“Elas oferecem segurança e, desta forma, conseguem manter a ordem e a disciplina nas comunidades. É o que se chama de milícia. O governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes de drogas. E, talvez, no futuro, deveria legalizá-las”[1].
“É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado”.
As duas frases acima foram ditas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Um detalhe, porém, escancara um verdadeiro projeto que foi imposto ao Brasil nos últimos anos: as afirmações estão separadas por uma diferença de 12 anos. A família Bolsonaro nunca escondeu seu apreço por milicianos no Rio de Janeiro, assim como jamais se envergonhou de seu plano de expandir o negócio para todo o país. O que nem todos talvez tenham enxergado desde o início é como essas duas frases, apesar de tratarem de fenômenos diferentes, conectam-se diretamente.
Nos EUA, principalmente a partir dos anos 1990, houve uma forte expansão das milícias privadas. Em 2017, o país já contava com 165 desses grupos paramilitares. Simulando uma oficialidade militar, não é raro ver esses grupos participando ativamente de manifestações políticas ligadas à extrema-direita, como a ocorrida anos atrás em Charlottesville. Também não são raros ataques violentos envolvendo esses grupos, como em 2020, na efervescência do movimento Black Lives Matter, quando um desses milicianos usou um fuzil para abrir fogo contra manifestantes negros, matando dois deles.
Dois pontos se destacam nesse cenário norte-americano: a facilidade de se portar legalmente um fuzil pelas ruas do país e a ligação desse armamento com movimentos políticos de extrema-direita, sobretudo supremacistas brancos. Pontos que nos mostram a base estrutural de um verdadeiro projeto de poder: a flexibilização de leis armamentistas como forma de organizar grupos políticos abertamente fascistas.
Tal projeto Bolsonaro pareceu seguir à risca desde seus anos de baixo clero na Câmara. Basta analisar sua atuação nos últimos 10 anos ainda como deputado[2]. Praticamente todos os seus projetos e atos se resumiram a duas questões. Primeiramente, o afrouxamento das leis armamentistas, algo em que ele finalmente alcançaria o sucesso já como presidente da República, principalmente por meio de Portarias baixadas pelo Exército que facilitavam o acesso a armas pelos Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs). Nem é preciso repetir aqui o explosivo aumento de CACs e de armas em circulação que o Brasil experimentou nos últimos 4 anos.
A outra questão trabalhada à exaustão por Bolsonaro na Câmara envolvia outro grupo político: Jair passou anos tentando se aproximar da classe militar defendendo vantagens previdenciárias e trabalhistas, mirando principalmente as polícias militares estaduais. Em outras palavras, muito antes de chegar à presidência, Bolsonaro já vinha construindo um projeto político que passava diretamente pela aproximação com as forças policiais do país.
E, assim como a questão armamentista, essa foi outra bomba que explodiu com o início de seu governo. Do crescimento inédito de policiais no Legislativo nas eleições de 2018, passando pela seletividade na repressão a manifestações, até as insubordinações mais escancaradas após a vitória de Lula em 2022, o Brasil foi assistindo ao crescimento de um movimento de extrema-direita que passou a contar com membros das forças de segurança não apenas como linha auxiliar, mas como protagonistas.
E é aqui que precisamos compreender como esses dois fenômenos e as duas frases citadas no início do artigo se tocam. Ambos apontam para um mesmo movimento: o de milicianização da política brasileira.
De um lado, o “libera geral” armamentista inundou o país de pólvora ao colocar milhões de armas nas mãos de civis, numa clara tentativa de reeditar o modelo de milícias privadas norte-americano. Os inúmeros casos de CACs envolvidos em episódios de violência nos últimos anos e os casos de ataques a escolas insuflados por fóruns online que propagam o ódio são apenas a ponta do iceberg da capacidade articuladora que o armamentismo pode conferir à direita.
De outro, a proximidade de Bolsonaro com milicianos do Rio de Janeiro e o encorajamento aos discursos de ódio e à insubordinação dentro das polícias demonstra o interesse da extrema-direita brasileira em ver as forças de segurança cada vez mais apartadas do poder público e de qualquer controle popular. E não há outro nome para uma polícia que não se subordina nem ao poder público e nem ao controle popular que não seja milícia.
Com esse cenário posto, mesmo com todas as dificuldades, é obrigação de um governo de esquerda agir ativamente para reverter esse movimento político. Nesse ponto, Lula acerta ao revogar as portarias bolsonaristas que afrouxavam as leis armamentistas. Mas é urgente que o país crie um novo marco regulatório mais rígido para o setor, com ampla participação civil, e que dê especial atenção ao controle sobre os CACs, grupo que mais parece ter se colado aos fins políticos do armamentismo.
Nesse sentido, é também urgente a regulação das redes sociais, que em todo o mundo têm cumprido um papel central na expansão do fascismo ao lavarem suas mãos e agirem acima das leis.. É inadmissível que tais mídias continuem funcionando como facilitadoras para a organização de grupos de extrema-direita que espalham o ódio e massacres pelo país.
Entre todas essas questões, porém, a mais urgente e espinhosa é a policial. Principalmente em relação a sua atuação nas paralisações de caminhoneiros e no ataque golpista de 8 de janeiro de 2023. Percebemos nesses episódios como a insubordinação policial é capaz de botar fogo no país e colocar em jogo a nossa democracia. O pontual afastamento do governador do DF e a punição ao comandante da PM brasiliense mostram o início do caminho pedregoso que teremos de percorrer, mas ainda são medidas insuficientes.
É preciso criar mecanismos de controle mais diretos e efetivos do Estado e da sociedade civil sobre a polícia. Precisamos debater as Corregedorias Externas, a possibilidade de movimentos sociais construindo projetos pedagógicos em Academias e Escolas de Polícia, a extinção da Justiça Militar, e a própria desmilitarização, entre outras tantas medidas urgentes para que as polícias brasileiras não se tornem uma engrenagem solta com projeto político próprio.
Em termos mais práticos, é inadmissível, por exemplo, que a esquerda brasileira esteja completamente alheia ao debate sobre as novas Leis Orgânicas da Polícia Civil e da Polícia Militar e seja pega de surpresa por propostas absurdas como a retirada do controle dos governadores sobre os comandos de suas próprias PMs, ou a criação do cargo de “general” da PM. É nosso papel partidário abrir espaço para a participação da sociedade civil nessa discussão, evitando que a bancada da bala e os próprios policiais a monopolizem.
Apesar da vitória de Lula, ainda vivemos tempos de conflitos e antagonismos inconciliáveis. Tempos em que o fascismo ainda se expande. Compreender que nossas propostas gerarão atrito com boa parte das fileiras policiais é importante. Mas há conflitos dos quais não poderemos fugir. A luta para desmilicianizar a política brasileira é um deles, e nela não podemos aceitar um passo atrás sequer.
[1] http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/7283640.stm
[2] https://outraspalavras.net/direita-assanhada/estariamos-assistindo-a-milicianizacao-da-politica/
Almir Felitte – advogado, mestre em direito pela FDRP-USP e pesquisador da área da segurança pública