Almir Felitte
Advogado, mestre em Direito pela USP (Ribeirão Preto) e autor de História da Polícia no Brasil: Estado de exceção permanente?
Quando o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) entrou na Vila Cruzeiro na tarde de 26 de novembro de 2010, o helicóptero da Globo sobrevoava a comunidade carioca para transmitir ao vivo as cenas que rodariam o país. Mais de uma centena de traficantes fugia de uma operação policial pela estrada de terra do Morro do Caricó. Dois dias depois, a mesma polícia hasteou as bandeiras do Brasil e do Rio de Janeiro no ponto mais alto do Complexo do Alemão. Em solo, jornalistas cobriam os fatos com coletes a prova de balas. Efusiva, a apresentadora do RJTV (Globo) estava acompanhada do ex-Bope que inspirou o famoso personagem “Capitão Nascimento”, que pedia à jornalista que chegasse um pouco mais perto das bandeiras.
Dias antes, o relações públicas da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro já tinha avisado: “Nós não começamos essa guerra, nos provocaram para que entrássemos nela, e a gente vai sair vitorioso, podem ter certeza disso”. Quando o Complexo foi tomado, o então Comandante-Geral da PM proclamou: “Vencemos, trouxemos a liberdade para a população do Alemão”.
Vitoriosos e vencidos, coletes e bandeiras, discursos de guerra e glória. Em 2010, o quadro que se pintou no Alemão mais parecia o de um conflito internacional moderno. É difícil moldar um herói nacional em conflitos domésticos. É preciso destituir o “outro” de nacionalidade, para atingir algo mais perto da unanimidade que um herói nacional exige. A operação no Complexo do Alemão em 2010 não foi a primeira nem a última ação militar em uma comunidade pobre do Brasil na Nova República. Mas talvez tenha sido a primeira acompanhada de uma verdadeira operação de propaganda envolvendo as instituições policiais. Ao contrário das chacinas da madrugada de becos e vielas, a invasão do Alemão buscou o espetáculo.
Menos de três anos depois, quando os massivos protestos iniciados em junho de 2013 já estavam coloridos pelas camisas da CBF, os “caveirões” no Rio e os blindados do Choque em São Paulo viraram cenário para “manifestantes” posarem ao lado de policiais sorridentes. O fascismo não precisava mais se debruçar nos fictícios personagens de Tropa de Elite. Fora das telas, para uma boa parte da população, a polícia já havia sido alçada à posição de heroína nacional em carne e osso.
As consequências eleitorais não demorariam. As eleições de 2018 e 2022 ficaram marcadas pelos recordes de policiais e militares eleitos para o Congresso Nacional. Os números divergem de acordo com o critério usado, mas, em meu levantamento, hoje, temos 47 deputados federais e 5 senadores oriundos dessas forças. Outros tantos ocuparam cargos estaduais e municipais. Policiais que puxam outros policiais através de cargos em nomeação, tomando cada dia mais a máquina pública brasileira.
Comecei a pintar esse quadro, que hoje engloba todo o Brasil, a partir do Rio de Janeiro, pois acredito que a espetacularização midiática da violência teve um grande papel na “virada de chave” política das instituições policiais brasileiras, e o RJ foi central nisso. Mas as causas deste fenômeno não se iniciaram ali.
Tivemos um processo de redemocratização extremamente problemático. Os debates da comissão constituinte que trataram do capítulo da segurança pública foram basicamente tomados por militares e policiais. Pior do que manter o sistema de policiamento fracionado que militarizou o cotidiano policial a partir dos “anos de chumbo” em 1969, já em democracia, nós optamos por constitucionalizá-lo.
Criou-se, então, a perigosa situação: um aparato estruturado pela ditadura manteve-se intocado e convivendo com as amplas liberdades institucionais típicas de uma democracia liberal. Liberdades que, em uma relação dialética contraditória, serviriam como freios e contrapesos, mas também como indutoras da própria politização policial. Em mais de três décadas de democracia, sem as reformas estruturais necessárias e sem a imposição de efetivos sistemas de controle externo sobre suas atividades, era esperado que, em algum momento, as polícias também assimilassem para si o discurso de necessidade de autonomia das instituições.
São Paulo é, talvez, o exemplo mais gritante dessa relação contraditória. Desde os anos 1990, o estado vive períodos de pico de violência policial, seguidos de alguma resposta do governo estadual para frear a onda de mortes. Foi assim na Favela Naval em 1997, nos Crimes de Maio de 2006, na onda de violência de 2012 e no pós-chacina do Paraisópolis em 2018. Nesse “morde e assopra” do tucanato paulista, criou-se, nas fileiras policiais, o sentimento de que as forças de segurança eram “laranjas” dos governos do PSDB, que incentivavam a violência policial, mas se eximiam da responsabilidade quando a opinião pública apertava.
Poucos policiais foram mesmo punidos em SP nos últimos anos. Ainda assim, esse sentimento real foi paulatinamente criando um ranço entre a classe policial e o PSDB paulista, visto como o “sistema”. Junto a ele, cresceu a ideia de que os policiais deveriam buscar maior autonomia em relação ao “sistema”, sair da subordinação da “política civil” e buscar sua própria representatividade em nome de uma autonomia tida como necessária para o funcionamento das instituições.
O ápice para esse divórcio veio com João Doria, um governador que fora eleito prometendo “levar bandido direto para o cemitério”. Acuado pela opinião pública após a chacina de Paraisópolis, implementou o sistema de câmeras corporais. Em 2021, quando policiais militares da ativa se manifestaram a favor de atos golpistas no 7 de setembro, Doria levaria a uma reunião de governadores sua preocupação com a total falta de controle dos Executivos estaduais sobre suas próprias polícias.
“Autonomia”, portanto, é a palavra-chave para entendermos a atual situação vivida na segurança pública brasileira. Todo esse longo processo de politização, cujo ápice é a formação de uma bancada policial capaz de ocupar quase 10% da Câmara dos Deputados, convergiu nesse sentido. Temos exemplos dessa bandeira por todo o país.
Quando Tarcísio se elegeu em São Paulo surfando nessa onda, chegou a prometer a extinção da Secretaria de Segurança Pública, cortando intermediários e elevando os comandantes das polícias estaduais ao status de secretários, como é no Rio de Janeiro. A má repercussão da proposta fez Tarcísio recuar na forma, mas não no conteúdo. Sem poder extinguir a pasta, resolveu transformá-la em um puxadinho da PM paulista ao nomear o Capitão Derrite para chefiá-la.
Derrite, aliás, é um nome central para compreender o fenômeno da politização policial no Brasil. Seus atos como secretário já dariam um artigo enorme por si só. Seus objetivos, porém, eram explícitos desde os tempos de deputado. Nas discussões sobre os PLs 86/2020 e PL 4184/2021, Derrite tentou impor, respectivamente, que o delegado-geral e o comandante-geral da PM de cada estado fossem escolhidos em uma lista tríplice eleita pelos próprios policiais e tivessem um mandato fixo de dois anos que só poderia ser revogado por maioria absoluta das Assembleias Legislativas.
Em outro estado cada vez mais dominado pela politização policial, em abril de 2022, o governador Ronaldo Caiado alterou uma legislação estadual ao decretar que, em momentos de crise na segurança, ações enérgicas da polícia não necessitariam mais da autorização do governador, concedendo poder autônomo aos comandantes de tais operações. Questionado se estaria “lavando as mãos”, Caiado disse que tinha firmado um compromisso com os policiais de que não os cercearia em suas funções.
Em setembro do ano passado, acossado pela insatisfação das bases policiais, que eram permanentemente insufladas por dois ex-policiais militares eleitos deputados estaduais, o governador Zema, em Minas Gerais, se viu obrigado a trocar o comandante-geral da PM mineira. Com esse movimento de autonomização das forças policiais ocorrendo em dimensão nacional, não é estranho que, cada vez mais, tenhamos casos em que as ações policiais escapam do controle da sociedade civil.
Em junho de 2021, uma manifestação pacífica contra Bolsonaro foi duramente reprimida pela PM no Recife. Na época, o Secretário de Defesa Social pernambucano confirmou os rumores de que a ordem para o ataque partiu da própria PM em campo. Dias depois, algo semelhante ocorreu em SP. Em um embate entre manifestantes bolsonaristas e anti-bolsonaristas na Avenida Paulista, a PM reprimiu apenas os segundos, protegendo os primeiros.
O caráter nacional desses movimentos ficaria evidente nas eleições de 2022, não só porque a Polícia Rodoviária Federal realizou bloqueios em estradas visando impedir eleitores (de Lula) de votarem no Nordeste. O que se seguiu após a vitória de Lula não seria, como noticiavam os jornais, uma simples greve de caminhoneiros. O Brasil estava assistindo, na verdade, ao que podemos considerar a maior greve policial de nossa história.
Algumas das imagens beiravam o ridículo. Poucos bolsonaristas eram suficientes para fechar avenidas e rodovias diante dos braços cruzados dos membros das polícias estaduais, sempre tão enérgicas contramanifestações populares. No Pará, um PM foi afastado por se recusar a cumprir uma ordem de desbloqueio. No interior de SP, viralizaram vídeos de bolsonaristas fazendo churrasco em rodovias com PMs tranquilos ao fundo. No Paraná, o comandante-geral da PM apareceu em vídeo com manifestantes, admitindo que prevaricou ao não desfazer os bloqueios.
Anos sem desmontar um aparato policial consolidado pela ditadura parecem enfim cobrar a conta no Brasil. Maquiando o real problema da violência no país, as polícias brasileiras se apoiaram no discurso de que “a política atrapalha nosso trabalho” (o delas) para, ironicamente, abrirem espaço para a própria politização. Com uma autonomia crescente, parecem cada vez mais desprovidas de qualquer tipo de controle civil e estatal.
Não há outra palavra para uma instituição armada que age em defesa de seus próprios interesses políticos que não seja milícia. É por isso que tenho chamado esse processo de politização e autonomização que observamos no Brasil de milicianização das polícias.
Se a demorada investigação do brutal assassinato de Marielle Franco desvendou o tamanho do buraco em que a segurança pública se encontra no Rio de Janeiro, com o envolvimento do próprio Chefe de Polícia (Civil) fluminense, não há nada que não possa piorar.
Além dos quase 10% da Câmara dos Deputados já ocupada por militares e policiais, as movimentações mais recentes da PM paulista, maior e mais estruturada força de segurança do país, que se apresenta como principal base de apoio político ao provável próximo candidato da extrema-direita brasileira, Tarcísio de Freitas, escancara que estamos diante de um novo contexto político nacional.
Historicamente, nos acostumamos a ver as polícias atuarem de forma política no país: nos pequenos exércitos das oligarquias estaduais entre o Império e a Velha República, na polícia política de Filinto Muller e Getúlio Vargas, na força auxiliar do Exército ao longo da ditadura. A polícia brasileira sempre foi uma força subordinada às elites dominantes em cada época.
Agora, pela primeira vez na História, vemos as polícias brasileiras, sobretudo as militares, buscando protagonizar um movimento político de amplitude nacional. Não mais presos à coleira da burguesia nacional, mas sentados à mesa com ela. E não duvidemos da reiterada capacidade que a burguesia brasileira tem em conceder talheres (e até o prato principal) a qualquer força bruta, se isso lhes garantir a imposição de seus interesses.
Não ganhamos nada ao abaixar ou rebaixar bandeiras como a desmilitarização das polícias, o fim da guerra às drogas (e aos pobres) e o desencarceramento. Ao contrário: ao retroceder, apenas abrimos caminho para que a sanha punitivista e o militarismo sirvam de justificativa para uma autonomização das forças policiais que agora nos foge totalmente do controle.
Com isso, o desafio colocado para a esquerda é de curtíssimo prazo. Sem perder aquelas justas bandeiras de horizonte, a situação de urgência impõe a nossa articulação ao redor de um tema que se tornou tão central na questão da segurança pública quanto o combate às facções criminosas e a redução da violência cotidiana: a criação de mecanismos efetivos de controle civil sobre as polícias, do nível local ao nacional.
Desmilicianizar o Brasil é uma tarefa fundamental da esquerda para esta geração. Não a cumprir é abdicar de qualquer projeto de país para as próximas gerações que virão.