Por Célia Xakriabá*
A demarcação de terras indígenas deve fazer parte de qualquer estratégia de preservação da biodiversidade e mitigação da crise climática. Além disso, reconhecer os direitos da Natureza, tipificar o crime de ecocídio, e aprovar o Acordo de Escazú, são passos urgentes para cuidar do planeta
Não há como falar de preservação ambiental sem reconhecer o papel central dos povos indígenas, quilombolas e das comunidades tradicionais nesse processo. É uma pena que tivemos que chegar próximo ao chamado “ponto de não retorno”, para que o nosso protagonismo começasse a ser mais considerado nesse debate. Os territórios indígenas são os responsáveis por salvaguardar 45% das florestas intactas do planeta. Só na Bolívia, Brasil e Colômbia, esses territórios evitaram que entre 43 a 60 milhões de toneladas de CO2 fossem liberadas. Isso é o mesmo que retirar 13 milhões de automóveis de circulação por ano.
Conforme observou o relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), apesar de sermos menos de 5% da população mundial, somos hoje responsáveis por preservar mais de 80% da biodiversidade no mundo. Esses dados são mais que estatística, corroboram o que nós já temos praticando e falado: proteger os territórios indígenas é o mesmo que proteger o planeta. Nossos territórios são berços de vida, biodiversidade e cultura, e não podem ser tratados como notas de rodapé nas grandes negociações. Eles são o coração pulsante da solução e demarcá-los é passo urgente para trilhar uma possibilidade de futuro.
Por isso, ao participar da 16ª reunião da Conferência das Partes (COP) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) em Cali, na Colômbia, levei não só a defesa da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal e de todos os biomas brasileiros, mas também um chamado à justiça: a justiça climática e a justiça para os povos originários e comunidades que historicamente têm cuidado da terra. Nós cuidamos da Terra porque entendemos que ela não é apenas o lugar em que vivemos, ela faz parte de nós, é nossa família, nossa vó, nossa mãe e nossa irmã.
Nesse sentido, como deputada federal, apresentei a Indicação nº 1231/2024 à Presidência da República, em colaboração com o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério da Justiça e Segurança Pública e o Ministério dos Povos Indígenas, para que seja incluída na Estratégia e os Planos de Ação Nacionais para a Biodiversidade (EPANB) a demarcação das Terras Indígenas como ação do governo brasileiro. Nosso objetivo é que as políticas ambientais não fiquem só no papel, mas cheguem aos territórios e às mãos de quem mais protege a natureza e a biodiversidade.
A demarcação de Terras Indígenas também é instrumento essencial para que o Brasil possa cumprir com sua nova Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC na sigla em inglês), apresentada na COP 29, em Baku, no Azerbaijão. Segundo estudo divulgado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e Comitê Indígena de Mudanças Climáticas (CIMC), Terras Indígenas não demarcadas têm maiores taxas de desmatamento (0,2% ao ano), em comparação com as Terras Indígenas declaradas, regularizadas e homologadas (apenas 0,05% ao ano). Se o país quer cumprir a meta de redução de emissão de gases-estufa de 59% a 67% até 2035, a demarcação é um caminho incontornável.
Frear a crise climática e preservar nossa biodiversidade significa defender todas as formas de vida na Terra. É por isso que, em consonância com os debates internacionais latinomericanos, elaboramos uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) em Defesa dos Direitos da Natureza. O projeto, inspirado na cosmovisão indígena, é um passo importante para reconhecer a natureza como sujeito de direitos no Brasil, conferindo-lhe proteção jurídica própria. O objetivo central é garantir que os ecossistemas e os elementos naturais, como rios, florestas e montanhas, sejam tratados como entidades com direitos fundamentais, independentemente de sua utilidade econômica para os seres humanos.
Já temos iniciativas legislativas no país, a nível estadual e municipal, que seguem a mesma linha de entendimento. Como exemplo de avanço nessa agenda no Brasil, temos leis sancionadas nos municípios de Bonito e Paudalho (PE), Florianópolis (SC), Serro (MG), Porteirinha (MG) e Serranópolis (MG), Alagoa Nova na Paraíba (RO) e Guajará-Mirim (RO), além do reconhecimento dos direitos do Rio Laje (RO), Komin-memem na língua originária, e do Rio Mosquito (MG), a partir de um movimento socioambientalista concentrado na Articulação Nacional dos Direitos da Natureza.
A PEC também se inspira em legislações internacionais, como a Constituição do Equador de 2008, que reconhece os “direitos da Pachamama” (Terra), e a Lei dos Direitos da Mãe Terra da Bolívia, que incorpora o conceito indígena do “Bem Viver” (Sumak Kawsay). Esses países latino-americanos têm liderado o movimento global de reconhecimento dos direitos da natureza, fundamentando suas legislações na coexistência harmoniosa entre humanos e meio ambiente, inspirando a proposta brasileira.
A tipificação do crime de ecocídio é outro passo importante relevante para promover um novo modelo de convivência com o meio ambiente. Proposto pela Bancada do PSOL em 2023, o Projeto de Lei 2933/2023 propõe uma alteração na Lei de Crimes Ambientais para adoção do novo crime de ecocídio, voltado para a criminalização de casos sérios de destruição ilegal ou temerária do meio ambiente. Desde sua proposição, tenho trabalhado pela sua aprovação, sabendo que não se trata apenas de punir, mas de enviar uma mensagem urgente: o Brasil não será mais cúmplice da devastação ambiental e da violência contra a vida.
Nesse sentido, outro passo crucial que temos defendido é a aprovação do Acordo de Escazú (MSC 209/2023) pelo Congresso Nacional. Esse acordo internacional é uma ferramenta essencial para garantir transparência nas decisões ambientais e proteger defensores dos direitos humanos, muitos dos quais são lideranças indígenas e quilombolas. O acordo está aberto a 33 países da América Latina e Caribe, mas, dos 24 signatários, apenas 14 já o ratificaram, dificultando sua implementação e eficácia na região. No Brasil, onde o sangue dos que defendem a terra tem sido historicamente derramado com impunidade, levando-nos à posição lastimável de 2º país que mais mata defensores ao meio ambiente, o Acordo de Escazú é um pacto de esperança e resistência.
Às vésperas de sediar a COP 30, o Brasil tem a responsabilidade de liderar pelo exemplo. Precisamos mostrar ao mundo que sustentabilidade não é um conceito abstrato, mas uma prática viva nos territórios indígenas e tradicionais. É nos nossos territórios que a floresta fica em pé, que os rios correm livres, que o ar permanece puro. Temos um desafio de descolonizar a história, o olhar e o pensar, porque toda monocultura mata – e mata não somente o território, mas também o pensamento, nossa sociedade e nossas gerações. Temos que cuidar da Terra, pelo futuro da natureza, pelas nossas crianças, pelos que ainda estão por vir.
*Deputada federal pelo PSOL/MG, foi a primeira presidente da Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais da Câmara dos Deputados, e primeira indígena doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
**Texto publicado na edição 3 da revista Jatobá.