, diversidade, religião, condição e território), é urgente, como propôs o relatório aqui citado, “ampliar o arco de diálogos entre os feminismos e o campo de reflexão crítica sobre transgeneridade e de luta pelos direitos das pessoas trans” (2023). Além do mais, em um cenário de reconstrução do país após a avalanche bolsonarista, é fundamental que tenhamos cada vez mais deputadas diversas, atuantes, sendo expressão máxima da experiência democrática que supere o patriarcado, o racismo e a normatividade institucional e que, a exemplo das deputadas Duda Salabert e Erika Hilton, na Câmara Federal, sigam representando a agenda de todas as mulheres e meninas brasileiras.
Bibliografia
Beavouir, Simone. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
Connolly, William. Capitalism and Christianity, American Style. Duke University Press. Abr. 2008.
Correa, Silvia. A categoria mulher não serve mais para a luta feminista. Entrevista na Sur Conectas. SUR 24 – v.13 n. 24, p. 215-224. Ano 2016. Disponível em: <https://sur.conectas.org/wp-content/uploads/2016/12/20-sur-24-por-sonia-correa.pdf>. Acesso em 03 abr. 2023.
SPW, Sexuality Policy Watch. Feminismos essencialistas: um desafio para a luta antipatriarcal. Editora SPW. Fev. 2023. Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr/wp-content/uploads/sites/2/2023/02/Relatoria-PT-09-02-2023.pdf. Acesso em: 08 abr. 2023.
[1] https://sxpolitics.org/ptbr/wp-content/uploads/sites/2/2023/02/Relatoria-PT-09-02-2023.pdf
[2] Pedagogia do corpo, ordem moral e manifestações afectivas por Papa João Paulo II, 1981. Disponível em: <https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/audiences/1981/documents/hf_jp-ii_aud_19810408.html>.
Ana Carolina Marsicano, pesquisadora e Socióloga Feminista, doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGS/UFPE).
Tabata Pastore Tesser, doutoranda em Sociologia no Programa de Pós-Graduação da Universidade de São Paulo (USP).