Valéria Lopes Ribeiro
Ainda é cedo para mensurar o impacto que a pandemia do vírus Covid-19 causará em todo o globo. Em termos de saúde pública e da vida de milhões de pessoas, os impactos já são evidentes, com a expansão do contágio alcançando diversos países e o número de mortes aumentando. Com relação aos impactos econômicos e geopolíticos, estes são mais difíceis de mensurar no presente momento. Ainda assim, levando em conta o ponto de onde partimos, o futuro é bastante desanimador.
Mesmo após mais de dez anos desde a crise de 2008, as taxas de crescimento econômico mundiais não tinham se recuperado completamente. O baixo crescimento suscitava debates acerca de uma possível “estagnação secular” e de características do capitalismo contemporâneo que acabavam por adiar a solução da crise, como “a inflação; […] o endividamento do Estado; […] a expansão dos mercados de crédito privados; e […] a compra de dívidas de Estados e de bancos pelos bancos centrais”. Alguns alertavam para a existência de uma crise de sobre acumulação, marcada pela contínua expansão dos instrumentos de acumulação financeira. Diante da crise, a insistência dos governos de diversos países na adoção de políticas de austeridade, já nos colocava em uma situação de baixo crescimento, concentração de renda e baixos níveis salariais.
O cenário de crise manifestava-se também no acirramento das disputas interestatais, por meio da postura nacionalista de governos (como o caso da Inglaterra com o Brexit), das tensões entre EUA e Irã, além da contínua guerra comercial entre Estados Unidos e China.
Diante desse cenário, a pandemia do Covid-19 pode provocar uma crise profunda na economia mundial, com consequências sociais difíceis de prever. No centro desse complexo debate sobre as consequências da pandemia, parecem-me fundamental dois aspectos diferentes, mas ligados entre si: primeiro a discussão sobre o papel do Estado e as controvérsias do modelo neoliberal; segundo, a forma como a China vem lidando com a pandemia e sua estratégia global. Falarei aqui sobre o segundo aspecto, na tentativa de ajudar no debate sobre o primeiro.
Início do contágio
A China foi o primeiro país a registrar o contágio do Covid-19. Em novembro de 2019 ocorreu o primeiro caso5 em Wuhan, província de Hubei. Até 15 de dezembro, o número total de infecções era 27 e até 20 de dezembro já havia 60 infectados. Em 30 de março a China registrou 81.470 casos e 3.304 mortes.
Uma série de controvérsias se apresentaram a partir do surgimento do vírus na China, entre elas: o episódio em que o governo chinês teria controlado informações sobre o vírus, silenciando a denúncia feita pelo médico Li Wenliang, que depois acabaria falecendo pelo Covid-19; e a campanha realizada pela mídia ocidental, acusando a China de ser responsável pela pandemia global, ressoando em um ataque de xenofobia e racismo, com a divulgação de vídeos e acusações sobre hábitos alimentares e sanitários chineses.
Após o surto inicial e as controvérsias sobre a origem da crise, a China começa um programa amplo de contensão da pandemia. Segundo o Relatório da Missão Conjunta OMS-China sobre Doença de Coronavírus 2019 (COVID-19)7 “diante de um vírus anteriormente desconhecido, a China lançou, talvez, o esforço mais ambicioso, ágil e agressivo de contenção de doenças na história”.
Quais foram essas medidas? Como elas podem ser entendidas dentro do modelo de Estado e economia da China?
Emergência nacional
Segundo o Relatório da Missão Conjunta OMS-China, após a detecção de um conjunto de casos de pneumonia de etiologia desconhecida em Wuhan, o CPC, Comitê Central e o Conselho de Estado lançaram a resposta nacional de emergência. A partir daí foram criados dois grupos para coordenar os esforços de controle do vírus, o “Central Leadership Group for Epidemic Response” e o “Joint Prevention and Control Mechanism”.
As medidas de prevenção e controle foram implementadas rapidamente, desde os estágios iniciais em Wuhan e outras áreas-chave de Hubei até o nível nacional. As medidas adotadas podem ser divididas em três fases:
Na primeira fase, de início do surto, a principal estratégia esteve focada na prevenção da exportação de casos de Wuhan e outras áreas prioritárias da província de Hubei. O mecanismo de resposta foi iniciado com envolvimento multissetorial em medidas conjuntas de prevenção e controle. Mercados foram fechados e foram feitos esforços para identificar a fonte zoonótica. A formação epidêmica foi notificada à OMS em 3 de janeiro e sequências genômicas inteiras do COVID-19 foram compartilhadas com a OMS em 10 de janeiro. A partir daí, protocolos para diagnóstico de COVID-19 e para tratamento foram formulados, além do gerenciamento de contatos próximos de pessoas contaminadas e aplicação de testes laboratoriais.
Na segunda etapa, durante a segunda fase do surto, a principal estratégia foi reduzir a intensidade de epidemia e retardar o aumento de casos. Em Wuhan e outras áreas prioritárias da Província de Hubei, o foco era o tratamento ativo de pacientes, a redução de mortes e a prevenção de exportações. Em outras províncias, o foco estava na prevenção de importações, restringindo a propagação da doença e implementação de medidas conjuntas de prevenção e controle. Nacionalmente, os mercados de animais silvestres foram fechados e as instalações de criação de animais em cativeiro foram isoladas. Em 23 de janeiro, estritas restrições de tráfego e um cordão sanitário foram estabelecidos em torno de Wuhan e municípios vizinhos, impedindo efetivamente a exportação de indivíduos infectados para o resto do país. Restrições de viagens foram impostas em 14 cidades próximas a Wuhan na província de Hubei. Nessa fase o protocolo para diagnóstico, tratamento, prevenção e controle de epidemias foram aprimorados; o isolamento e o tratamento dos casos foram reforçados. Foram tomadas medidas para garantir que todos os casos fossem tratados e contatos próximos fossem isolados e colocados sob observação médica. Segundo a OMS, a China tem uma política de identificação meticulosa de casos e contatos para o COVID-19. Em Wuhan, cerca de 1800 equipes de epidemiologistas, com um mínimo de 5 pessoas/equipe, rastreavam dezenas de milhares de contatos por dia. Além das medidas de controle de tráfego e controle da capacidade de transporte para reduzir o movimento de pessoas, informações sobre a epidemia e medidas de prevenção e controle foram divulgadas regularmente. A alocação de suprimentos médicos foi coordenada e novos hospitais foram construídos, como o Hospital Huoshenshan. Camas de reserva foram usadas e instalações foram redirecionados para garantir que todos os casos pudessem ser tratados, além de esforços para manter um fornecimento estável de mercadorias e seus preços para garantir o bom funcionamento da sociedade. (Report of the WHO-China Joint Mission on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19), 2020).
Na terceira etapa, as autoridades procuraram controlar a epidemia mediante o controle e prevenção. O foco foi no tratamento dos pacientes e na interrupção da transmissão, com ênfase em medidas para implementar plenamente o teste e prevenção de disseminação em lugares públicos. Para isso novas tecnologias foram aplicadas, como o uso de big data e inteligência artificial (IA) para fortalecer o rastreamento de contatos e o gerenciamento de populações prioritárias. Políticas de expansão dos seguros de saúde foram promulgadas, com pagamentos de seguros e liquidação e compensação financeira. Em meados de março a curva de contágio na China começa a se estabilizar. Em 7 de março não foram registrados novos casos na China. Novas manifestações surgem, mas importadas de fora, fazendo o país reforçar o controle da entrada de estrangeiros. O número de mortes pelo contágio caiu. Em 28 de março registraram-se cinco mortes na China.
Planejamento estatal
A discussão sobre as medidas adotadas pela China certamente ainda deverá ser aprofundada. Para iniciar esse debate saúde que vigorou durante o período socialista, sob Mao Tsé-Tung.
A partir das reformas de Deng Xiaoping, no final dos anos 1970, diversos direitos sociais foram atingidos, inclusive a oferta de saúde pública. O descuido ficou evidente com a epidemia de SARS em 2003, quando a China enfrentou o desafio semelhante a pandemia atual. A epidemia de SARS marcou um ponto de inflexão da política governamental chinesa ligada a saúde, e desde então o governo vem procurando estender o sistema de saúde, na esteira da construção da “sociedade harmoniosa” empreendida pelo presidente Hu Jintao. Ainda que não tenha um sistema universal de saúde, e o modelo seja baseado em seguros de saúde, a cobertura foi sendo ampliada ao longo dos anos 2000, de forma a atender a maioria da população.
Hoje, existem três principais seguros sociais de saúde vigentes na China que cobrem quase a totalidade da população: o Urban Employee Basic Medical Insurance (UEBMI), para trabalhadores formais urbanos, o New Rural Cooperative Medical Scheme (NRCMS), para residentes rurais, e o Urban Resident Basic Medical Insurance (URBMI), para trabalhadores não formais. O sistema tem muitos problemas do ponto de vista de não corresponder a um sistema universal e até mesmo reforçar a desigualdade, mas houve uma melhora importante no fornecimento de saúde na China, o que também deve ser considerado quando se pensa em como o Estado chinês conseguiu responder a epidemia do Covid-19.
Impactos incertos
Apesar do combate bem sucedido diante da epidemia, não se sabe ainda os impactos da crise para o país. Em 2019, a China já vinha apresentando taxas de crescimento menores. Os primeiros dados após a pandemia mostram um cenário bastante complicado. Houve uma queda dos lucros industriais de 38,3% nos dois primeiros meses de 2020. O investimento concluído por empresas estatais caiu 23,1% em fevereiro. A taxa de crescimento acumulado do valor agregado da indústria caiu 13,5%. A taxa de desemprego urbano aumentou de 5,3% em janeiro para 6,2% em fevereiro.
Nos anos mais recentes a taxa de crescimento menor da economia chinesa refleia, para além dos efeitos da crise de 2008, uma mudança do perfil do crescimento. Apesar do investimento permanecer sempre alto como proporção do PIB, observa-se maior convergência, principalmente desde 2010, entre as taxas de expansão do PIB, do investimento e do consumo das famílias, o que sinaliza para o fato de que o consumo das famílias começava a avançar em paralelo ao investimento. Ou seja, a China estaria tentando adequar o crescimento a partir do fortalecimento do mercado interno, aliado à modernização da indústria via programas como o China Manufacturing 2025.
Nesse sentido, é possível que enfrente uma queda brusca na economia, mas o futuro dependerá de como ela responderá a própria crise, em termos de ações estatais, políticas de manutenção e investimento, do emprego e do mercado interno. Essa resposta será fundamental não apenas para a dinâmica do crescimento chinês, mas de todo o mundo, além dos impactos em termos políticos, na medida em que diante da crise a resposta neoliberal de países ocidentais tende a ser desastrosa. Finalmente, outro aspecto fundamental com relação à China e à pandemia diz res – peito a projeção global.
Protagonismo global
Até o momento os Estados Unidos têm fracassado na resposta global à crise. Isso se refere à capacidade de fornecer bens públicos globais e apresentar vontade de coordenar uma resposta global. A pandemia estaria assim testando os elementos da liderança dos EUA. Até agora, Washington estaria falhando e ao mesmo tempo abrindo uma espécie de vácuo global.
Por outro lado, a China está se movendo, aproveitando esse vácuo e buscando se posicionar como líder global em resposta à pandemia. O presidente Xi Jinping afirmou na abertura do Congresso do Partido Comunista Chinês realizado recentemente que chegou a hora de o país assumir uma posição central no mundo.
Diante disso, a China vem fortalecendo a narrativa de que está disposta a ajudar o mundo a combater a pandemia. Em março, o governo chinês forneceu assistência material a diversos países, incluindo máscaras, roupas de proteção, kits para testes, respiradores, ventiladores e medicamentos enviados a países como Sérvia, Libéria, Filipinas, Paquistão, República Checa, Itália, Espanha, Irã, Egito, Iraque, Malásia, Camboja, Sri Lanka13. Empresas chinesas, como Alibaba, prometeram enviar grandes quantidades de kits de teste e máscaras para os Estados Unidos, além de 20.000 kits de teste e 100.000 máscaras para cada um dos 54 países da África.
Apesar da postura mais assertiva da China, ainda é cedo para afirmar algo no sentido de uma ruptura hegemônica norte-americana. A capacidade dos Estados Unidos de enfrentar os impactos da pandemia internamente será crucial para manter a posição global, mesmo sem apresentar uma solução, uma vez que sua força está assentada em aspectos estruturais, sejam eles militares ou monetários.
Ainda assim, o sucesso da resposta da China à pandemia e seu reposicionamento global podem contribuir para acentuar as críticas ao modelo neoliberal, como aquele incapaz de fornecer soluções para a pandemia e à crise global. Aqui a discussão sobre o papel do Estado no combate a pandemia e na recuperação social e econômica será crucial. As ações da China ligadas à centralidade do Estado e ao planejamento podem influenciar significativamente essa discussão.