O Ecossocialismo de Karl Marx

Por João Machado*

Como o título indica, O Ecossocialismo de Karl Marx – Capitalismo, Natureza e a crítica inacabada da Economia Política, do filósofo japonês Kohei Saito, pretende mostrar que Marx tinha um pensamento ecossocialista, ainda que, naturalmente, não usasse este termo. O livro desafia o que pensam muitos ecologistas, que consideram Marx um autor “produtivista”, cego aos problemas ecológicos. 

Desde fins da década de 1990, alguns autores começaram a demonstrar o erro desta avaliação. Destacaram-se inicialmente os norte-americanos Paul Burkett, com Marx and Nature – a Red and Green Perspective (Marx e a Natureza – Uma Perspectiva Vermelha e Verde), de 1999, e John Bellamy Foster, com Marx’s Ecology – Materialism and Nature, de 2000. Este último foi publicado no Brasil com o título A Ecologia de Marx – Materialismo e Natureza, em 2005, pela Civilização Brasileira, e reeditado em 2024 pela Expressão Popular.

Em O Ecossocialismo de Karl Marx, que foi publicado inicialmente em 2016, na Alemanha, e em 2021, no Brasil, pela Boitempo, Saito vai além de Burkett e Foster. O autor busca, em suas próprias palavras, “uma reconstrução mais sistemática e completa da crítica ecológica de Marx ao capitalismo”. Para isto, o livro se divide em duas partes. Na segunda, Saito se beneficia de seu trabalho na edição das obras completas de Marx e Engels, examinando os cadernos em que Marx documentou seus amplos estudos de ciências naturais, inclusive os feitos após a publicação do Livro I de O Capital e após a redação dos manuscritos usados por Engels para publicar os Livros II e III.

No conjunto do livro, Saito mostra que há tanto elementos de continuidade quanto de evolução na reflexão de Marx sobre a natureza. Em termos de continuidade, chama a atenção, por exemplo, para a importância da relação entre a humanidade e a natureza já nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844. A alienação no capitalismo é tratada a partir da dissolução da unidade original entre humanos e natureza. Este tema acompanhará toda a evolução de Marx, embora, depois, numa perspectiva mais concreta e menos filosófica do que nos Manuscritos.

Em termos de descontinuidade e de evolução, antes de O Capital (cujo Livro I foi publicado em 1867), Marx várias vezes demonstrou confiança excessiva no caráter progressista do capitalismo. Por exemplo, no Manifesto Comunista, escreveu, junto com Engels: “Com o rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e o constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta para a torrente da civilização todas as nações, até mesmo as mais bárbaras. Os baixos preços de seus produtos são a artilharia pesada que destrói todas as muralhas da China e obriga à capitulação os bárbaros mais tenazmente hostis aos estrangeiros.” O caráter progressista do capitalismo (a “civilização”) é contraposto ao estado “bárbaro” das sociedades pré-capitalistas.

Marx se tornaria cada vez mais consciente dos aspectos destrutivos do capitalismo. Um momento importante desta mudança ocorreu em 1865, quando ele começou a ler os escritos do químico agrícola alemão Justus Von Liebig e tomou consciência dos problemas do esgotamento dos solos e da fratura metabólica entre as sociedades humanas e o ambiente natural (o tema da “fratura metabólica” foi muito desenvolvido por John Bellamy Foster). No Capítulo sobre “Maquinaria e Grande Indústria” do Livro I de O Capital, há uma frase que exemplifica de forma expressiva esta nova visão: “todo progresso da agricultura capitalista é um progresso na arte de saquear não só o trabalhador, mas também o solo”.

Outro cientista alemão estudado por Marx, que Saito cita a partir dos seus cadernos de estudos, foi Carl Nicolaus Fraas. A partir de sua leitura, Marx fez anotações sobre o efeito destrutivo do desmatamento sobre climas locais, com o aumento do calor e a perda de umidade (obviamente não se trata de uma compreensão do aquecimento global, impossível na época), que teria sido responsável pela decadência de civilizações antigas.

Saito mostra de forma convincente que o pensamento de Marx na questão ecológica estava ainda evoluindo; por isto ele lia tantos livros de ciências naturais. Esta evolução só pôde ser incluída, muito parcialmente, em O Capital, mesmo nas partes editadas por Engels depois da morte do amigo. Por isto, a “crítica da Economia Política” ficou “inacabada”. 

Esta parece uma ótima maneira de caracterizar a evolução de Marx nesta questão: Marx mostrou a maior sensibilidade com temas ecológicos que era possível em seu tempo, e se tivesse vivido mais, certamente teria ido além. Isto fornece um programa de pesquisa para os marxistas de hoje, o que é fundamental.

Entretanto, Saito fez mais do que isto. Na primeira parte do livro, procura mostrar que a ecologia de Marx é parte de sua teoria do valor, do dinheiro e, sobretudo, do capital. Isto é realizado principalmente no terceiro capítulo de seu livro, “O Capital como uma teoria do metabolismo”. Dada a densidade e complexidade desse capítulo, é impossível fazer justiça a ele neste espaço, mas vale a pena tentar indicar as linhas gerais de seu raciocínio. 

Saito, apoiando-se na obra de um autor japonês (infelizmente quase desconhecido fora do Japão), Samezo Kuruma, parte da distinção entre trabalho concreto e trabalho abstrato, e afirma que, ao contrário do que muitas vezes se supõe, “o trabalho abstrato também é material” (eu preferiria dizer “tem base material”) e, por isto, o dispêndio de trabalho abstrato (ou seja, o valor) pode mediar a relação metabólica entre humanos e natureza. Entretanto, como Marx discute ao tratar do “caráter fetichista da mercadoria”, isto é feito de uma forma reificada e, logo, não consciente. A lógica do mercado impede, portanto, a regulação consciente da relação entre seres humanos e natureza. 

Com o desenvolvimento do capital, o problema se agrava. O valor como capital se torna um sujeito automático (expressão de Marx) e o processo de trabalho deve ser fundamentalmente reorganizado como processo de autovalorização do capital. A produção capitalista volta-se para a sucção de trabalho abstrato, e isto distorce a relação da humanidade com a natureza.

Se a teoria do valor, do dinheiro e do capital é compreendida nestas linhas, não há dúvida de que a crítica ecológica do capitalismo é parte integrante dela. Até aqui, acredito que podemos concordar com Saito, mas ele vai além: afirma que o impulso à autovalorização infinita do capital, que contradiz a limitação fundamental das forças e dos recursos naturais, é a contradição fundamental do modo de produção capitalista, e que isto teria sido compreendido progressivamente por Marx. Por que, então, Marx não explicitou este ponto em O Capital?

Saito diz que Marx pretendia tratar mais desta questão na discussão sobre a renda da terra, feita no Livro III, que ele não concluiu. Mas este argumento não é convincente: se Marx visse a questão do impulso infinito do capital para ultrapassar os limites da natureza como a contradição fundamental do capitalismo, não seria razoável deixar para tratar mais ampla e explicitamente disto apenas na discussão sobre a renda da terra.

Parece melhor ficar com o subtítulo do livro, e dizer que a crítica de Marx da Economia Política ficou inacabada. Ela poderia ter sido desenvolvida na direção apontada por Saito, mas Marx não pôde fazê-lo – não apenas porque faltou-lhe tempo para isto, mas também porque as contradições ecológicas do capitalismo ainda não estavam suficientemente desenvolvidas na sua época. 

Isto não diminui nem a importância das reflexões ecológicas de Marx, nem a utilidade do livro de Saito. Fica o convite para que ecossocialistas de hoje completem a tarefa, no plano teórico, e retirem daí as consequências práticas necessárias.

*Professor Doutor do Departamento de Economia da PUC-SP.

**Texto publicado na edição 3 da revista Jatobá.

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