Venâncio Guerrero
Um dia somos todos amantes do gasto desenfreado, logo como num passe de mágica tudo isto é tão errado: “ajuste e seja responsável!”. O governo num dia aparece como o herói, “tá dentro e dando grana”; como num passe de mágica, ele passa a ser visto como o grande vilão. O país nunca foi tão horrível como com o PT! Bradam Cunha, Maluf e Blairo Maggi! É necessário entender as coisas em sua relação de bonança e miséria. Estamos ameaçados a entrar num momento de pobreza e autoritarismo. Por isso um balanço sincero do modelo da economia lulista e uma proposta factível de estratégia de esquerda para a recomposição popular são vitais, sem sectarismos nem cartas de intenções.
A raiz do problema
A crise econômica se joga nos Estados Unidos e China. Em termos gerais, o modelo em que estes países apostaram na forma de fazer dinheiro no mundo e, por isso mesmo, movimentar emprego, renda e lucros, está se esgotando. Por um lado, a lógica estadunidense de jogar com o futuro a partir de apostas financeiras e com seu poderio bélico já não tem frutos duradouros desde 2008. Por outro, os chineses, que dependem em grande medida do que compra o mundo, têm dificuldades em gerar lucro com sua crescente maquinaria de fazer coisas baratas e assim não podem garantir as esperanças de consumir toda a soja, petróleo e carne do mundo. Isso estoura a aposta de que a indústria de commodities geraria um lucro indefinido.
A crise da economia brasileira é parte da crise internacional, mas numa versão singular. Para se aproveitar do dinheiro movimentado nas praças financeiras mundiais e oriundo do consumo chinês, era necessário o Lulismo, que criou fundamentos táticos para atrair estes recursos. Foi necessário ampliar o máximo possível a produção destas commodities, e o Brasil chegou a ser o maior exportador de carne, ganhando da Argentina. Era necessário criar grandes transnacionais como a Petrobrás, a JBS, a Odebrecht, a Gerdau etc., pois quem controla a cadeia de distribuição ganha o grosso do lucro.
Jogar bem o jogo da economia internacional lhe permitiu reservas internacionais e dinheiro suficiente para concluir bem nos fundamentos internos, isto é, criar um mercado de massas capaz de mover os principais espaços que geram emprega e renda no país.
A “bolsa família” é capaz de fomentar o consumo em pequenos negócios, com capacidade de gerar mais empregos que quilômetros de terra de soja produzidos com poucos trabalhadores. Logo, a injeção de crédito, os investimentos no setor da construção civil e o PAC criaram um caldo que ativou setores com alta capacidade de geração de emprego e renda e, por isso, de consumo. Isso atraiu ainda mais dinheiro externo, pois o Brasil se tornou uma marca, uma aposta para ser investida no longo prazo. Vieram estes grandes investidores com rios de dinheiro; compraram grandes prédios, ações da BOVESPA e reais; valorizou nossa taxa de câmbio, o dólar chegou a menos de R$ 2,00.
Mas, tanto estes investidores estão jogando também em praças mais rentáveis que dependem do que se dá na China e nos Estados Unidos, como os juros que eles cobram são maiores do que é possível gerar na nossa economia, e a expectativa de valorização gera investimentos que vão para além do que o mercado pode oferecer em consumo. Assim, esse jogo tem limite no Brasil, mas também no mundo.
Por que é uma crise do Modelo?
Não existiria modelo de mercado de massas nem bases suficientes para dar fundamentos externos à economia brasileira, sem um pacto social em que setores dos trabalhadores, dos capitalistas agrícolas, dos empreiteiros, dos políticos pé-de-chinelo, entrassem em acordo para que a máquina funcionasse. Assim o sistema parou de estar em convulsão social: tanto a esquerda sossega, como os políticos votam com o governo.
A economia e a política estão umbilicalmente relacionadas e a crise é fruto do modelo político aplicado nestes últimos anos, que prefiro chamar neodesenvolvimentista com expressão política numa coalização ampla de poder, com PT e sua base social à frente do bloco, mas tendo o PMDB e frações menores do que foi a expressão política do velho coronelismo e das pequenas oligarquias como base de sustentação. A queda da exportação e a diminuição do consumo, o fim das construções desnecessárias, como são os estádios, se soma ao esgotamento do apoio popular, dado o aumento das falhas no modelo.
Junho de 2013 é a ação espontânea frente às contradições do crescimento econômico brasileiro, expressa principalmente na inflação, que é a forma como os capitalistas brasileiros inflam preços e ganham com a precariedade, desde o transporte público, moradia e alimentos a outros serviços públicos no Brasil. Mas vai se tornando uma crise do desemprego, que mostra que o governo já não pode mais garantir o pacto social.
Diminuição do PIB e dos preços das commodities se retroalimenta com a saída de capitais. Este esvaziamento do poder fiscal do Estado ajuda na quebra do pacto social, aumenta a inflação e diminui emprego. Há uma fuga da grande coalizão, pois a economia do jogo de influência se quebra, não há o que se comprar, pois o poder econômico ruiu, e todos se tornam mais honestos.
O descontentamento foi transferido para uma expressão de fascismo social, organizada por grupelhos de extrema-direita como o Movimento Brasil Livre (MBL); o conservadorismo de caserna de Bolsonaro; o extremo-conservadorismo da monarquia; grupos violentos que, mesmo não podendo se expressar numa possível coalizão de poder, podem influenciar políticas pela criação de uma hegemonia social ampla de consenso pelo autoritarismo político e ultraliberalismo econômico.
Recomposição do campo popular.
Não é momento de lastimar o passado e sim mudar as coisas. Para isso, temos que recompor o campo popular e apostar em uma nova hegemonia de esquerda que faça frente ao fascismo social que tende a se expressar num programa político com privatização de tudo e desemprego galopante. Tanto é importante defender a democracia frágil que colocou o governo onde ele está, mesmo que ele seja parte da crise, como estar junto com setores amplos de unidade social, oriundos do lulismo e, em certa medida, adeptos da estratégia de mercado de massas. Temos que ganhar na propositiva, a partir inovações político-sociais de ampla unidade, mas com tática e estratégia que apontem para um programa que supere a inserção pelo mercado, ou seja, que tenha um caráter anticapitalista.
Essas inovações devem ter capacidade de formulação programática e estratégica que proponham vitórias com a experiência de ação direta da classe organizada brasileira, isto é, com referência de massas, com capacidade de intervenção nos setores organizados dos lutadores do campo, das ocupações urbanas e das juventudes progressistas, mas ultrapassar este setor. Garantir influência social em relações aos trabalhadores antes apoiadores do lulismo, agora descontentes que não se identificam completamente com a retórica direitista, mas também deslocar franjas populares que estão sob a égide da extrema direita e num eventual governo Temer possam se arrepender do que fizeram.
É necessária uma noção de factibilidade na elaboração da esquerda anticapitalista e socialista. Isso significa pensar que devemos nos propor a estar no poder no médio prazo e isso não necessariamente redundar numa revolução mundial que se daria automática e simultaneamente. Ao adotar medidas radicais necessárias, como distribuir terras e tornar públicas empresas chave, teremos focos de instabilidade político-sociais. Mas precisamos criar espaços de estabilidade, com emprego e convivência, mesmo que conflitiva, com setores capitalistas.
E mais, é necessário pensar no aprofundamento da democracia como forma de superar nosso atraso de cultura político-oligarca de classes médias, como a luta de massas por referendo revogatório, financiamento público e outras formas de democracia radical, que têm de sair do papel e da carta de intenções e se tornarem reais no curto prazo.
E, principalmente, precisamos discutir com toda a esquerda e mesmo setores honestos petistas, com quem hoje cerramos fileiras na luta contra o golpe, sobre a necessidade de economia popular com inserção pelos direitos. Assim, com uma ideia de solução econômica para garantir o pleno emprego por meio de programas populares, com novos atores econômicos, isto é, a reestruturação por baixo da economia e não pelo alto. Diferente do ajuste e do desemprego, é necessário criar novos setores geradores de emprego. A questão central é ter base financeira no fundo público do Estado e ter como principal agente produtivo a capacidade popular de auto-organização em setores produtivos. O grande capital deve ser regulado e taxado para redistribuir estes recursos na geração de emprego e direitos. É reatualizar reforma agrária, urbana e reformas que impliquem investimentos no setor público e na criação de salário digno.
Aqui, há um esboço de um modelo de economia popular que não cabe neste artigo, mas que é parte da realidade da nossa luta. Um programa que se tornou minoritário no PT, mas que se refez e se renova na oposição de esquerda e nas lutas sociais destes últimos anos. É necessário, para ontem, dar um sentido estratégico ao belo movimento vermelho que saiu às ruas contra o fascismo social e por direitos. O que significa não ter sectarismo entre aqueles que sempre puderam ter a razão. Agora não importa apenas saber das coisas, mas conviver com quem tem disposição para mudá-las.
Venâncio Guerrero é doutorando em economia pela UNAM (México) e militante do PSOL.