Beatriz Meirelles
A auditoria da dívida é uma antiga bandeira do PSOL. É fácil entender a razão: uma das causas da concentração de renda no Brasil é o volume exorbitante do gasto com juros. Mas a auditoria é o caminho para enfrentar o rentismo? Buscarei mostrar que o objeto da auditoria é um falso problema, mas não só. Cai no discurso da austeridade e da criminalização da política econômica.
É sempre desejável dar transparência às informações sobre política fiscal e monetária. E isso tem ocorrido. O perfil da dívida pública por prazos e taxas de juros, seu crescimento consistente com as taxas, os resultados primários e a acumulação de ativos, os títulos na carteira do Banco Central (BC), dos bancos públicos, dos fundos de pensão e dos bancos privados são informações disponíveis nos portais do BC e do Tesouro Nacional (TN) ou nas demonstrações financeiras de fundos e bancos. Os leilões de títulos são gravados. As operações de swap cambial, usadas recentemente em momentos de ataque especulativo ao Real e que podem gerar receita ou despesa ao Tesouro também são públicas. Diversos analistas têm tratado e divulgado esses dados. Há informações suficientes para discutir as vantagens e as desvantagens da política econômica e a que interesses serve.
Também é difícil compreender o que são títulos públicos “ilegais”. As explicações costumam remeter à década de 70, à reestruturação da dívida externa e à federalização das dívidas estaduais e municipais nos anos 90, ou ao pagamento da dívida externa nos anos 2000. Contudo, há muito essas dívidas trocaram de mãos porque foram roladas e são transacionadas no mercado secundário. Não há como estabelecer correspondência entre as ditas ilegalidades do passado e os títulos emitidos hoje em leilão público.
A escolha aleatória de títulos a serem anulados funcionaria como um Plano Collor, que levou a economia à recessão. O problema brasileiro não é o estoque de títulos públicos, mas a taxa de juros. Alguns países têm dívida de mais de 100% do PIB e taxa de juros real negativa. No Brasil, a queda sustentada da taxa de juros teria efeito positivo sobre a distribuição de renda, sem o prejuízo de políticas que buscam limitar o tamanho da dívida, por ajustes fiscais ou por “moratória”.
Tal encontro com as políticas pregadas pelo liberalismo econômico soa paradoxal, mas está fundado na mesma incompreensão sobre o funcionamento de uma economia monetária de produção.
Um indivíduo não pode gastar mais do que ganha sob pena de ficar refém dos credores. Essa analogia faz sentido para a dívida externa porque é denominada em moeda estrangeira e por isso a Constituição incluiu artigo determinando a auditoria da dívida externa. Esse também foi o caso das auditorias no Equador e na Grécia, dívidas em moedas que não controlam (Dólar e Euro). A dívida interna, ao contrário, é denominada em moeda soberana. É uma espécie de moeda remunerada em prazo determinado.
Quando o Estado gasta mais que arrecada e esta é condição necessária para o crescimento econômico emite moeda para pagar pelos bens e serviços. Dada a demanda por moeda dos agentes econômicos, o TN troca o excedente por títulos de diferentes prazos ou o BC faz operações compromissadas troca moeda no caixa dos bancos por títulos remunerados à taxa Selic, definida pelo Comitê de Política Monetária. Se o TN e o BC não fizerem isso, os juros saem do seu controle.
Não há limite à quantidade de títulos públicos. O discurso da austeridade, expresso por metas de superávit primário e pela tentativa de limitar a dívida, não visa gerar o “espaço fiscal” para pagamento de juros. O discurso da austeridade visa gerar desemprego, como explicou o economista marxista M. Kalecki em seu “Aspectos Políticos do Pleno Emprego” de 1943. A fim de evitar as mudanças sociais e políticas resultantes da manutenção do pleno emprego via gasto público, os capitalistas recorrem ao discurso das “finanças saudáveis”, condenando o déficit e a dívida.
A militância pela auditoria também condena o déficit público. Com base em interpretação forte de um dos artigos da Constituição e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a chamada “Regra de Ouro”, alega que o pagamento de “juros sobre juros” ou a “emissão de títulos para pagar juros” é ilegal. Mas dinheiro não é carimbado. Se virtualmente a receita tributária fosse deslocada para pagar juros, seria necessário emitir títulos para pagar gastos primários. Na prática, defendem um resultado primário ainda mais restrito que o definido pela LRF.
Outro enunciado da militância pela auditoria condena a dívida pública, tratando títulos vincendos e rolados como gastos. Dizer que 40% do orçamento vão para o pagamento de “juros e amortização” da dívida não tem sentido econômico, a dívida nunca é amortizada. Apenas leva à falsa ideia de que a anulação desses títulos liberaria recursos para saúde e educação. Que recursos? Da nova dívida? E quando os novos títulos vencerem, serão considerados recursos que competem com os gastos? Não há lógica. E, assim, tira-se o foco do problema verdadeiro: o fluxo de juros. O gasto com juros gira em torno de 6% do PIB ou entre 15% e 20% do gasto público. Esse dado já é espantoso, não precisamos recorrer a ilusionismo que reforça o imaginário da austeridade e, pior, nos descredencia do debate.
O Brasil tem um oligopólio bancário poderoso e a maior taxa de juros do mundo. Não é ‘anulando títulos’ que vamos enfrentar esse poder. Em vez da via fácil e inócua da criminalização, uma proposta de esquerda deveria desmascarar os argumentos liberais inconsistentes que buscam justificar as decisões do Copom sobre a taxa de juros. Questionar o sistema de metas de inflação e o canal de transmissão da taxa de câmbio, debater a necessidade de controle do fluxo de capitais estrangeiros, a porta giratória entre o BC e o mercado financeiro, são alguns exemplos.
Como em outros temas, precisamos substituir o discurso da polícia pela discussão da política.
A questão da auditoria da dívida
Paulo Kliass
O debate a respeito da necessidade de uma auditoria sobre a dívida pública brasileira é antigo e remete a uma discussão igualmente importante a respeito das alternativas existentes para a implementação de políticas desenvolvimentistas e inclusivas em nosso país.
A luta por uma abertura oficial das contas relativas ao crescimento exagerado do estoque de dívida atual faz parte da reivindicação por maior transparência na condução das políticas públicas e na relação do Estado com a cidadania. No entanto, é importante registrar que a simples realização da auditoria não se converterá em panaceia para todos os problemas de nossa sociedade, em especial no terreno da economia. Paira em determinados setores a crença de que a abertura dessa verdadeira caixa-preta resolveria por si só entraves importantes de nossas dificuldades.
Na verdade, a inspeção e a análise detalhadas das operações realizadas ao longo da história em termos do endividamento público deve operar como elemento de elevação do conhecimento relativo ao funcionamento dos meandros da formulação e da implementação da política econômica. No entanto, esse movimento não deve se confundir com as gritas generalizadas de natureza liberal, que buscam condenar e criminalizar as iniciativas de se utilizar a política fiscal expansionista como estratégia de redução das desigualdades de natureza social e econômica.
A dívida pública, em si, não é um problema. Antes, pelo contrário, ela pode ser muito bem utilizada como caminho de solução para a trilha do desenvolvimento. O mecanismo de endividamento público é a cara, por excelência, da intervenção do Estado na economia. O debate atual torna-se mais complexo uma vez que a situação brasileira atual carrega consigo a herança do processo da dívida à época da ditadura militar e que se dava por meio de lançamento de títulos em moeda estrangeira.
O crescimento da obrigação externa nas décadas de 1970 e 1980, efetuado sob um regime ditatorial e sem nenhuma legitimidade política, está na base dos valores da dívida que o setor público ostenta nos tempos atuais. Porém, é necessário destacar as significativas alterações na natureza e na composição do estoque dessa dívida ocorridas ao longo dessas quatro décadas.
Um aspecto relevante refere-se à chamada “internalização” da dívida externa, que ganhou força especialmente a partir da estabilização macroeconômica proporcionada pelo Plano Real a partir de 1994. Esse processo possibilitou uma espécie de naturalização dos valores atualmente existentes, uma vez que os títulos denominados em moeda estrangeira e ofertados no exterior foram trocados por outros lançados pelo Tesouro Nacional em nossa moeda nacional.
Assim, fica criado sério obstáculo à concretização do previsto no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988. A intenção manifestada pelo constituinte representava o sentimento generalizado de indignação da maioria da população a esse respeito.
“Art. 26. No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de Comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro.”
Naquele momento, 29 anos atrás, a questão ainda estava identificada com a existência de uma dívida ilegítima, contraída em moeda estrangeira e sob condições desconhecidas da maioria da população. Por mais que o estoque atual esteja associado a essa origem espúria, o fato é que há resquícios dos processos de endividamento igualmente carentes de legitimidade e que remontam às épocas do Império, às primeiras décadas do período republicano e às etapas de industrialização dos anos 1950 e 60.
É inegável que a realização de uma auditoria da dívida pública permitiria trazer mais luz e oxigênio a esse debate. A sociedade brasileira poderia se informar a respeito de questões relevantes, tais como a cobrança ilegal de juros sobre juros ou os principais agentes econômicos beneficiários de tais títulos públicos. Além disso, poder-se ia discutir de forma mais aberta a respeito das alternativas de renegociação de tais papéis em condições menos danosas para o conjunto da população e também debater as opções relativas aos aspectos draconianos da ditadura do superávit primário.
No entanto é importante reconhecer que o estoque de títulos públicos está distribuído de forma ampla em nossa economia, muito além dos bancos e demais agentes do financismo especulador. Há papéis do Tesouro Nacional que estão nos ativos de instituições como fundos de pensão, bancos públicos federais e uma multiplicidade de fundos de investimento que lastreiam os recursos poupados por setores das classes médias em nosso país.
A estratégia da auditoria não pode e nem deve se associar a qualquer movimento de criminalização da dívida pública como instrumento de política econômica. O endividamento do governo é um importante recurso para a promoção das políticas públicas desenvolvimentistas, uma vez que o Estado não conta com recursos à vista ou no curto prazo para implementar os investimentos necessários à redução das desigualdades e para a construção de estratégias de desenvolvimento nacional.
Além disso, a dinâmica da condução da política fiscal envolve resgate de títulos antigos e lançamento de novos papéis em volume e periodicidade que não permite acompanhar a gênese das dívidas mais antigas.
Por que a auditoria da dívida incomoda tanto?
Rodrigo Ávila
Desde a década de 70 entramos na fase do capitalismo financeirizado, a fase mais brutal da exploração da classe trabalhadora. Em toda parte, até mesmo em países do chamado Primeiro Mundo aumenta a desigualdade social, o desemprego, a supressão de direitos sociais, as privatizações em massa e a redução do tamanho do Estado. Ao mesmo tempo, a chamada “dívida pública” explode, passa a ser a prioridade absoluta, e seu pagamento justifica todo tipo de barbárie contra a classe trabalhadora e o próprio Estado.
No Brasil, o privilégio da dívida é mais escandaloso do que em qualquer outro lugar, pois praticamos as taxas de juros mais elevadas do planeta e destinamos quase a metade do Orçamento federal todo ano para o pagamento de seus juros e amortizações. A CPI da Dívida Pública concluída em 2010 na Câmara dos Deputados comprovou impressionantes indícios de ilegalidade, ilegitimidades e até fraudes na formação da dívida externa e interna federal, dos estados e municípios, conforme relatório apresentado pelo deputado Ivan Valente (PSOL/SP), que incorporou as análises técnicas feitas pela Auditoria Cidadã da Dívida.
Para que ninguém perceba o quanto o privilégio da dívida amarra o país e afeta diretamente a vida de todas as pessoas, diversos artifícios entram em ação. As falsas teorias de controle inflacionário que utilizam elevadíssimas taxas de juros que não servem para controlar o tipo de inflação que existe no Brasil tem servido para remunerar regiamente os rentistas e fazem a dívida explodir.
Também sob a falsa justificativa de combater a inflação, o Banco Central toma emprestada toda a sobra de caixa dos bancos (R$ 1,1 trilhão, ou 18% do PIB) por meio das “Operações Compromissadas”, para remunerá-los com juros altíssimos, tornando escasso o crédito a pessoas e empresas, para elevar as taxas em toda a economia.
Outro artifício é a mega pedalada de centenas de bilhões de reais por ano, referente à contabilização da maior parte dos juros como se fosse amortização ou refinanciamento (rolagem).
A Auditoria da Dívida desmascara esses mecanismos e mostra que a chamada dívida pública tem sido um instrumento descarado de transferência de recursos públicos para o setor financeiro.
Está ficando cada vez mais difícil esconder a importância da auditoria, tendo em vista que o estoque da dívida interna cresceu R$ 636 bilhões em 2015, e R$ 573 bilhões em 2016, alcançando R$ 4,5 trilhões em 31/12/2016. Considerando que os investimentos têm ficado perto de zero, o que fez a dívida crescer tanto?
De forma cidadã, em base a dados oficiais disponíveis, temos comprovado que o crescimento exponencial decorre do pagamento dos juros abusivos (disfarçados de amortização/refinanciamento); do elevado custo da remuneração da sobra de caixa dos bancos; de prejuízos com as ilegais operações de swap cambial, da prática ilegal do anatocismo (juros sobre juros), além de vários outros mecanismos.
Também tem dificultado esconder a importância da auditoria o fato de a dívida estar justificando as recorrentes privatizações; os crescentes cortes de investimentos sociais que comprometem o funcionamento até das universidades, além de alterações na Constituição, como a EC-95 (que congela as despesas primárias por 20 anos para que sobrem mais recursos para a dívida); a EC-93 (que aumentou a DRU para 30% e criou a DREM, retirando recursos vinculados a áreas sociais para destina-los aos juros); a PEC-287 (que desmonta a Previdência Social), entre outras alterações legais absurdas como a LC 159/2017.
A Auditoria Cidadã da Dívida tem incomodado os que querem esconder tudo isso, pois explica de forma didática os artifícios que geram dívida sem contrapartida, seus privilégios e, principalmente, escancara seu impacto de mais de 40% do orçamento federal, por meio do famoso gráfico em formato de pizza, elaborado com dados oficiais disponibilizados no Siafi (Disponível em http://www.auditoriacidada.org.br/mentirasverdades). Esse gráfico mostra os dados sem disfarce.
A Constituição autoriza o uso de novos empréstimos somente para investimentos ou amortização da dívida (despesas de capital). Para burlar esse dispositivo (art. 167, III), fazem a manobra espúria, percebida por poucos, de contabilizar a maior parte dos juros como se fosse amortização/ refinanciamento (rolagem). Assim, os novos empréstimos, que deveriam viabilizar investimentos voltados ao desenvolvimento socioeconômico, têm sido consumidos no pagamento dos juros abusivos.
Caso estivéssemos utilizando a montanha de recursos que o Siafi informa como “amortização” para efetivamente amortizar a dívida, o estoque da dívida estaria caindo. Se estivéssemos apenas “rolando” a dívida, o seu estoque se manteria constante. Mas o estoque da dívida tem aumentado exponencialmente! Portanto, é evidente que grande parte dessa “rolagem” é, na verdade, juros.
A Auditoria Cidadã da Dívida tem demonstrado o vínculo entre as sucessivas operações de refinanciamento da dívida externa realizadas desde a década de 70 com a dívida interna atual, passando pela assunção de dívidas privadas; suspeita de prescrição; transformação de dívida prescrita em novos títulos Brady, seguida de transformação de parte em dívida interna (com juros de até 50% a.a. ou mais) e outra parte usada como moeda para comprar empresas privatizadas a partir de 1996; além dos históricos juros escorchantes e recentes artifícios de swaps, compromissadas etc.
Esses sucessivos escândalos têm criado a monstruosa dívida que nos empurra ao avesso do país que poderíamos ser. Por isso é urgente desmascarar tudo isso por meio de completa auditoria com participação cidadã.
PS Convido os (as) leitores (as) a acessarem nossa seção “Mentiras e Verdades sobre a dívida pública”, na página www.auditoriacidada.org.br/ mentiras verdades, onde comentamos alguns argumentos de setores que criticam o trabalho da Auditoria Cidadã da Dívida, inclusive os argumentos colocados nos artigos ao lado.