Por Elias Jabbour
Presidente do Instituto Pereira Passos (Rio), professor associado de Ciências Econômicas e das pós-graduações em Economia e Relações Internacionais da UERJ. Membro do Comitê Central do PCdoB.
Existe um consenso, que namora com noções de “fim da história”, que coloca a China como uma mera experiência de capitalismo de Estado, ou mesmo de capitalismo liberal. Trata-se de uma forma equivocada de lidar com a emergência de uma forma histórica única, que deveria desafiar a nossa ciência social a desvendar o real fluxo dos acontecimentos, para construir um novo cabedal teórico, conceitual e categorial com vistas, também, a promover uma visão mais séria e científica sobre o socialismo.
A necessidade de uma maior compreensão sobre o movimento real chinês, e seus conceitos anexos, é algo que reside não somente no fato deste país ser o maior parceiro comercial do Brasil e de cerca de outros 140 países, mas no poder que exerce sobre as estruturas de oferta e demanda em todo o mundo, ou ainda na sua participação central em uma série de iniciativas globais, tendo a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) [1] a expressão real de uma globalização produtiva que compete com a “desglobalização” capitaneada pela grande finança estadunidense. Essa necessidade busca preencher uma lacuna deixada pela ciência social. Sem esse processo de renovação do pensamento sobre a natureza chinesa não estaremos prontos para apreciar as possibilidades abertas por esse projeto sem o desenvolvimento de uma teoria adequada sobre aquela formação econômico-social nova (Jabbour; Dantas; Espíndola, 2021).
Um bom pressuposto para essa renovação do pensamento é situar o marxismo como uma ciência do poder político por excelência. Essa localização está em linha com Losurdo (2022) que destaca o quanto é improdutivo e formalista não pensar o marxismo como compreensão científica da transformação da realidade. Por outro lado, essa visão limpa o terreno de visões idílicas e lúdicas sobre o socialismo e o coloca no campo da prática política amparada por uma ciência voltada à transformação da realidade.
Logo, socialismo e “transformação da realidade” se combinam sob forma de um poder político disposto a mudar, de forma radical, primeiramente a feição da base material de um país – a China em particular. Chamamos a atenção ao fato de que: “a história do socialismo no século XX ser a história das sociedades que iniciaram praticamente do zero seus projetos de emancipação – uma vez que se tratavam de países destruídos ou semidestruídos por guerras –, então inexistiam ou eram incipientes tanto uma classe operária qualificada e capaz de dirigir o Estado, a produção e a distribuição de bens quanto o desenvolvimento suficiente das forças produtivas para um processo de superação do capitalismo. Isso, por si só, já possui elementos suficientemente complexos para elevar o grau do processo de conceituação dessas experiências (Jabbour e Capovilla, 2024, p. 10-11).
É fundamental perceber que o socialismo em nossa época, tendo a China como sua experiência mais significativa, é um instrumento político orientado ao objetivo do pleno desenvolvimento das forças produtivas. Esse processo deve ser seguido por uma emancipação do pensamento, em busca de formas e combinações de diferentes dimensões da sociedade com aquele objetivo estratégico. Deixar de lado visões apriorísticas sobre, por exemplo, a propriedade privada, o mercado e a ação da lei do valor é fundamental à construção de uma visão totalizante de um processo complexo como o observado na China.
A questão do poder é fundamental e o bloco histórico que controla os destinos da China guarda diferenças fundamentais em relação aos países capitalistas. Trata-se de composição político-social nucleada por forças que advogam o sentido socialista – notadamente o bloco histórico formado pelo Partido Comunista da China (PCCh), incluindo seu braço armado, o Exército de Libertação Popular (ELP) e seus aliados –, executam transformações mediante novos arranjos nas relações e forças produtivas, como também no âmbito cultural e epistêmico.
São os frutos desse movimento real e laborioso que possibilitam construção teórica e categorial no socialismo científico atual. Nesses parâmetros, somos obrigados a recusar caracterizações do marxismo assentadas no ascetismo moral sob os auspícios de “redenção daqueles que ocupam o último degrau da hierarquia social, a redenção dos pobres e dos ‘pobres de espírito’” (Losurdo, 2020, p. 116).
Em linha com o poder político de novo tipo, a base material do país reflete uma estratégia tanto socializante quanto capaz de liderar um verdadeiro boom de inovações tecnológicas e capacidade de competir, e vencer, no mercado internacional liderado por grandes monopólios e oligopólios capitalistas. Esses dois lados da moeda sintetizada na formação de uma economia monetária de produção nucleada pela propriedade pública, cria condições para inovações tecnológicas disruptivas, além de novas e superiores formas de planificação econômica. Estas, por sua vez, fizeram ressurgir na China uma espécie de “economia de projetamento” ou “projetamento novo” (Jabbour et al, 2023; Jabbour & Moreira, 2023).
A economia de projetamento aqui, enquanto expressão de uma nova síntese na junção entre plano e mercado, nos remete ao próprio Marx em seu seminal texto “Fragmento sobre as máquinas” em que expõe, como ponto de chegada, o que um dia chamou de “força do saber objetivada” (Marx, 1857-1858 [2011], p. 944). Segundo Losurdo (2022, p. 139), “o prodigioso desenvolvimento contínuo de energias renováveis que não necessitem de combustíveis fósseis (limitados e altamente poluentes) demonstra mais uma vez que os avanços da tecnologia, essa “força do saber objetivada” humana, identificada e celebrada por Marx, contêm um potencial efeito prodigioso de libertação, tanto no que diz respeito às relações sociais como no tocante às relações entre o homem e a natureza. Só que esse resultado está longe de ser óbvio. Na verdade, será inatingível enquanto a “ciência” continuar a ser obrigada a “servir ao capital”.
Desse modo, também compreendemos o socialismo como sistema do exercício prático do poder político na transformação da realidade, em que conceitos e categorias como “desenvolvimento desigual”, “planejamento” e “projetamento” absorvem o fluxo dos acontecimentos em constante tensão dialética para aplicação aos desafios da conjuntura. Por isso mesmo, essas determinações são centrais na investigação e exposição analítica do socialismo chinês. Substancialmente, todo esse sistema categorial são extensões da luta de classes – compreendida como luta política – assimilada teoricamente e que, em seu conjunto, buscam superar o reducionismo empírico inerente às noções de “classe versus classe”.
Por fim, há o desafio intelectual de decifrar a forma histórica que o socialismo toma em nossos dias e na China em particular. O “socialismo com características chinesas” é uma forma histórica que se desenvolve à luz das contradições do capitalismo contemporâneo, dos limites que a predominância do sistema capitalista impõe a formações econômico-sociais orientadas ao socialismo e das cada vez maiores possibilidades que seu ecossistema produtivo e de planejamento viceja, à medida que alcança graus superiores em capacidade de previsão e execução de grandes projetos. Aqui está uma maneira nada peculiar de observar o desenvolvimento chinês, no qual o planejamento passa a ser orientado por grandes projetos. E o que os grandes projetos nos revelam tendo em vista o renascimento do “projetamento” por aquelas bandas?
Nesse contexto, devemos observar a outra ponta explicativa do surgimento do “projetamento novo”. A decisão estratégica tomada desde o 11º Plano Quinquenal (2006-2010), de recriar um sistema nacional de inovação tecnológica (SNTI) cujo ecossistema é composto pelas GCEEs, conglomerados privados, sistema financeiro público e universidades, foi responsável pelo surgimento de revoluções tecnológicas disruptivas como o 5G, o Big Data e a Inteligência Artificial. Para nós, existe uma relação direta entre tais inovações e o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica e, por conseguinte, da nova economia do projetamento.
Ora, projetamento pode ser definido em termos da busca da razão na relação entre custo e benefício anexos a cada projeto (Rangel, 1959 [2005]). Observado no conjunto, isso significa, buscar trocar o curtoprazismo do empresário privado pelo bem-estar da sociedade, que deve ser mobilizada para circunscrever o desemprego a algo intrínseco ao capitalismo. Projetamento, nesse sentido, significa o emprego da razão humana para enfrentar as contradições geradas pelo processo de desenvolvimento.
Por exemplo, entre 2013 e 2022, o índice de urbanização da China saiu de 52% para 64%, significando que ao menos 150 milhões de pessoas saíram do campo para a cidade em um curtíssimo espaço de tempo. Esse fenômeno ocorreu na China sem que as profundas assimetrias vistas no Brasil e na Índia (como a vasta favelização das periferias urbanas) sejam observadas. A nosso ver, esse processo demanda elevado grau de utilização da inteligência coletiva acumulada que ainda não conseguimos aferir.
Nesse ponto em particular é que o projetamento deixa de ser ancilar ao planejamento para se tornar estágio superior de planificação e, mesmo, da própria economia socialista de mercado, como apontamos recentemente (Jabbour; Dantas; Espíndola; Velozzo, 2023). Nesse estágio superior, chegamos ao papel da razão enquanto mediação entre o custo e o benefício. Buscamos compreender, a partir da História chinesa, as propriedades e modos pelos quais o socialismo tem emergido, ante profundos desafios. As contradições criadas em décadas de crescimento ininterrupto provocam as mediações do projetamento como resposta sistemática a essas questões.
A nova economia do projetamento também pode ser vista como governança baseada no exercício da razão: liderança política comprometida com a totalidade dos desafios a serem enfrentados na consecução dos objetivos nacionais do desenvolvimento, prosperidade e bem comuns socialistas. Uma espécie de Science-Led Government que confere ao socialismo com características chinesas uma forma histórica especial na transformação da razão em instrumento de governo. Sem dúvida, a engenharia social mais avançada de nossa época a serviço dos desafios nacionais e da prosperidade comum.
NOTA:
[1] A ICR completou dez anos e é responsável por investimentos, que a depender da fonte, varia de 1 trilhão a 1,5 trilhão de dólares, contando com a participação de cerca de 150 países envolvidos em um grande programa de conexão global abrangendo milhares de projetos de infraestrutura. Esse protagonismo levou autores como Vadell & Burger (2019) a trabalharem com a visão de “globalização instituída pela China”. As outras iniciativas visam expor a visão chinesa de “comunidade de destino compartilhado” (Staiano, 2023). Os empreendimentos para “a civilização global”, para a “segurança global” e o “desenvolvimento global” expressam as ideias-força da presença no mundo da milenar civilização chinesa e exprimem as filosofias tolerantes e civilizatórias que emergiram de seus ricos vales férteis (Jabbour, 2006; Mamigonian, 2008).
REFERÊNCIAS:
• JABBOUR, E. Considerações gerais sobre o marxismo e a Ásia. Revista Princípios, n. 82, p. 46-50, 2006.;
• JABBOUR, E.; DANTAS, A.; ESPÍNDOLA, Carlos; VELLOZO, J. The (new) projectment economy as a higher stage of development of the Chinese market socialist economy. Journal of Contemporary Asia, v. 53, n. 5, 2023.
• JABBOUR, E.; GABRIELE, A. China: o socialismo do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2021. • JABBOUR, E.; MOREIRA, U. From the national system of technological innovation to the “New Projectment Economy” in China. Brazilian Journal of Political Economy, v. 43, n. 3, p. 543-563, 2023.
• JABBOUR, E.; CAPOVILLA, C. Pressupostos dialéticos acerca do socialismo e projetamento na China de hoje. Economia e Sociedade, v. 33, n. 3, p. 1-24, 2024.
• LOSURDO, D. A questão comunista. São Paulo: Boitempo, 2022.
• LOSURDO, D. O marxismo ocidental – como nasceu, como morreu, como pode renascer. São Paulo: Boitempo, 2018.
• MAMIGONIAN, A. A China e o marxismo: Li Dazhao, Mao e Deng. In.: DEL ROIO, M.: (Org.). Marxismo e Oriente: quando as periferias tornam-se os centros. Marília: Ícone, 2008.
• MARX, K. (1844). Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
• RANGEL, I. (1959). Elementos de economia do projetamento. In: RANGEL, I. Obras reunidas. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
• STAIANO, M. F. Chinese law and its international projection building a community with a shared future for mankind. Singapore: Springer, 2023.
• VADELL, J.; SECCHES, D.; BURGER, M. De la globalización a la interconectividad: reconfiguración espacial en la iniciativa Belt & Road e implicaciones para el Sur Global. Revista Transporte y Territorio, n. 21, p. 44-67, 2019.