Por Guilherme Boulos
“Não conseguimos resolver um problema com base no mesmo raciocínio usado para cria-lo”. A frase é do físico Albert Einstein, mas ela cai como uma luva para a encruzilhada que vivemos no Brasil de hoje e os desafios que teremos para as eleições de outubro e para o amanhã – as novas gerações. Derrotar Bolsonaro e colocar em prática um plano para reconstrução do Brasil exigem que o nosso campo político tenha nitidez do que está em jogo. Reciclar receitas, tanto na política quanto na economia, não vai tirar o país do buraco. Simplesmente porque 2023 não será igual a 2003. Temos de aprender com os erros dos últimos 20 anos para escolher os caminhos certos para os próximos 20.
A realidade, hoje, é muito mais dura: temos uma economia em frangalhos e uma crise institucional que se arrasta há anos e coloca em xeque a própria estabilidade democrática.
O primeiro passo é não subestimar o inimigo e a máquina de ódio da extrema-direita, como aconteceu em 2018. A eleição de outubro não está ganha. Muito longe disso. Embora seja o pior presidente da nossa história e com índices de desaprovação popular acima de 60%, segundo pesquisa XP/Ipespe de abril, Bolsonaro maneja o Orçamento da União com o Congresso de forma inédita. Com o orçamento secreto, comprou a peso de ouro uma maioria parlamentar, evitando o impeachment após o genocídio da pandemia. Com programas eleitoreiros e sem continuidade como política pública longeva, como o Auxílio Brasil, busca apenas recuperar popularidade e tentar viabilizar sua reeleição.
Bolsonaro é a face mais visível do mal, que flerta com a ideia de uma nova ditadura militar, porém ele não é a única ameaça que temos para a democracia. O poder do Centrão – que sequestrou o orçamento – corrói o papel do Poder Legislativo em si e, também, a capacidade do Estado de planejar políticas públicas.
Temos uma missão dupla para outubro: derrotar Bolsonaro e barrar o Centrão.
Para isso, além de eleger Lula como presidente, precisamos construir uma bancada progressista capaz de equilibrar o jogo da governabilidade e abrir caminho para transformações populares. Atuando com unidade e acertando na política, o PSOL tem chances reais de dobrar sua bancada na Câmara Federal.
O descrédito na política e o sentimento de ódio que desaguou em Bolsonaro há quatro anos se deve muito aos abusos da Lava Jato e ao viés político de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, porém a péssima imagem pública do Congresso nas últimas décadas ajudou – e muito – nessa construção. Basta ir às ruas e perguntar a qualquer cidadão o que ele pensa sobre os políticos e o trabalho dos parlamentares. Em abril, segundo o Ipespe, 48% avaliaram o Congresso como ruim ou péssimo e apenas 9%, como ótimo e bom. Impossível imaginar outro resultado. A “Casa do Povo” foi ficando cada vez mais distante e inóspita. O povo não se vê ali. Da pandemia para cá, sob o comando de Arthur Lira e o Centrão, as portas se fecharam, literalmente. Só entra quem recebe um convite com QR Code para passar pela forte segurança. E o direito de ocupar e se manifestar nas galerias do plenário?
O Congresso se tornou ainda mais conservador e fisiológico, o que só faz endossar a descrença da sociedade. A esquerda perdeu espaço e protagonismo na vida parlamentar, enquanto o Centrão e as bancadas conservadoras tomaram o Congresso literalmente de assalto. O campo progressista – que reúne PSOL, PT, PSB, PC do B, PDT, Rede e PV – encolheu 21% em duas décadas, passando de 151 deputados eleitos em 2002 para 119 deputados, atualmente. Comparando os números de hoje com o resultado das urnas de 2018, vemos uma perda de 14%.
Já o Centrão caminha a passos largos na direção oposta. O bloco surge na década de 80, ainda no período da Constituinte, afirmando-se como o Centro Democrático, sob a liderança de Ulysses Guimarães. De fato, aquele Centro cumpriu um papel na redemocratização, mas, ao longo do tempo, afundou-se no pântano fisiológico e enterrou qualquer potencial progressivo. A partir dos anos 90, passa a ser o fiel da balança da governabilidade em todos os governos eleitos da Nova República. Na prática, ninguém governou o Brasil sem negociar com PMDB, PTB, PP, PL e outros partidos que nunca tiveram expressão nas eleições presidenciais, mas sempre deram as cartas no Congresso.
A partir de 2015, com Eduardo Cunha à frente, o grupo alcança outro patamar – uma espécie de Centrão 2.0. Mais organizados e coesos sob a batuta mafiosa de Cunha, eles descobrem que não são apenas capazes de barrar ou aprovar medidas do governo. Com o golpe parlamentar contra a então presidenta Dilma Rousseff, eles deixam claro que detêm o poder de decidir quem governa e quem cai. E isso torna a fatura do ‘toma lá, dá cá’ muito mais cara. Com Bolsonaro – que, é sempre bom lembrar, fez carreira política de baixo clero sempre nos partidos do bloco –, eles dão um passo além. Sequestram o Orçamento da União, multiplicando por dez os valores das emendas parlamentares. É o Centrão 3.0, que transforma o Poder Executivo num refém permanente. O presidencialismo de coalizão dá lugar ao presidencialismo de coerção.
Os números assustam.
De 2002 a 2022, o Centrão cresceu 38%, passando de 260 para 345 deputados, somando os dois terços necessários para aprovar emendas constitucionais ou derrubar o governo. Só de 2018 até hoje, o grupo ficou 14% maior, e Bolsonaro é cúmplice desse crescimento. A bancada do PL, novo partido do presidente, saltou de 33 deputados eleitos há quatro anos para 77, atualmente. Uma alta de 133%. Já o PP, comandado pelo ministro Ciro Nogueira, passou de 38 para 52 parlamentares.
Daí vem a pergunta: basta apenas eleger o presidente Lula sem mudar a realidade e a composição do Congresso? Claramente, não. Se o Centrão se mantiver com o mesmo tamanho, o impeachment seria uma ameaça diária e o governo seguiria em cativeiro. Sem uma representatividade mais forte do campo progressista, dificilmente avançaremos em agendas fundamentais para a esquerda, a começar pela revogação das Reformas Trabalhista e Previdenciária e do Teto de Gastos.
O desafio que se tem na política econômica é ainda maior. Desde 2016, a dobradinha Michel Temer e Jair Bolsonaro devastou a economia e deixou o Brasil sem rumo e mais miserável. Colocaram em prática uma agenda de retrocessos econômicos, sociais e ambientais. O país voltou para o mapa da fome, a população em situação de rua disparou, o desemprego se mantém em níveis recordes, a relação dívida/PIB não para de crescer e o Estado perdeu sua capacidade de investir. Não bastasse, eles também despertaram o monstro adormecido da inflação. Em março, a alta nos preços – e não estamos falando apenas dos combustíveis e do gás de cozinha – foi a maior em 28 anos.
No plano internacional, a realidade atual é bem distinta da de 20 anos atrás. A economia global cresce a níveis baixos, a China reduziu seu patamar de aumento do PIB a um dígito e o espaço para conciliar avanços em direitos com manutenção dos privilégios reduziu-se drasticamente. O cobertor econômico está mais curto e não permite garantir políticas públicas e transferência de renda apenas por manejo orçamentário. O Brasil pós-Bolsonaro não terá essa margem de manobra.
Estamos num momento histórico em que para avançar em direitos e políticas sociais será necessário, enfim, tocar em privilégios e reverter insanidades neoliberais. A margem econômica para um projeto de reconstrução nacional, ancorado num pesado programa de retomada dos investimentos públicos, só será obtida com medidas mais ousadas, tanto na área tributária quanto na fiscal.
É bom relembrar as sábias palavras do filósofo grego Heráclito: “Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. Porque as águas não serão as mesmas, nem nós”. O Brasil mudou, e foi para pior. Será preciso agir com mais ousadia para atender as expectativas populares. Porque o que está em jogo em outubro não é apenas uma eleição, é a encruzilhada histórica mais importante do Brasil no século XXI.