Em 2023 completaram-se 10 anos da aprovação da Emenda Constitucional (EC) n. 72, consolidação da chamada “PEC das Domésticas”, regulamentada em 2015 pela Lei Complementar n. 150. Com a EC 72, as trabalhadoras domésticas passaram a ter os mesmos direitos legais das demais categorias de trabalhadores no Brasil: jornada de trabalho de 44 horas semanais, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), seguro-desemprego, estabilidade para a gestante, entre outros.
No entanto, as expectativas de melhoria frustraram-se pelo aprofundamento da crise do capital e as respostas por parte do Estado que oneram a classe trabalhadora. À PEC do “Teto dos Gastos” (EC 95/2016), à Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) e à Reforma Previdenciária (EC 103/2019), somaram-se a crise sanitária da pandemia de covid-19, as tendências de aumento do desemprego e da informalidade. Assim, a perda de renda e o empobrecimento intensificaram-se e as mudanças esperadas pela “PEC das Domésticas” não vieram. Ao contrário, em 2023 vemos a continuidade da subalternização, da negação de direitos e estatísticas muito parecidas ou piores quando comparadas a 2013.
Passados dez anos, a sentença de Hirata e Kergoat (2007) de que com relação aos direitos das mulheres “tudo muda, mas nada muda”, acompanha a situação das trabalhadoras domésticas no Brasil. Um aparente paradoxo que, em vista do processo histórico, revela uma sociedade calcada na superexploração da força de trabalho e na transferência para as mulheres, sobretudo as negras, dos custos de reprodução da força de trabalho que os baixos salários não podem sustentar.
Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, sistematizados pelo Dieese (2023) revelam as mudanças que colocam as trabalhadoras domésticas no mesmo lugar histórico na economia e na sociedade brasileira. Em 2013 eram 5,8 milhões de trabalhadoras/es domésticas/os remuneradas/os , o mesmo número em 2022. No perfil de gênero e raça vê-se o aumento da participação de mulheres negras como maioria no Trabalho Doméstico Remunerado (TDR), sendo 91,4% mulheres; 67,3% negras e 32,7% não negras. A tendência de baixa escolaridade permaneceu e 63,5% não tinham ensino médio completo em 2022. Outro aspecto importante é o envelhecimento das trabalhadoras domésticas: em 2022, 49,2% estavam na faixa etária acima de 45 anos, contra 37,4% em 2013. Outros muitos dados, que podem ser consultados no relatório do Dieese, mostram que aumentou o percentual de trabalhadoras domésticas na situação de pobreza e extrema pobreza, com incidência maior entre as negras; a formalização do trabalho, bem como a contribuição previdenciária tiveram quedas, sobretudo após 2019. Mais trabalhadoras saíram da condição de mensalistas (passando de 62,5% em 2013 para 56,5% em 2022 ) para a de diaristas (37,5% em 2013 e 43,6% em 2022); o rendimento médio não teve nenhum aumento significativo e as trabalhadoras domésticas seguem com uma renda média correspondente a 47% da média das mulheres ocupadas com carteira assinada, sendo mais desigual em relação às trabalhadoras domésticas negras que recebem apenas 38% da média total.
A Emenda Constitucional n. 72 e a Lei Complementar 150/2015 são um marco histórico, o reconhecimento legal de uma categoria historicamente subalternizada. Frutos de uma longa jornada de lutas das trabalhadoras domésticas iniciada por Laudelina de Campos Mello, com a criação da Associação dos Empregados Domésticos de Santos, em 1932, e seguidas na contemporaneidade por organizações como a Federação Nacional dos Trabalhadores Domésticos. Lutas que, no contexto de discussão da PEC, suscitaram reações elitistas, racistas, sexistas e profundamente alienadas em uma Nação que normalizou, como a mais natural das relações, a existência de mulheres, sobretudo negras, disponíveis para a execução das tarefas reprodutivas vinculadas ao trabalho doméstico, remunerado ou não.
Entre os argumentos contrários à PEC estava o do aumento do preço do trabalho doméstico num contexto de empobrecimento das famílias, o que inviabilizaria a contratação de trabalhadoras domésticas de acordo com a lei, prejudicando as famílias de classe média. E o que parece inexplicável, mas não é, é o fato de que a nova legislação1 excluiu as trabalhadoras domésticas diaristas do seu escopo, criando a “brecha” necessária para que diante da mudança, nada mudasse. A queda no número de mensalistas e o aumento da condição de diaristas, expressa a manutenção das condições legais para que a precarização do trabalho das domésticas permanecesse. E isso revela mais do que os arranjos políticos que parcializaram uma conquista histórica. Na sua essência está a divisão social, sexual e racial do trabalho do capitalismo dependente brasileiro e suas tendências histórico-estruturais.
Desde o pós-abolição, engendrado com absoluta negação de direitos aos ex-escravizados e com a transição a uma sociedade capitalista dependente, o TDR continuou a refletir as nuances da dominação e exploração criadas pela organização escravista do trabalho. Atravessam as relações entre empregadores e empregadas todo um arsenal de opressão e subordinação, aberto ou velado, que mistifica as relações de superexploração. O capitalismo dependente, assentado nas relações econômicas e políticas extremamente desiguais, criadas pelo escravismo colonial, só pode existir por meio da superexploração da força de trabalho, e esta requer mecanismos de dominação racistas e sexistas (Souza, 2020). Marini (2012) indica que a superexploração, como mecanismo de rebaixamento do valor da força de trabalho, com a compressão dos salários, intensificação do trabalho e extensão das jornadas, resulta na remuneração abaixo do necessário e coloca contradições sui generis ao capitalismo dependente. Diante delas, acessar o mercado serviços necessários à reprodução, como restaurantes, lavanderias, espaços de cuidado com crianças e idosos etc. é inviável para grande parte da classe trabalhadora dada a compressão dos salários.
E sob a dinâmica patriarcal, quando as mulheres que realizam o trabalho doméstico não remunerado adentram o mercado de trabalho, é necessário inserir alguém em seus lares para garantir a execução das tarefas inerentes à reprodução da força de trabalho (Gonzalez, 2020). Necessidade que reflete a inexistência de serviços públicos, de políticas de proteção social e a dispensa do Estado dependente de atuar na garantia da adequada reprodução do conjunto da classe trabalhadora (Osório, 2014; Oliveira, 2021). E é na grande massa de força de trabalho feminina, majoritariamente negra, despojada de meios de vida pelas desigualdades históricas, que se encontra a solução para as contradições do capitalismo dependente.
Diante dessa dinâmica, que contorna parte das contradições resultantes da superexploração, entendemos que o TDR expressa o que é o capitalismo dependente na sua essência. Longe de ser um resquício da escravidão, como muitas vezes é apontado, o TDR revela a essência de uma sociedade capitalista subordinada ao mercado mundial, que impõe a superexploração da força de trabalho, o monopólio da terra, da riqueza e do poder e lega consequências brutais para a classe trabalhadora – de modo singular para a sua parcela negra e feminina.
Passados dez anos de aprovação da “PEC das domésticas”, nos confrontamos com uma realidade na qual as mudanças legais não alteraram positivamente as condições reais de existência, nem refletem os anseios e lutas históricas. Chegar ao cerne das contradições que impossibilitam transformações reais e reforçam a subordinação e superexploração das mulheres, em particular as negras, na sociedade brasileira é fundamental. Parafraseando Angela Davis, não alterar a situação das trabalhadoras negras em relação à conquista dos seus direitos é não permitir, também, que o conjunto da classe trabalhadora trilhe sua caminhada pela emancipação. É preciso que a análise da situação das trabalhadoras domésticas se assente numa perspectiva de totalidade, mediada pela situação do conjunto da classe trabalhadora diante do capitalismo dependente, para chegar à sua raiz. Radicalidade que coloca à práxis política da classe trabalhadora, diante das suas heterogeneidades e contradições, a urgência e inevitabilidade de reconhecer e pautar as condições de vida e trabalho das trabalhadoras domésticas. Essa é uma mediação fundamental na articulação política contra o capital, seu modo de produção e suas formas ideológicas racistas e patriarcais.
A Lei Complementar 150/2015, no artigo 1º define: “Empregado doméstico é aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana” (Brasil, 2015).
Referências
• Dieese. O trabalho doméstico 10 anos após a PEC das Domésticas. Estudos & pesquisas, n. 106, abr. 2023. Disponível em: https://www.dieese.org.br/estudosepesqui-format=pdf&lang=pt
• González, Lélia. Por um Feminismo Afro-latino-Americano. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. 375 p.
• Hirata, Helena; Kergoat, Danièle. “Novas configurações da divisão sexual do trabalho”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cp/a/cCztcWVvvtWGDvFqRmdsBWQ/?lang=pt
• Oliveira, Dennis de. Racismo estrutural: uma perspectiva Histórico Crítica. São Paulo: Dandara Editora, 2021.
• Osorio, Jaime. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Outras Expressões, 2014.
• Souza, Cristiane Luiza Sabino de. Racismo e Luta de classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente. São Paulo: Hucitec, 2020.
• _____. “A indissociabilidade entre racismo e superexploração da força de trabalho no capitalismo dependente”. Revista Serviço Social e Sociedade, v. 146, n. 1, jan-abr. 2023. Disponível em: ttps://www.scielo.br/j/sssoc/a/4XC6y7XCQj3L8RVFrSvGFGD/?
Por Cristiane Sabino, Doutora em Serviço Social. Docente na Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC). Autora do livro Racismo e Luta de classes na América Latina: as veias abertas do capitalismo dependente (Hucitec 2020).