Da Redação
Ninguém imaginava que a viralização de um vídeo, feito em meados de 2023, de um trabalhador do comércio, indignado com a sua escala de trabalho exaustiva e predatória – que não oferece tempo para o descanso e para a realização de outras atividades além do trabalho – poderia ser o estopim para a principal mobilização social em torno dos direitos trabalhista das últimas décadas.
Estamos falando do carioca Rick Azevedo, que transformou sua indignação em luta pelo fim da escala 6 X 1,pela qual milhões de trabalhadores de comércio e serviços no Brasil trabalham 6 dias e folgam apenas um. Além do vídeo, Rick iniciou a construção de um movimento denominado Vida Além do Trabalho (VAT), articulando panfletagem para comerciários e para transeuntes nas ruas, com ações nas redes. O abaixo-assinado encabeçado pelo VAT, que reivindica a revisão da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) estabelecendo o fim da escala 6×1, já reuniu 2,9 milhões de assinaturas.
No texto da petição pública, o movimento VAT é categórico: “Nós, cidadãos e cidadãs preocupados com as condições de trabalho no Brasil, vimos por meio deste abaixo-assinado expressar nossa profunda inquietação em relação à atual situação dos trabalhadores brasileiros e solicitar uma revisão na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) com o objetivo de proporcionar uma vida além do trabalho”.
O alcance das ações protagonizadas pelo VAT demonstram o quanto é relevante a jornada de trabalho na vida cotidiana de milhões de pessoas. As rotinas de 10, 12 horas de trabalho diário, plantões de fim de semana e folga em qualquer dia da semana têm consequências psicossociais, assinala o texto do abaixo-assinado do movimento: “É de conhecimento geral que a jornada de trabalho no Brasil frequentemente ultrapassa os limites razoáveis, com a escala de trabalho 6×1 sendo uma das principais causas de exaustão física e mental dos trabalhadores. A carga horária abusiva imposta por essa escala de trabalho afeta negativamente a qualidade de vida dos empregados, comprometendo sua saúde, bem-estar e relações familiares”.
A força do movimento ficou evidente, em novembro de 2024, com a eleição do até então pouco conhecido Rick Azevedo para vereador do Rio de Janeiro (pelo PSOL). A grande bandeira do VAT transformou-se logo depois das eleições em um Projeto de Lei, encabeçado pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP). A apresentação do PL, apoiado por todo o PSOL e muitas figuras de outros partidos, ajudou a levar o debate sobre as condições de trabalho aos títulos das mídias corporativas e ao parlamento.O PL já obteve assinaturas de parlamentares suficientes para começar a ser apreciado pela Câmara Federal. Com o tamanho da repercussão na sociedade, pressionando inclusive setores da direita, tem grande chance de ser aprovado, embora continue dependendo da continuidade da pressão social.
Novas questões para a organização da classe trabalhadora
O surgimento do movimento VAT e a repercussão da luta pelo fim da escala 6×1 são expressões das transformações do mundo do trabalho ocorridas nas décadas neoliberais — dos anos 90 para cá no Brasil — que enfraqueceram a indústria, com a total abertura dos mercados para investimentos externos, flexibilizaram de fato os princípios de relações capital-trabalho inscritos na CLT e abriram caminho para ainda maior exploração dos assalariados nas fábricas, no comércio, serviços e plataformas digitais.
Todas essas mudanças, coroadas pela reforma trabalhista implementada por Temer e comemorada por Bolsonaro, debilitaram sindicatos e centrais (que tiveram papel decisivo no século XX) e colocaram novos desafios para a organização da classe trabalhadora. Os avanços tecnológicos (robotização e digitalização que facilitou a globalização das cadeias produtivas) reduziram drasticamente a presença de trabalhadores nas fábricas. Paralelamente, o aumento significativo dos centros urbanos ampliou consideravelmente a oferta de empregos nos setores de comércios e serviços, setores com menor tradição de luta e organização sindical, portanto historicamente de baixos salários e longas jornadas,e exaustivos deslocamentos entre o local de moradia e o trabalho.
Essa dinâmica impõe uma rotina estressante, que limita as possibilidades de estudos, de lazer, vida familiar e de outras formas de sociabilidade e integração social. Muitas vezes, a alternativa que a trabalhadora ou o trabalhador encontra para ter mais controle sobre o seu tempo e rotina é o bico para completar a renda, pois em geral não se quer perder a carteira assinada que garante algum direito. No extremo, acontece o abandono do trabalho assalariado tradicional, para buscar sustento no trabalho autônomo – o que gera em princípio alívio, graças à sensação de autonomia, mas na maioria das vezes acentua a precariedade das condições de trabalho.
Em tempos de crescimento de redes e plataformas, uma das alternativas mais buscadas é o trabalho autônomo mediado por uma plataforma, o que se generaliza nos serviços de entrega de comida, remédios e outros produtos comprados pela internet, além do transporte individual como carro ou moto. Mas também temos o empreendedorismo das pequenas iniciativas de serviços, como de cabeleireiros, manicure, conserto de celular, e do comércio, como na preparação e venda de alimentos, ou de roupas e bugigangas em geral nas ruas e transporte público. Todo esse processo é incentivado pela ideologia neolieral do “faça você mesmo” porque a “prosperidade” vem.
Outro agente importante nessa dinâmica são as redes sociais, numa rotina em que os trabalhadores ficam longos períodos em deslocamento, com pouco ou nenhum espaços de sociabilidade presencial e na qual o celular é item essencial de diálogo, conexões, fluxo de informações, interferindo inclusive na percepção que as pessoas têm sobre a realidade, portanto é uma zona importante de disputa.
Por fora das estruturas tradicionais dos sindicatos, associações e partidos de esquerda, Rick Azevedo e seus companheiros e companheiras ganharam espaço e apoio porque são parte da nova realidade de uma parcela significativa da classe trabalhadora, especialmente a mais jovem. Isso nos traz duas reflexões muito importantes. A primeira, é que o VAT viralizou porque Rick fala a partir da sua vivência, expressando o sentimento de milhões de pessoas que vivem nas mesmas condições hostis impostas pelo capitalismo atual. A segunda reflexão, que deriva da primeira, é que a luta de classes segue viva e tem espaço para crescer, desde que sejam compreendidas as novas dinâmicas do mundo do trabalho.