A era do capitalismo digital-financeiro implica a completa possibilidade da substituição do trabalhador vivo pela máquina
Por José Micaelson Lacerda Morais*
Texto publicado originalmente no blog A Terra é redonda
O capitalismo digital-financeiro-de-vigilância impacta o mundo do trabalho de três formas, a saber: (1) reorganização da força de trabalho através da inclusão de uma nova categoria (trabalhadores de aplicativos) que está à margem de qualquer direito trabalhista; (2) como consequência do primeiro, estabelece novas relações de trabalho com grau de exploração maior que o próprio trabalho assalariado; e (3) aumenta o sedimento mais baixo da superpopulação relativa que habita o pauperismo, mesmo para os mais aptos ao trabalho, lançados de forma definitiva à informalidade pelas novas tecnologias e pelo novo padrão de automação da indústria 4.0 (que tanto poupam força de trabalho quanto usam de forma crescente robôs para executar as mais diversas atividades antes realizadas por humanos).
Nesse contexto, não está em questão somente a desvalorização da capacidade de trabalho de um grande conjunto de atividades humanas, tampouco apenas a substituição parcial da força de trabalho pela máquina. A era do capitalismo digital-financeiro implica a completa possibilidade da substituição do trabalhador vivo pela máquina, consequentemente, uma completa destruição do mundo do trabalho como o conhecemos. O aspecto mais intrigante desse processo é que ele pode não enredar a destruição do processo de acumulação de capital. Tal é sua contradição (acumulação desvinculada do processo de trabalho propriamente dito)! Ao invés desse processo representar a completa destruição do capitalismo, parece prover novos meios ao movimento da acumulação, através do que denominamos de autonomização da autodeterminação do capital (assunto discutido em outro artigo, “O super capitalismo”, também publicado neste site). De forma geral, denominamos de autonomização da autodeterminação do capital o processo que resulta da interação entre financeirização e digitalização da economia, do qual se origina uma nova lógica de acumulação, que abre novas fronteiras para a continuidade do capitalismo, enquanto modo de produção dominante.
Alguns exemplos do ex-mundo do trabalho. O McDonald’s, a gigante do fast-food, começou a testar um dispositivo de inteligência artificial (IA) em 10 restaurantes na cidade de Chicago, nos EUA, que substitui atendentes humanos do drive-thru por bots. Outro exemplo, ainda no setor de alimentação, mostra que tal substituição está acontecendo não só no setor de atendimento, mas também na própria produção. O Brooklyn Dumpling Shop é um fast-food que abriu as portas recentemente (2021), no Brooklyn,e opera de forma automática, com contato humano zero. O cliente não encontra ninguém ao entrar na loja, o pedido e o pagamento são realizados por meio de um totem, a comida é totalmente feita por uma máquina chamada “monstro”, capaz de produzir 30 mil unidades por hora, depois colocada em um armário que o cliente libera com um código de barras (UOL, 03/06/2021).
Outra reportagem, também do UOL, de 30/04/2021, traz como título “Sem pedreiro: casal vai viver na 1ª casa feita por impressora 3D na Europa”. A primeira casa europeia produzida quase que inteiramente em 3D, fica no sul da Holanda, em Eindhoven, e foi construída com 24 peças de concreto impressas por uma máquina, dispensando pedreiros e um conjunto de materiais e estruturas, antes necessárias para a construção convencional de uma casa.
Enquanto isso, na Grande São Paulo:
“Formado em marketing, Claudio Francisco de Carvalho Junior, 37, faz entregas por aplicativo na cidade de São Paulo há um ano. Ele atua em uma área nobre do centro expandido da capital — passando pela Paulista, Aclimação, Bom Retiro, Barra Funda, Perdizes e Pompeia […] No início da pandemia de covid-19, Carvalho encontrou no delivery uma oportunidade para se manter. Hoje, conta que as dificuldades são muitas, desde situações delicadas no trânsito, a pressão para a entrega rápida, passando por uma remuneração que chega perto da dignidade só se as jornadas passarem de 12 horas diárias […]Os motoboys David, 27, e Francisco, 31, […] viraram entregadores de comida por causa da pandemia […]
Sem rumo e sem dinheiro, compraram suas motos, baixaram um aplicativo de delivery e, desde então, saem da zona leste da cidade todos os dias em direção ao centro da capital […]
Os entregadores de aplicativos não são contratados formalmente. Por isso, não recebem benefícios como vale-refeição ou plano de saúde […]Segundo estimativa do Sindmoto (Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Moto-Taxistas do Estado de São Paulo):
• A cidade de São Paulo tem em torno de 320 mil motociclistas.
• No estado, são 650 mil.
A entidade calcula que houve aumento de 20% a 25% no número de motociclistas que passaram a atuar profissionalmente com entregas e outros serviços neste ano, na comparação com 2020” (UOL, 06/2021).
A realização de tarefas por máquinas e algoritmos vai mais além. A Amazon, por exemplo, vem substituindo o seu setor de RH por robôs, “[…] não apenas para gerenciar funcionários em seus depósitos, mas para supervisionar motoristas contratados, empresas de entrega independentes e até mesmo o desempenho de seus funcionários de escritório” (O GLOBO, 28/06/2021). O curioso é que a matéria da qual foi extraída esta citação tem como título “‘Fui despedido por um robô’: como a Amazon deixa máquinas decidirem destino dos trabalhadores”. Ela conta a história de Stephen Normandin que foi demitido via um e-mail automático.
“O veterano do Exército de 63 anos ficou pasmo. Ele havia sido despedido por uma máquina. Normandin diz que a Amazon o puniu por coisas além de seu controle que o impediram de concluir suas entregas, como complexos de apartamentos fechados com chave. ‘Eu sou o tipo de cara da velha escola e dou 100% de mim em cada trabalho’, disse ele. ‘Isso realmente me chateou porque estamos falando sobre minha reputação. Eles dizem que eu não fiz o trabalho, quando sei muito bem que fiz’. Na Amazon, as máquinas costumam ser o chefe — contratando, avaliando e demitindo milhões de pessoas com pouca ou nenhuma supervisão humana” (O GLOBO, 28/06/2021).
Além das linhas de produção dos setores mais dinâmicos da economia mundial, muitas outras atividades já se tornaram praticamente robotizadas, tais como atendimento de call center, consultores financeiros, de vendas e de marketing, até lojas comerciais, como a Amazon Go. Esta última utiliza uma tecnologia denominada de Just Walk Out Shopping, mesmo tipo de tecnologias usada em carros autônomos.
Sobre os escombros do mundo do trabalho se ergue um capitalismo imparável e ao mesmo tempo autodestrutivo. No entanto, esta autodestruição pode não implicar, necessariamente, sua substituição por outra forma de organização social. Pode, sim, no limite significar a própria aniquilação da vida humana na terra.
No limite, ainda, parece mesmo que estamos construindo um mundo pelas máquinas e para as máquinas. Até parece, também, que nós humanos e a natureza de forma geral somos apenas inputs agora necessários, mas que seremos ao seu tempo elementos descartáveis desse processo. No intermédio, estamos caminhando para tornar real uma obra de ficção apocalíptica. Entre tantas outras, lembramos de Elysium, um longa-metragem de 2013, do diretor Neill Blomkamp. Apesar de constituir apenas uma obra de entretenimento à moda hollywoodiana, talvez tenha capturado o sentido e a direção que pode tomar a sociedade do capital. Nele, a terra do século XXII não passará de um grande lixão, ainda miseravelmente habitável pelos tantos que foram deixados para trás. Uma seleta parte da humanidade irá viver em abundância, paz e beleza, em um satélite artificial, totalmente robotizado, criado para ser um verdadeiro paraíso.
Pelo poder alcançado pelo capital com o capitalismo digital-financeiro-de-vigilância, talvez nunca passemos da pré-história humana, no sentido humanista do próprio Marx. A transformação da ciência não só em mercadoria, mas em capital, conferiu a este um poder praticamente sem limites.
Desde que o gênero homo começou a sua aventura, há cerca de 2,2 milhões de anos, a humanidade não deu um passo sequer em direção a ela mesma. O capital representa nesse processo o ápice de uma construção social totalmente negada por nós, enquanto seres racionais, mas mesmo assim erguida através do roubo de milhares de vida no decorrer do tempo histórico. Todo trabalho acumulado, toda tecnologia desenvolvida, todas as mercadorias produzidas, não foram suficientes para nos mostrar que cada vida importa, nessa nossa curta existência coletiva terrena. De que importa o grau de educação, de saúde, as grandes cidades, a quantidade e a diversidade de produtos, a sofisticação tecnológica que alcançamos, se não nos tratamos como iguais? Se não nos respeitamos como iguais! Se não repartimos os frutos do trabalho social como iguais! Se destruímos com tanta avidez o meio que preserva nossa própria existência!
Nesse sentido, a nossa capacidade de raciocínio, de planejar, projetar e executar, parece que não serviu para eliminar a violência como forma animal da nossa existência, tão somente serviu para executá-la com requintes de crueldade cada vez mais sofisticados. Movidos por motivos de crença, raça, poder, misoginia, xenofobia, riqueza, ciência, etc., promoveram-se as mais horríveis e grandiosas violências, como as cruzadas, o escravismo capitalista, o nazismo, o neoliberalismo, etc., etc., etc.
O século XX apresenta-se emblemático para a humanidade. Pois, em apenas um século, criamos a capacidade de destruir milhares de anos da existência humana e de sua história. O anúncio foi feito, em 1945, com a explosão da bomba nuclear em Hiroshima. Por sua vez, a guerra fria fez proliferar armas nucleares como cogumelos. A economia e a ciência promoveram uma devastação contínua na terra, nos rios, oceanos, modificando a própria biosfera do planeta. A mundialização do capital, sua digitalização, e a forma política criada para sua gestão ‒ o neoliberalismo, fizeram as democracias derretem tal como açúcar na água, completou a transformação da política em negócio, por sinal muito lucrativo, separando-a de vez da sociedade. Não há desenvolvimento descontrolado das ciências e das técnicas. Pelo contrário, as ciências e as técnicas se tornaram formas capitais da acumulação pela acumulação, autonomizando completamente o capital dos conteúdos da vida. A regressão política e social a qual estamos imersos talvez tenha um significado maior; da criação mesmo de uma nova sociedade. Não de liberdade, igualdade e justiça para toda a humanidade, talvez tão somente para o pequeno grupo que conseguir deixar o planeta terra antes do seu esgotamento total.
Como o saudoso Raul Seixas cantava em “ouro de tolo”, “eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar”. Eu existo, penso, escrevo e denuncio sobre a nossa condição. E mesmo me sentido abraçado pelo vazio, pois se você não conseguir uma “reserva” nunca que poderá jantar no restaurante do meio científico, eu continuo.
Todavia, esperar que o “capital” altere sua consciência e sua fome de lucro (que capitalistas, de forma geral, percebam de alguma forma que cada vida importa), parece ser o mesmo que acreditar que a história humana não tenha sido construída sobre a exploração, a expropriação do trabalho e de seus frutos, de muitos por poucos. Nesse sentido, o capitalismo não seria, como pensava Marx, um ponto de inflexão dessa trajetória, mas o coroamento da única forma de sociabilidade possível ao longo de toda história humana, baseada justamente na exploração, expropriação e predação.
Gostaria de terminar esse artigo de forma otimista. Todavia, parece não existir mais forças humanas e sociais suficientes para frear o poder destrutivo do capital, tão brutal quanto o da própria natureza. As leis de movimento do capital adquiriram tanta inércia que não há mais nada que possa se opor a sua velocidade e trajetória. No limite, a destruição da humanidade. No intermédio, duas formas de sociedade fisicamente separadas. Uma rica e tecnologicamente sofisticada (quem sabe em outro planeta), outra miserável, ambientalmente destruída e vivendo das sobras e descartes tecnológicos da primeira. Eis, aí, o nosso “admirável mundo novo” a caminho da realidade. O capitalismo pode não ser o fim da história, mas pode muito bem ser a história do fim. Ver nossas alternativas de enfrentamento se tornando cada vez exíguas é muito desalentador, mas enquanto houver vida devemos seguir lutando. Todavia, o exclusivismo científico (segregação de pesquisadores por grupo de pesquisa, instituição, região) e a soberba acadêmica (a ciência acima da sociedade e do seu cotidiano) somente adicionam um grau a mais nesse desalento.
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Trecho do livro O capitalismo e a revolução do valor: apogeu e aniquilação. São Paulo, Amazon (Independently Published), 2021.
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*José Micaelson Lacerda Morais é professor do Departamento de Economia da URCA.
Referências
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
O GLOBO. ‘Fui despedido por um robô’: como a Amazon deixa máquinas decidirem destino dos trabalhadores. Publicado em 28/06/2021). Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/fui-despedido-por-um-robo-como-amazon-deixa-maquinas-decidirem-destino-dos-trabalhadores-25079925. Acessado em 15/07/2021.
UOL. “Almoçar é uma raridade”. Reportagem de Leonardo Martins e Maria Tereza Cruz (Texto) e Tommaso Protti (Fotos). Publicado em 06/2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/desigualdade-na-pandemia—na-rua-e-com-fome/#cover. Acessado em15/07/2021.