A queima de combustíveis fósseis, o desmatamento e a emissão de gases de efeito estufa estão promovendo uma alteração extremamente perigosa no equilíbrio energético do planeta, nos aproximando de uma elevação média de temperatura perigosa
A civilização humana como a conhecemos é filha de um clima particularmente estável, que emergiu há pouco mais de onze mil anos com o encerramento da última glaciação (ou era do gelo). Foi a regularidade da chuva, das estações, o comportamento cíclico de plantas e animais, enfim, a previsibilidade do comportamento da natureza que permitiu que nossa espécie se estabelecesse em assentamentos fixos, que promovesse domesticação de espécies vegetais e animais e desenvolvesse a agricultura e a pecuária. Daí, vieram as cidades, as civilizações, as sucessivas revoluções industriais, até chegarmos no mundo capitalista globalizado de agora.
Esse caminho transformou os indivíduos da espécie Homo sapiens de caçadores-coletores – que demandavam tão somente 2.000 kcal (quilocalorias) diárias para viver – em violentos predadores de energia, capazes de devorar, em países ricos como os EUA, uma média de quase 200.000 kcal por dia. Isso acontece porque, além de consumirmos alimentos, mantemos um gigantesco aparato de indústrias, máquinas, equipamentos, meios de transporte etc., todos demandando uma quantidade formidável de energia.
A mudança na escala de produção de bens e, portanto, na demanda de energia, especialmente a partir da Primeira Revolução Industrial e, mais acentuadamente, com a Grande Aceleração, só foi viabilizada graças à abundância e flexibilidade de um tipo particular de fonte de energia: os combustíveis fósseis. Restos de organismos vivos, geologicamente processados, constituem o carvão, o petróleo e o gás. Mesmo tendo sido usados em escala gigantesca, a quantidade desses materiais nas jazidas é impressionante. O fácil acesso e uso desses combustíveis parecia representar um milagre.
O capitalismo dificilmente teria avançado até o estágio atual se não fosse montado sobre o gigantesco estoque de energia química dos combustíveis fósseis. Mas a máquina capitalista é eminentemente predatória e perdulária. Ampliação do consumo, obsolescência programada, produção artificial de necessidades, artigos de luxo, itens descartáveis, indústria militar, indústria de propaganda etc., são apenas alguns dos exemplos de como o crescimento exponencial da demanda de energia se encontra visceralmente ligado à expansão econômica do capital.
O principal subproduto da queima do carvão, petróleo e gás é o dióxido de carbono (CO2), um gás de efeito estufa, ou seja, capaz de absorver o calor irradiado pela superfície da Terra, impedindo que ele vá integralmente para o espaço. Uma determinada concentração desse gás contribui para evitar que a Terra seja uma esfera gélida e possivelmente sem vida, vagando no cosmos, no entanto, uma quantidade maior pode aquecer perigosamente o planeta.
Hoje, a queima de combustíveis fósseis, o desmatamento e a emissão de outros gases (como o metano da pecuária e o óxido nitroso) estão promovendo uma alteração extremamente perigosa no delicado equilíbrio energético do planeta. Atualmente, a cada ano, são lançados mais de 40 bilhões de toneladas só de CO2 na atmosfera da Terra, transformada em lata de lixo do capitalismo fóssil. Esse gás tem se acumulado a uma taxa muito acelerada e sua concentração já é cerca de 50% maior do que no período pré-industrial. Nessas condições, o efeito não poderia ser outro senão o aquecimento em escala planetária: o mundo está se aproximando perigosamente da marca de uma elevação média de temperatura de 1,5°C.
Mas a alteração no clima está longe de se limitar a um aumento da temperatura média planetária. Todas as evidências científicas apontam para um clima com mais eventos extremos: tempestades severas, ondas de calor mortíferas, secas excepcionais, incêndios florestais devastadores. A multiplicação crescente desses eventos é um efeito esperado a cada décimo de grau que o planeta aqueça, com impactos de cada vez maior severidade para os humanos. Assim, é preciso que se diga com todas as letras: se a temperatura da Terra se elevar muito, vastas porções do planeta se tornarão inabitáveis e a civilização humana não terá como se manter.
Mas esses impactos, assim como as responsabilidades pelo problema, não se distribuem por igual. Enquanto executivos-chefes das corporações petroquímicas contabilizam os bilhões de dólares movimentados por essas empresas, ondas de calor matam principalmente idosos e crianças, e afetam trabalhadores e trabalhadoras na agricultura, na pesca etc. Historicamente, países ricos como EUA, Inglaterra, Alemanha e Japão, acumularam riqueza às custas de emissões gigantescas de CO2, enquanto países mais pobres, sem base industrial nem agricultura intensiva, estão pagando o ônus da fúria do clima. Enquanto uma pessoa entre os 10% mais ricos nos EUA emite 50 toneladas de CO2, a média de emissões de habitantes dos países mais pobres fica entre 100 e 1000 vezes abaixo desse valor.
Num mundo assolado por desigualdade e extremos climáticos, a multiplicação de refugiados climáticos nos países mais pobres e comunidades mais vulneráveis é quase certa. Enfrentar as causas do aquecimento global e socorrer as pessoas impactadas é a urgência que se impõe, justamente o oposto da perigosa e repugnante mistura de xenofobia/racismo e negacionismo climático que a extrema-direita apregoa. Além da ligação intrínseca entre a exploração capitalista do trabalho e da natureza com o colapso ecológico, outras formas de opressão também se relacionam com esse fenômeno: a desigualdade nos impactos não ocorre apenas por classe ou nacionalidade, mas também por grupo étnico-racial e gênero.
Nesse sentido, não surpreende que os setores mais duros do capital (representados em figuras torpes como Trump e Bolsonaro) apostem no ataque violento à ciência, na sabotagem dos acordos climáticos e no negacionismo. Há, inclusive, fortes indícios de que a indústria petroquímica sabia de todo o estrago planetário que promovia há várias décadas. Nos EUA, por exemplo, o Instituto Americano de Petróleo e a Exxon optaram conscientemente pelo caos planetário para não diminuir seus lucros.
A economia capitalista e o modo de vida a ela associado são simplesmente viciados nos combustíveis fósseis e nas consequentes emissões de CO2, que seguem crescendo após terem oscilado para baixo em função da pandemia. Além disso, mecanismos de mercado, como os “créditos de carbono” foram tragados pelas fraudes, pela especulação e pelo imediatismo do capital financeiro em busca de retorno a seus investimentos. É urgente, portanto, que mudanças no sistema produtivo-destrutivo capitalista sejam operadas, preservando as massas trabalhadoras ligadas a setores mais devastadores – mineração, petróleo, indústria do plástico, agrotóxicos etc. – na mudança de atividade laboral. O ônus da dívida climática precisa recair sobre as corporações, os países e indivíduos ricos. Ecossocialismo é o nome que damos ao novo paradigma de sociedade que precisa emergir contra a barbárie capitalista e o caos climático. O termo em si é uma questão menor diante da urgência da essência aqui reivindicada: uma nova sociedade de pessoas livres e em harmonia com a natureza, seus fluxos e ciclos.
Por Alexandre A. Costa
Professor Titular da Universidade Estadual do Ceará, PhD em Ciências Atmosféricas, colaborador do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, Assessor voluntário do Fórum de Mudanças Climáticas e Justiça Social e autor do blog “O Que Você Faria se Soubesse o Que Eu Sei”.