Por Quenia Gouveia
Mestre em TI, com pesquisa em Processamento de Linguagem Natural para identificar padrões em relatos de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Atua na área de dados desde 2018 e também atua como educadora popular de tecnologia pelo Núcleo de Tecnologia MTST.
A inteligência artificial (IA) emergiu como o principal motor da disputa geopolítica do século XXI, transformando não apenas economias e mercados de trabalho, mas também redefinindo os paradigmas de poder global. Sua influência permeia desde a automação industrial e a inovação tecnológica até a ampliação da capacidade de vigilância estatal e corporativa, gerando debates éticos e desafios regulatórios em escala mundial. No centro dessa disputa estão os Estados Unidos e a China, que dominam o desenvolvimento e a aplicação de IA, investindo bilhões em pesquisa, infraestrutura e talentos para consolidar sua hegemonia tecnológica. No entanto, a ascensão de novas abordagens, como a proposta pelo DeepSeek, baseada em modelos mais acessíveis e adaptáveis, abre uma janela de oportunidade para países como o Brasil e outras nações do Sul Global reivindicarem um papel de protagonismo nesse cenário. Para o Brasil, essa é uma chance única de alavancar sua posição estratégica, investindo em políticas públicas que incentivem a inovação, a formação de talentos em ciência de dados e a criação de ecossistemas tecnológicos sustentáveis. Além disso, a adoção de modelos de IA que priorizem a inclusão digital e a redução de desigualdades pode posicionar o país como um líder em soluções tecnológicas socialmente responsáveis. O Sul Global, por sua vez, tem a oportunidade de cooperar em iniciativas multilaterais, compartilhando conhecimento e recursos para desenvolver aplicações de IA que atendam às suas necessidades específicas, como agricultura inteligente, saúde pública, educação e gestão de recursos naturais. Dessa forma, a IA pode se tornar uma ferramenta de transformação não apenas econômica, mas também social, reduzindo a dependência tecnológica e promovendo um desenvolvimento mais equitativo e sustentável.
O que é Inteligência Artificial?
A inteligência artificial (IA) consiste em sistemas computacionais projetados para realizar tarefas que, até então, dependiam da inteligência humana, como reconhecimento de padrões, tomada de decisões e aprendizado a partir de dados. Esses sistemas são frequentemente baseados em técnicas avançadas, como aprendizado de máquina (machine learning), redes neurais artificiais e processamento de linguagem natural, que permitem a análise e interpretação de grandes volumes de informações de forma rápida e eficiente. Atualmente, a IA já está integrada a diversas áreas, revolucionando setores como automação industrial, medicina diagnóstica, segurança cibernética, finanças e até mesmo na criação de conteúdo digital, como textos, imagens e vídeos. Sua aplicação tem o potencial de aumentar a produtividade, otimizar processos e oferecer soluções inovadoras para desafios complexos, tornando-se uma das tecnologias mais transformadoras da era digital.
A concentração do poder tecnológico
A hegemonia no desenvolvimento da inteligência artificial (IA) está concentrada em duas potências globais: os Estados Unidos, onde gigantes como Google, Microsoft e OpenAI lideram a criação de modelos avançados e inovadores, e a China, que combina uma capacidade única de implementação em larga escala com um forte apoio governamental, consolidando-se como uma força dominante no setor. Ambas as nações controlam os recursos essenciais para a evolução da IA, como grandes volumes de dados, infraestrutura tecnológica de ponta e talentos especializados, o que lhes permite treinar modelos cada vez mais sofisticados. Essa dinâmica cria uma dependência global, na qual outros países ficam à mercê das inovações e padrões estabelecidos por essas potências.
No entanto, o avanço da IA não se limita ao aspecto técnico; ele traz consigo desafios políticos e sociais complexos. Entre eles, destacam-se o controle da informação e da narrativa pública, o uso militar de tecnologias autônomas e os impactos disruptivos no mercado de trabalho. Além da precarização de funções humanas devido à automação, há um aspecto menos visível, mas crucial, da indústria da IA: o trabalho humano de base, como a moderação de conteúdo e a validação de dados. Milhares de pessoas em todo o mundo, muitas vezes em condições precárias, são responsáveis por tarefas essenciais, como classificar imagens, revisar vídeos com cenas de violência ou realizar cliques repetitivos para treinar algoritmos. Esse trabalho, embora fundamental para o funcionamento dos sistemas de IA, frequentemente ocorre à margem, sem reconhecimento ou proteção adequada.
Para as nações que não investem em capacitação tecnológica e inovação, o risco é claro: tornarem-se meros consumidores passivos de ferramentas e sistemas desenvolvidos no Norte Global, sem autonomia para moldar o futuro da IA de acordo com suas próprias necessidades e valores.
O DeepSeek e a oportunidade para o Brasil
A ascensão do DeepSeek representa um ponto de inflexão no cenário global da inteligência artificial. Diferente das abordagens convencionais, que reforçam a dependência de
grandes potências e corporações, o DeepSeek propõe um modelo de IA mais acessível, democrático e adaptável, abrindo caminho para que países emergentes desenvolvam soluções tecnológicas autônomas e alinhadas às suas necessidades específicas. Para o Brasil, essa é uma oportunidade histórica de superar sua posição periférica no setor tecnológico e reduzir a dependência de ferramentas e sistemas estrangeiros. O país já conta com uma base científica sólida, universidades e centros de pesquisa de excelência, além de uma comunidade ativa de desenvolvedores e entusiastas de tecnologias de código aberto. Esses ativos, somados a um ecossistema empresarial em crescimento, formam as bases necessárias para o desenvolvimento de uma IA nacionalmente relevante e socialmente responsável.
No entanto, para aproveitar essa janela de oportunidade, é essencial um esforço coordenado entre o setor público, as instituições acadêmicas, a iniciativa privada e os movimentos populares. Políticas públicas que incentivem a inovação, a formação de talentos e o investimento em infraestrutura tecnológica são fundamentais. Além disso, é crucial que o desenvolvimento da IA no Brasil priorize aplicações que atendam aos desafios locais, como a melhoria dos serviços públicos, a otimização da agricultura e a redução das desigualdades sociais. Com uma estratégia bem articulada, o Brasil pode se tornar não apenas um consumidor de tecnologia, mas um polo de inovação e referência no Sul Global, inspirando outros países a seguir um caminho semelhante.
A e soberania digital
Para transformar essa janela de oportunidade em realidade, é imprescindível um compromisso firme com a soberania digital. Isso significa não apenas investir em infraestrutura tecnológica de ponta, mas também estabelecer uma regulamentação robusta que proteja os dados nacionais do monopólio estrangeiro e promova o desenvolvimento de modelos de IA alinhados às necessidades e aos interesses da população brasileira. A inteligência artificial não pode ser um instrumento de dominação tecnológica; ela deve servir como uma ferramenta estratégica para fortalecer políticas públicas, democratizar o acesso à informação e garantir que seus benefícios alcancem a maioria da população, e não apenas as grandes corporações.
Nesse contexto, movimentos sociais como o MTST e outras organizações populares têm um papel fundamental a desempenhar. Ao pressionar por políticas públicas inclusivas e transparentes, essas organizações podem assegurar que a IA seja utilizada de forma democrática, evitando que a tecnologia reproduza ou amplifique desigualdades estruturais. A luta por uma inteligência artificial justa e acessível deve ser parte integrante da agenda por um projeto nacional de desenvolvimento soberano e inclusivo.
Se bem direcionada, a inteligência artificial pode se tornar uma poderosa aliada na organização social, na promoção da justiça e na construção de um país mais autônomo e equitativo. No entanto, isso só será possível se houver uma mobilização coletiva para garantir que a tecnologia sirva ao povo, e não aos interesses de poucos. A soberania digital não é apenas uma questão técnica; é uma bandeira política e um imperativo ético para o Brasil do século XXI.
Conclusão
A ascensão do DeepSeek revela que o domínio tecnológico das potências globais não é inevitável. Há espaço para alternativas que desafiem a hegemonia dos EUA e da China, abrindo caminho para um desenvolvimento tecnológico mais plural e inclusivo. No entanto, essa oportunidade não será eterna. O Brasil precisa agir com urgência e determinação para não apenas acompanhar, mas liderar essa transformação. Isso exige investir no desenvolvimento de soluções tecnológicas próprias, capazes de atender às demandas locais e garantir a soberania digital do país.
A revolução da inteligência artificial não pode ser um privilégio de poucos; ela deve ser um instrumento para reduzir as desigualdades sociais e regionais, promovendo acesso universal a ferramentas digitais e fortalecendo políticas públicas que beneficiem a maioria da população. Para isso, é essencial uma articulação política robusta, que una governo, setor privado, academia e movimentos sociais em torno de um projeto comum. Investimentos estratégicos em infraestrutura, educação e pesquisa são fundamentais, mas não suficientes. É preciso uma visão de longo prazo que coloque a tecnologia a serviço do povo, priorizando a inclusão digital, a proteção de dados e a criação de empregos qualificados.
O momento é decisivo: ou o Brasil assume o protagonismo na construção de uma inteligência artificial soberana e socialmente responsável, ou corre o risco de perpetuar sua condição de mero consumidor passivo de tecnologias estrangeiras. A escolha é clara: a revolução da IA deve ser nossa aliada na construção de um país mais justo, autônomo e preparado para os desafios do futuro.