Sâmia Bomfim
Deputada federal do PSOL por São Paulo, eleita melhor parlamentar do Brasil pelo Prêmio Congresso em Foco de 2023.
O mundo passa por uma situação dramática. O fortalecimento da extrema-direita e sua normalização no xadrez político de diversos países é de fato preocupante. A permanência de Netanyahu como primeiro-ministro de Israel, representando a continuidade do genocídio contra o povo palestino; o ultraliberalismo selvagem combinado à repressão violenta levados a cabo por Milei na Argentina; a consolidação da racista AfD alemã, que, nas eleições deste ano, se tornou a segunda maior força política no coração da Europa. Todos esses agentes da extrema-direita ganham um reforço importante e melhores condições de articulação global com o retorno de Donald Trump à Casa Branca.
Trump é o primeiro candidato republicano a vencer no Colégio Eleitoral e no voto popular em duas décadas, respaldado por maioria no Senado e na Câmara, em um governo com onze importantes bilionários estadunidenses nomeados para o alto escalão. A conjuntura adversa reforça a urgência do combate à extrema direita como a principal tarefa do nosso tempo.
No Brasil, o bolsonarismo está acuado diante do fechamento do cerco por parte do Judiciário e da provável condenação de seu principal líder. A situação de Bolsonaro desorganiza a extrema direita, que enfrenta dificuldades internas para definir um outro nome para a disputa presidencial de 2026. Jair está inelegível, e muito em breve deve ser preso. Enquanto esse artigo era escrito, ele ainda insistia em negar a realidade e afirmava ser candidato para o pleito do ano que vem.
Se, por um lado, a extrema direita brasileira passa por um momento de fragilidade, com dificuldade de armar sua ofensiva, por outro, não podemos de forma alguma subestimá-la: a extrema direita é uma força pujante em nosso país, dirigindo estados e cidades estratégicas, com forte influência no Congresso Nacional e demais casas legislativas, além de um sofisticado ecossistema de comunicação e desinformação, que alcança e organiza uma audiência de milhões de brasileiros em torno de suas ideias.
Naturalmente, a situação do Brasil e do mundo aquece o debate sobre qual é a melhor forma, ou as melhores formas, para combater essa ameaça. A inegável força da extrema direita rebaixa o debate e parece limitar horizontes, aprofundando a crise de projeto que a esquerda brasileira enfrenta. Movida pelo medo e tensionada pela composição da frente ampla que se fez necessária nas últimas eleições presidenciais ― refletida também na composição e na política do governo ― uma parcela significativa da esquerda tem apostado na moderação do discurso e na conciliação de interesses antagônicos. Essa postura abre brecha para que o bolsonarismo, munido de toda a desfaçatez que lhe é característica, se apresente como a alternativa possível para canalizar a justa indignação popular com as mazelas impostas pelo sistema.
As condições de vida da maior parte dos brasileiros e brasileiras estão precárias. Crescem a informalidade e a superexploração nas relações de trabalho. A carga tributária segue incidindo exclusivamente sobre os mais pobres, que não veem a conversão dos impostos em melhora nos serviços públicos. As piores tragédias ocasionadas pelo colapso climático atingem em cheio o povo mais pobre. E a priorização do agronegócio para exportação, somada à especulação no mercado de commodities, tem provocado a explosão da inflação dos alimentos.
Além disso, o suposto “consenso” neoliberal, que naturaliza a política de ajuste fiscal ― concretizada hoje principalmente por meio do Novo Arcabouço Fiscal, implementado pelo governo federal ―, tem como consequência direta o estrangulamento financeiro das áreas sociais e de políticas importantes de distribuição de renda. Enquanto isso, bilionários daqui e de outros países seguem multiplicando seus ganhos e concentrando poder, o que propicia um terreno fértil para a desesperança ou a revolta.
Parte da explicação para o fortalecimento da extrema-direita, tanto no Brasil quanto em outros países, reside no fato de que esse setor político tem se conectado de forma mais eficiente com o sentimento de revolta genuíno do povo. A mensagem da ultradireita é de que são “antissistema”. No entanto, apresentam como alternativa uma saída autoritária, ultranacionalista, racista, misógina, LGBTfóbica e individualista. Enquanto isso, parte significativa da esquerda procura se mostrar cada vez mais integrada à ordem.
À esquerda não cabe a miséria do possível: não podemos ter como orientação e intento a gestão do caos social que resulta da ordem capitalista. Vocalizar um programa de questionamento e ruptura com o sistema, disputar consciências e canalizar a indignação para as lutas é a melhor forma de enfrentar o crescimento da extrema direita.
Para isso, devemos apostar nossas fichas em um processo de mobilização, em primeiro lugar, com a maior amplitude possível, junto a todos que desejam a responsabilização dos golpistas do 8 de janeiro, especialmente de seu líder, Jair Bolsonaro. É preciso combater nas ruas qualquer tentativa de anistia, exigir prisão para cada um dos financiadores, mentores e executores da tentativa de golpe. Mas não podemos nos limitar a isso: é possível e necessário um processo de mobilização para construir lutas da maioria social.
No ano passado, o movimento feminista deu uma demonstração do caminho a ser seguido: os atos contra o “PL do Estupro” encurralaram Arthur Lira, até então poderoso e inquestionável. Centenas de milhares de mulheres tomaram as ruas, e vencemos. O processo foi uma reação, mas apontou o sentido que devemos perseguir. Pela positiva, temos pautas que já demonstraram ter capacidade de mobilização, com bandeiras justas e muito concretas: o fim da escala 6×1 de superexploração dos trabalhadores e a ampliação da isenção do imposto de renda para trabalhadores que recebem até 5 mil reais por mês. No terreno das propostas econômicas, precisamos seguir pautando a necessidade da taxação das grandes fortunas, como forma de promover justiça social e tributária.
Ao sediar a COP 30, aumenta também a nossa responsabilidade com a luta socioambiental. Devemos aprofundar as formulações e bandeiras do ecossocialismo e exigir do Brasil e dos outros países medidas efetivas e imediatas de preservação, mitigação e adaptação no combate ao colapso climático, sobretudo na transição energética e redução de emissão de poluentes. Aí também se localiza a batalha fundamental contra a exploração de petróleo na Margem Equatorial.
Globalmente, a extrema direita aposta na radicalização das ideias autoritárias, negacionistas, racistas, machistas, xenófobas, tentando se localizar com uma roupagem de mudança. Da nossa parte, precisamos disputar os sentidos da repulsa do povo a esse estado de coisas, apontar e combater a extrema direita como a face mais vil e podre do sistema, e construir uma alternativa política independente, à altura dos nossos tempos e necessidades, com a perspectiva de mobilização e de mudança radical. O tempo é agora.