Em fevereiro de 2023, mais de duzentos trabalhadores escravizados que prestavam serviços para vinícolas em Bento Gonçalves (RS) foram resgatados em uma operação que envolveu vários órgãos do poder público. Os trabalhadores foram contratados por uma empresa chamada Fenix Serviços Administrativos que prestava serviços para companhias vinícolas famosas do Sul do país, como a Aurora, Salton e Garibaldi.
Os trabalhadores encontravam-se em situação degradante: dormiam em alojamentos insalubres, recebiam alimentos estragados fornecidos pelo empregador e eram impedidos de sair do local. A esmagadora maioria deles era de origem nordestina e foram ao Rio Grande do Sul seduzidos por promessas de ganhos de até 3 mil reais. O esquema de escravidão era o conhecido truque de obrigá-los a comprar os itens de subsistência em um mercado próximo com preços superfaturados com os custos “descontados” do salário. Assim, os trabalhadores ficavam sempre “devendo” ao empregador.
A Organização Não Governamental Repórter Brasil vem denunciando há mais de dez anos que marcas importantes no ramo da confecção de roupas ganham com o trabalho escravo de oficinas de costura que escravizam trabalhadores imigrantes, na sua maioria, latino-americanos, na cidade de São Paulo. Entre elas estão M Officer, Cori, Luigi Bertolli, Gregory, Zara, 775, Pernambucanas, Brooksfield, Renner. Em 2010, a Repórter Brasil denunciou que a empresa que venceu a licitação para produzir os coletes dos recenseadores do IBGE também utilizava o trabalho de escravizados.
O que chama a atenção em todos esses episódios é a estreita relação entre o escravismo como o ápice das condições bárbaras de trabalho e a sofisticação desse universo de consumo das grandes marcas de confecção ou de bebidas. Tal situação não é novidade no capitalismo.
Capitalismo e escravidão
Durante o século XIX, as indústrias têxteis britânicas, o coração do nascente capitalismo industrial, beneficiaram-se da matéria prima, o algodão, produzida nas fazendas escravagistas do sul dos Estados Unidos. Karl Marx, em carta enviada a Ferdinand Lassale, socialista alemão, em 29 de maio de 1861, escreve sobre a Guerra Civil dos EUA: “Toda a imprensa oficial da Inglaterra está, é claro, a favor dos escravocratas. Eles são os mesmos sujeitos que cansaram o mundo com a sua filantropia contra o tráfico de escravos [N.A. – inclusive com a pressão feita no Brasil que levou a proibição do tráfico com a lei Eusébio de Queiroz em 1850]. Mas o algodão, o algodão…”.
Acompanhando o desenrolar da guerra civil estadunidense de 1861-65 e, principalmente, o impacto dela na classe dominante britânica, Marx observou que a indústria têxtil britânica dependia do algodão produzido com mão de obra escravizada no Sul dos Estados Unidos, gerando o que o pensador alemão caracterizava como uma “dupla escravidão”, uma indireta e outra direta, sendo a primeira a do trabalhador branco do ramo têxtil na Inglaterra, e a segunda os escravizados negros nos Estados Unidos.
Essa articulação das duas formas de exploração de trabalho se conecta com o que o pensador peruano Aníbal Quijano aponta sobre o capitalismo como forma de organização global do trabalho. Segundo ele, as formas diversas de trabalho articulam-se sistemicamente e globalmente a partir do capitalismo e a raça, como “categoria mental da modernidade”, estabelece os critérios seletivos de participação nas formas diversas e hierarquizadas de trabalho.
Superexploração e neoliberalismo
Entretanto, nesses períodos históricos iniciais do capitalismo, o que se observa é que essa organização das diversas formas de trabalho está intimamente ligada às posições que os Estados-Nação ocupam dentro do sistema-mundo capitalista. Mais: a existência de relações desumanas de trabalho tenderiam, com o desenvolvimento das forças produtivas, a diminuírem, e tais hierarquias se expressariam de outra forma que não necessariamente pelas normas de contratação de trabalho. Mas o fato do escravismo como mecanismo legal de relação de trabalho deixar de existir no Brasil, por exemplo, não significou que as relações de exploração de classe em um capitalismo periférico, como o brasileiro, sejam exatamente iguais às dos países capitalistas centrais.
Aqui entra a importância da Teoria Marxista da Dependência, de Ruy Mauro Marini, que conceitua capitalismo dependente como um sistema de superexploração do trabalho. O conceito de superexploração do trabalho se define como o pagamento da força de trabalho em valores inferiores ao mínimo necessário para a sua reprodução, gerando um contexto de aviltamento. Para tanto, é necessário que exista uma abundância de estoque de mão de obra disponível para possibilitar a manutenção desse caráter predatório da força de trabalho com a sua rápida substituição.
A superexploração do trabalho pode ser realizada de diversas formas, como por meio das contenções dos salários, extensões das jornadas de trabalho, redução de direitos, entre outras. Por isso, um projeto capitalista baseado no estar social e no fortalecimento de um mercado consumidor de massas como base para a reprodução do capital encontre enormes resistências na própria classe dominante brasileira, uma vez que a superexploração é a forma que o capitalismo se realiza no Brasil.
O golpe de 2016 que derrubou a então presidenta Dilma Rousseff foi um arranjo das classes dominantes para construir um novo arcabouço institucional que permitisse radicalizar esse contexto de superexploração. Duas reformas importantes foram aprovadas após o golpe: a trabalhista e a da previdência. As duas consolidaram institucionalmente um processo de precarização das relações trabalhistas que já vinham num crescente desde os anos 1990. O mecanismo de superexploração encontrava na Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) uma institucionalidade apropriada pela classe proletária como resistência, e cuja supressão se fez necessária para ampliar a superexploração. Daí que o capital esteja ampliando as suas possibilidades de construir formas de reprodução via a superexploração, como, por exemplo, via terceirização de atividades para empresas que chegam a utilizar mão de obra de escravizados, como foi o caso das vinícolas do Rio Grande do Sul.
Outro aspecto importante é a presença do racismo e do preconceito como determinantes em relação a quem são as pessoas escravizadas nesses locais de trabalho, o que ficou evidente nas falas do vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul, em suas manifestações racistas a respeito dos trabalhadores escravizados nas vinícolas.
A existência do trabalho escravo e todas as formas bárbaras de relações de trabalho são, portanto, o subproduto da radicalização do neoliberalismo principalmente nos países dependentes. A superexploração da mão de obra sobre a qual Marini escreve se radicaliza e amplia suas formas de expressão.
Por Dennis de Oliveira, Professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, jornalista, coordenador do CELACC (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação). Autor do livro Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica (Editora Dandara, 2021). Coordenador da Rede Antirracista Quilombação.