Por Ualid Rabah
Presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), paranaense, filho de pai e mãe palestinos radicados no Brasil desde a década de 1960.
O projeto colonial ainda em curso na Palestina já dura quase 110 anos, a contar a partir da chegada das botas britânicas em Jerusalém, em 1917, ou da Declaração Balfour, de 2 de novembro do mesmo ano. Continuou por anos a fio até 1947, quando começou a limpeza étnica (agora em seu 78º ano) – iniciada nos povoados de Deir Ayub, Beit Affa e Lifta, de 17 a 28 de dezembro. O Estado que dá cara a esse processo, denominado Israel, quando de sua autoproclamação, em 14 de maio de 1948, nunca esteve tão descoberto frente à opinião pública global no que lhe é mérito e forma: o extermínio do povo palestino.
Em alguns momentos anteriores, outros mais recentes, o regime sionista já havia chocado a comunidade internacional e sua opinião pública. Isso ocorreu em situações como os massacres de refugiados palestinos em Sabra e Chatila (Líbano) em setembro de 1982, considerado ato de genocídio pela Resolução da ONU 37/123, de 16 de dezembro do mesmo ano; na Primeira Intifada, a chamada “revolução das pedras”, iniciada em dezembro de 1987. Há mais recentemente o cerco e massacre no campo de refugiados de Jenin (2000), na Cisjordânia ocupada, e todos os ataques a Gaza desde 2008/9, os mais destrutivos desde a Nakba (1947/51). Entretanto, nada se compara ao horror provocado pelo extermínio em Gaza desde 7 de outubro de 2023, inclusive nos EUA, país que verdadeiramente promove o genocídio, com suas armas, recursos financeiros, apoios político e diplomático e, claro, o veto no Conselho de Segurança da ONU, que garante a impunidiade de Israel e sua ampla liberdade para agir ao arrepio do Direito Internacional.
Essa repulsa não resulta somente do ineditismo de ser o primeiro genocídio televisionado da história, permitindo a audiências de todo o globo acompanhar, em tempo real, o extermínio de civis em suas casas, hospitais, escolas, igrejas e mesquitas, centros comunitários e abrigos da ONU, mas também dos números inigualáveis do genocídio atual.
As crianças assassinadas, por exemplo, são 22.300, somadas às mais de 4 mil desaparecidas sob os escombros. São 10.018 crianças palestinas exterminadas por milhão de habitantes em Gaza. Para termos ideia do quanto isso é inigualável na história das guerras e dos genocídios, na Segunda Guerra Mundial, em seis anos (não em 1 ano e 4 meses), foram mortas 2.813 crianças por milhão de habitantes da Europa. Ou seja: Israel, os EUA e o “ocidente” de forma geral, exterminaram, por milhão de habitantes, 3,56 vezes mais crianças palestinas em Gaza do que em todo o período da Segunda Grande Guerra.
O extermínio de mulheres também não tem paralelo: mais de 13 mil, o que equivaleria a 1,2 milhão no Brasil. Sem considerar que pelo menos mil delas foram assassinadas grávidas, ou, ainda, que os abortos involuntários aumentaram 300% no período. Os extermínios de mulheres e seus filhos nos informam de um intento macabro jamais visto: fazer colapsar a capacidade reprodutiva da sociedade palestina, isto é, uma esterilização coletiva, que é uma ferramenta no processo de limpeza étnica, ou seja, impedir que o povo palestino cresça, ou mesmo mantenha sua demografia atual.
O número total de mortos é, oficialmente, de 62.290, considerados os estimados (até agora) 11.200 desaparecidos sob os escombros. São assombrosos 2,8% da população de Gaza, ou o equivalente a 5,8 milhões de pessoas no Brasil. Se tivesse sido na Europa, teria sido o extermínio superior a 21 milhões. A gravidade do que se passava foi vista pelo mundo nos pedaços de corpos de mulheres e crianças palestinas em Gaza, mas só num segundo momento se caracterizou o genocídio – no que a Fepal foi pioneira. Ficou demonstrado e reconhecido por governos e órgão internacionais que estamos diante de um genocídio e que seus números são inéditos, no que é, proporcionalmente, o maior extermínio de todos os tempos, em todos os quesitos, inclusive de destruição.
A cartada do suposto “antissemitismo”
A qualificação de genocídio para o que está acontecendo em Gaza levou os sionistas e seus defensores a buscarem desacreditar os números e desqualificar o banho de sangue – como o fazem os dirigentes do regime israelense. Diante da impossibilidade de contradizer o óbvio, os sionistas, com auxílio da mídia hegemônica (cúmplice dos crimes de guerra), passaram a adotar, como suposto “antídoto”, uma generalizada criminalização de qualquer menção aos crimes de “Israel” ou de qualquer denúncia do sionismo como a ideologia colonial, supremacista e genocida que é.
A estratégia ideológica é se valer da velha, surrada e vulgar chantagem de qualificar qualquer reação ao massacre como “antissemitismo” – termo equivocado historicamente, mas que virou uma grife sionista para designar um suposto antijudaísmo (que, na verdade, define mais corretamente a discriminação das pessoas de religião judaica). A chantagem do “antissemitismo” tem três facetas distintas. A primeira visa carimbar de racistas os que acusam os crimes de Estado sionista. A segunda, mais recente, busca criminalizar os defensores da Palestina e críticos de Israel de forma mais ampla, isto é, considerar “crime” qualquer crítica ao Estado ou ao regime de Israel e sua ideologia expansionista e supremacista. O terceiro aspecto é mais sutil, por isso imperceptível até para muitos críticos do sionismo e de sua criatura estatal: considerar os professantes do judaísmo um grupo humano que realmente teria saído da Palestina e que para lá estaria retornando. Este talvez seja o aspecto mais importante, pois sem esse falseamento não existiria o sionismo e sua aventura genocida na região.
O uso distorcido do termo “antissemitismo” pelos defensores dos crimes do Estado sionista não é um mero equívoco que os levaria a deixar de lado a palavra antijudaísmo, que melhor define o caso. Trata-se, na verdade, de algo medular para o sionismo e seus mitos para a Palestina, seu expansionismo sobre terras palestinas e sua limpeza étnica. A acusação generalizada de “antissemitismo” aos críticos do Estado de Israel é uma política de Estado, elaborada e levada adiante por seus dirigentes civis e militares, suas máquinas de propaganda, especialmente no Ocidente, e seus tentáculos, as organizações do lobby sionista, os veículos de comunicação hegemônicos e setores dos mundos acadêmico e da cultura – que alimentam uma indústria de justificativas pseudointelectuais ou de narrativas históricas romantizadas em favor de Israel, na literatura e nos audiovisual (cinema e TV).
Alguém crítico do sionismo e dos crimes contra os palestinos é, muito frequentemente, banido desses meios ou silenciado pela censura. Os temores frente à censura não são desmedidos. A indústria do cancelamento e da perseguição tem levado a demissões de acadêmicos e artistas, além do uso do judiciário para processos contra os críticos. Isso conduz a condenações injustas e ilegais, ou ao grande desgaste provocado pelo uso planejado do lawfare, parecido com o que Lula enfrentou. É o que sofre ainda o jornalista Breno Altman, perseguido por organizações sionistas brasileiras. A suprema hipocrisia: Altman é judeu e “antissemita”! Essa é a acusação mais frequente porque atinge todos os cidadãos comuns, sejam ou não parte da solidariedade organizada aos palestinos: basta que se indignem com as atrocidades israelenses na Palestina e se posicionem criticamente.
A situação ficou mais grave depois de 2016, quando algo denominado Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA, por suas iniciais para o inglês) ampliou, numa espécie de manual, denominado A Definição Prática de Antissemitismo da IHRA, a “definição” de “antissemitismo”, abarcando nele os que criticam o Estado de Israel ou o sionismo como ideologia. A nova definição parte do que é alegadamente consensual (antissemitismo como discriminação de professante do judaísmo ou da coletividade judaica), incluindo na definição todos os que criticam o Estado sionista, com o objetivo de blindar esse Estado e tornar seu regime e seus dirigentes livres de responder por seus crimes. Dentre as inovações contidas em A Definição Prática de Antissemitismo da IHRA, figura como “antissemitismo” qualquer ação que faça “comparações entre a política israelense contemporânea e a dos nazistas”. Por essa nova “regra”, algumas centenas de milhões de pessoas no mundo seriam “antissemitas”.
Outra absurda inovação da ideologia sionista é acusar as pessoas, organizações e Estados de um comportamento, para com Israel, que não adotartiam frente a outros países que, alegam, também teriam as mesmas práticas israelenses. Logo, se acusam apenas Israel de crimes praticados também por outros regimes, estariam discriminando o regime israelense. No imaginário sionista, outros Estados são abertamente regimes supremacistas, bem como praticam limpeza étnica, mas não são recriminados como Israel é. Por absurda que seja a formulação sionista – somente Israel, na atualidade, é regime abertamente de apartheid e promotor de limpeza étnica como política de Estado –, na prática ela diz que outros que agem como o regime israelense, mas o mundo condena apenas os israelenses. É como ter vetado, há 20 ou 30 anos, que se criticasse o apartheid da África do Sul se não se fizesse o mesmo em relação à Namíbia.
A definição é tão farsesca que dá a entender que o mundo está cheio de regimes oficialmente de apartheid, que Israel não seria o único Estado dotado de um obsceno regime segregacionista, racista e supremacista. À luz dessa aberração, a investigação que Israel enfrenta na Corte Internacional de Justiça pelo crime de genocídio é prática “antissemita”, assim como as ordens de prisão contra Netanyahu emitidas pelo Tribunal Penal Internacional.
Uma terceira inovação é ainda mais grave: “antissemitismo” passa a ser também negar ao povo judeu o seu direito à autodeterminação. Assim, acusar o sionismo de ideologia colonial, racista, genocida e baseada, a priori, num plano de limpeza étnica na Palestina (elementos que a constituem, vastamente comprovados por documentos e pesquisas), passa a ser ação que nega aos judeus o seu “movimento de autodeterminação”. Como se a agressividade militar colonial e expansionista de Israel fosse uma luta pela libertação nacional anticolonial do povo judeu! Ora, se era na Europa que habitavam, e na qual grassava um violento antijudaísmo, por que foram criar um Estado onde havia um povo dono das terras, a Palestina, e não na própria Europa? Assim, segundo essa ideologia, basear-se na História para afirmar que Israel é um empreendimento colonial desde o princípio passa a significar negar aos colonialistas sionistas a existência do Estado de Israel. Seria como proibir os indianos de acusar de colonialismo a Inglaterra, pois os ingleses estariam apenas buscando autodeterminação na Índia. O mesmo poderia ser alegado pelos supremacistas brancos na África do Sul.
Por fim, temos a forma mais sutil e estratégica de instrumentalizar o suposto “antissemitismo”: os euro-judeus vítimas do antijudaísmo seriam “semitas” e, logo, vítimas de preconceito e perseguição devido a essa condição, o que é uma deturpação da razão concreta. Eles foram discriminados e mortos por serem judeus. A condição de professar o judaísmo foi a razão da perseguição e de todos os crimes contra os euro-judeus.
O binômio “semitismo”-”antissemitismo” permite então fixar a grande invenção de que se serve o sionismo: o “retorno” dos judeus à Palestina depois de uma alegada “diáspora”. Sem o mito do “retorno” não há como sustentar o projeto colonial por assentamento baseado na limpeza étnica da população originária. Os sionistas não seriam estrangeiros que roubaram os donos palestinos das terras, mas apenas inocentes retornados, que ficaram de fora de “seu lugar” por alegados 2 mil anos. Pouco importa se estão limpando etnicamente quem está ali há milênios, os palestinos, que passaram pelo judaísmo, tendo abandonado outras religiões que lhe eram anteriores, depois migrado para cristianismo e islamismo sucessivamente.
Falar em antijudaísmo (e não antissemitismo) facilita enxergar os fenômenos históricos em seus lugar e espaço. Isto é, na Europa e nos territórios outros para onde aquela população judaica migrou a partir de solo europeu. O antijudaísmo se tratou de discriminação e perseguição a pessoas europeias, apenas diferentes em sua confissão religiosa. Mas reconhecer que o antijudaísmo baseou-se em discriminação religiosa (e religião se dá por conversão e não por “raça”) acaba com o mito de um povo-raça ancestral, expulso de uma terra prometida, que ficou imutável como “semita” durante 18 séculos na Europa, apenas aguardando o retorno.
Se quisermos enfrentar o sionismo e acabar com o sofrimento do povo palestino, precisamos compreender o mito do “semita” e do “antissemitismo”, vértebras do sionismo e de seu genocídio na Palestina. Aliás, compreendido o mito, se liberta a Palestina e o judaísmo dessa armadilha supremacista.