Por Simone Romero*
Expansão do agronegócio e da mineração ameaça lideranças e chega a envenenar comunidades inteiras.
Vinte anos depois do assassinato da missionária Dorothy Stang na região da Transamazônica, dezenas de lideranças socioambientais seguem marcadas para morrer no Pará.O estado, que sediará, em novembro, a 30ª Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas (COP-30), é a unidade da federação com maior número de ativistas ameaçados de morte. Apesar da visibilidade internacional e da comoção que homicídios como o da religiosa geram em todo o mundo, ainda faltam ações mais efetivas de enfrentamento aos crimes ambientais, promoção da regularização fundiária e demarcação de terras indígenas..
De acordo com o Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), executado pela sociedade civil com cofinanciamento dos estados e da União, mais de 150 lideranças no estado do Pará estão ameaçadas de morte e incluídas em ações protetivas – um número que pode ser ainda maior, se forem consideradas os ativistas que sofrem ameaças e sequer chegam a ser atendidos pelo Programa.
Entre os anos de 2019 e 2022, foram 143 violências cometidas contra defensoras e defensores no Pará, em sua maioria lideranças que atuam na defesa do meio ambiente, regularização fundiária, demarcação indígena e titulação quilombola. Entre os casos violentos, destacam-se 19 assassinatos, 77 ameaças e 25 atentados. Estes números fazem parte da pesquisa “Na Linha de Frente”, desenvolvida pelas organizações Terra de Direitos e Justiça Global, com base em dados coletados a partir de análise de notícias, casos assessorados pelas organizações e cruzamento de relatórios.
A invasão dos territórios por setores econômicos como o agronegócio, a mineração e a exploração madeireira, converte as lideranças socioambientais em alvos a serem eliminados no meio do caminho do capitalismo em direção ao lucro. “A tese do marco temporal é uma anunciação disso, assim como o assassinato de lideranças quilombolas e a imposição de minas e monoculturas nas terras utilizadas pelas comunidades tradicionais, o envenenamento de rios de comunidades ribeirinhas, o deslocamento forçado de comunidades já historicamente deslocadas. A terra também é a chave para a proteção desses defensores e defensoras”, destacou a relatora especial das Organizações das Nações Unidas sobre pessoas defensoras de direitos humanos, Mary Lawlor, em sua última visita ao Brasil.
Ameaças e envenenamento
Além das ameaças direta de morte, outro fator que coloca em risco a vida na Amazônia é o envenenamento, que tem atingido comunidades inteiras, com a pulverização aérea de agrotóxicos realizada em áreas como as de cultivo de arroz, na ilha do Marajó, e em plantios de soja nas regiões Nordeste, Sudeste e Oeste do Pará. Quase a totalidade dos estados brasileiros permite essa prática nociva, que tem gerado danos ao meio ambiente e à saúde das pessoas.
É o caso da comunidade São Francisco da Volta Grande, próximo à BR-163, no município de Belterra, no Pará, cujos moradores têm sido vítimas da pulverização indiscriminada de agrotóxicos por sojeiros da região. Por três vezes nos últimos dois anos, as aulas da Escola Municipal Vitalina Mota tiveram que ser interrompidas e estudantes e professores encaminhados aos postos de saúde com náuseas, vômito, alergias, dor na cabeça e nos olhos, por conta do veneno despejado nas plantações de soja no entorno do estabelecimento de ensino.
Após as duas primeiras ocorrências de contaminação, ainda em 2023, diversos órgãos foram acionados e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) proibiu o uso de agrotóxicos na área e aplicou uma multa de R$ 1 milhão ao sojeiro responsável pela pulverização. Mesmo assim, o despejo de pesticida seguiu e, em junho de 2024, mais de 20 pessoas passaram mal novamente.
“Vivemos sob risco. Não podemos sequer trabalhar e nossas crianças tem o direito básico à educação violado. Nos sentimos desrespeitados e ameaçados, enquanto o agronegócio avança sob nossas florestas e rios e nossas vidas, sem que o Estado faça algo de concreto, proibindo a pulverização de veneno e responsabilizando aqueles que destroem a Amazônia”, denuncia a professora da Escola Vitalina Mota, Heloíse Rocha.
Limites para a proteção
As constantes ameaças que as lideranças ambientais seguem sofrendo preocupam representantes de entidades que atuam na defesa dos direitos humanos. Mesmo com a chegada ao poder do governo Lula, os conflitos territoriais persistem e ainda há muito a avançar em temas como a demarcação de terras indígenas e regularização de comunidades tradicionais, na avaliação da advogada Suzany Brasil, do Programa Amazônia da Terra de Direitos e conselheira do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Pará (CEDH-PA). “A expectativa era bastante alta e não se concretizou. Na verdade, nesse momento, a maior preocupação que os nossos parceiros dos movimentos indígenas têm e que nós compartilhamos é o risco de retrocessos como, por exemplo, o marco temporal”, afirma.
Suzany destaca que a questão orçamentária tem sido uma barreira. “Os órgãos responsáveis pela regularização fundiária e reforma agrária, em sua maioria, tiveram os seus orçamentos reduzidos e têm sido desmantelados. Essa é uma questão que muito preocupa e que muito se tem debatido nas diversas esferas”, revela a advogada.
Em paralelo, a violência contra defensores e defensoras de direitos humanos vai sendo acrescida de novos contornos com a entrada de agentes como o tráfico, tanto de drogas quanto de armas e até de pessoas. “O crescimento da violência contra lideranças por pessoas relacionadas ao tráfico é um dado que acrescenta mais um desafio nesse cenário complexo de enfrentamento a esta violência”, preocupa-se Suzany.
Apesar das críticas, Suzany Brasil ressalta que é possível identificar alguns avanços nas políticas de proteção de defensores. “Ainda é incipiente diante do cenário, dos dados e da complexidade das violências, mas a gente tem visto nos últimos anos as instâncias internacionais pressionando o Brasil a dar essa proteção mais efetiva e o país vem fazendo movimentos que nos dão esperança de melhorias como, por exemplo, a implementação do Grupo de Trabalho Sales Pimenta, para a elaboração de propostas para a Política Nacional de Proteção a Defensores, e a retomada do Conselho Deliberativo, com a efetiva participação da sociedade civil. Além disso, temos em nível estadual a proposta de criação de pólos regionais do Programa de Proteção, com a mudança de instituição executora e as alterações na composição do Conselho Estadual de Direitos Humanos, que passou a ser paritário entre governo e sociedade civil”, avalia.
Para o advogado da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH) e membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Pará, Nildon Deleon, uma das limitações do Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras é o enfrentamento das questões estruturais e estruturantes dos conflitos. “A gente reivindica a proteção do defensor, mas a gente sabe que ela só vai ser garantida em sua integralidade quando se conseguir superar o motivo do conflito e se responsabilizar os autores das violações. É insuficiente a gente conseguir garantir medidas de proteção, muitas vezes individuais, para uma pessoa que está dentro de um ponto do conflito, sob ameaça, sem entender que é uma liderança que está dentro de um contexto de uma comunidade que também está desprotegida”, afirma.
Embora compreendam os limites da COP-30, as expectativas das lideranças é que a Conferência no estado do Pará jogue luzes sobre as ameaças de morte a defensores e amplie a repercussão das lutas dos povos da Amazônia, para que casos como o martírio de Dorothy Stang fiquem como memória do passado e não continuem sendo constante no presente e nem um anúncio de futuro para aqueles que dedicam à vida para defender a floresta, a terra e os rios.
*Jornalista.
**Texto publicado na edição 3 da revista Jatobá.