Por Valerio Arcary
Antes do anúncio da aposentadoria de Celso de Melo, parecia que o julgamento do Habeas Corpus de Lula na segunda turma do Supremo Tribunal Federal (STF) deveria acontecer até o final de outubro. Agora, ninguém sabe.
Será o julgamento político mais importante do ano. Há muitas tecnicalidades jurídicas em disputa, mas, em traços gerais, dois desenlaces possíveis. Ou Lula perde o HC e não poderá ser candidato em 2022, ou Lula recupera os direitos políticos e, se quiser, passa a ser pré-candidato. Portanto, esse julgamento remete à questão do poder e consiste, do ponto de vista jurídico, essencialmente, em uma avaliação dos procedimentos de Sérgio Moro e sua relação com os procuradores de Curitiba. A aprovação do HC de Lula corresponde à anulação das sentenças, e o desmonte de um discurso político hegemônico nos últimos cinco anos. Portanto, um terremoto.
O desfecho sempre foi imprevisível, porque as consequências são imensuráveis. Depois de tudo que aconteceu no Brasil, depois do golpe institucional, seria ingenuidade imperdoável subestimar a pressão da fração majoritária da classe dominante para manter a condenação de Lula.
Depende da iniciativa de Gilmar Mendes colocar em pauta. Considerando uma provável antecipação dos votos na segunda turma, o julgamento estaria, neste momento, empatado, o que significaria que a sentença seria pró-réu. Toffoli deve substituir Celso de Melo na segunda turma. O que poderia sugerir um resultado ainda melhor, menos contestável. Mas a máxima gravidade desse desenlace exige considerar a possibilidade que a decisão seja levada ao Plenário. A indicação do substituto de Celso de Melo por Bolsonaro introduz ainda mais incerteza.
Há, portanto, uma possibilidade, mas nada será assim tão simples.
POSIÇÃO NA CLASSE DOMINANTE
Se Lula não fosse ainda um candidato competitivo nas eleições de 2022, a possibilidade de recuperação plena de seus direitos políticos seria muito maior. A interdição dele é uma posição majoritária na classe dominante, mesmo nos círculos que admitem os abusos de poder da operação Lava-Jato. Ela obedece, neste momento, a um cálculo de que a candidatura de Lula tornaria um segundo turno contra Bolsonaro uma grande possibilidade.
Ainda que qualquer um dos cinco ministros da segunda turma possa, eventualmente, mudar os votos, a decisão parece estar nas mãos de Toffoli, porque já se sabe que Lewandowsky e Gilmar Mendes, em princípio, votarão a favor do HC, e Carmem Lúcia e Edson Fachin votarão contra.
Se Toffoli desempatar a favor do HC de Lula, não é impossível que uma decisão final possa ser transferida, hipoteticamente, para o Plenário do STF, com Luís Fux, um defensor da operação LavaJato, na presidência do STF. No plenário há alguma incerteza, porque cinco dos onze ministros já votaram no passado, criticamente, face à Lava-Jato, embora sobre temas menos controversos: Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, e Dias Toffoli. Incerto, duvidoso e até improvável, porque o substituto de Celso de Melo foi nomeado por Bolsonaro.
A incerteza resulta da ruptura de Bolsonaro com Sérgio Moro. Assistimos, depois da posse de Augusto Aras na Procuradoria Geral da República (PGR), a um esvaziamento do poder do núcleo de Curitiba.
A OPERAÇÃO E SEU CONTEXTO
A operação LavaJato só pode ser compreendida em contexto histórico. Há na esquerda, essencialmente, duas posições sobre o seu significado.
Há a interpretação de que foi uma operação progressiva no combate à corrupção, impulsionada pelo engajamento republicano de uma nova geração de procuradores e juízes, ainda que tenha cometido excessos na exploração de delações premiadas, e transgredido os limites de procedimentos com conduções coercitivas e prisões preventivas.
Quem defende essa análise secundariza o impacto da LavaJato na ofensiva reacionária que passou pelo impeachment de Dilma Rousseff, posse de Temer, condenação de Lula, e que culminou na eleição de Bolsonaro. Essa posição tem representação minoritária no PSOL e, surpreendentemente, até no próprio PT. Ela traduz o grau de adaptação política e ideológica à institucionalidade do regime democrático-eleitoral, e a pressão da maioria das camadas médias.
Há a interpretação de que foi uma operação política orientada, desde o início, no contexto aberto pelas mobilizações abertas em junho de 2013, e da disputa eleitoral de 2014, por uma estratégia de deslocamento do sistema de partidos consolidado na Nova República, e de uma perseguição à direção do PT, e criminalização de Lula.
Quem defende essa interpretação sublinha que sem a LavaJato teria sido muito difícil, senão impossível, o alcance de milhões das mobilizações pelo impeachment, e o caminho aberto para a extrema direita em 2018. Essa posição é majoritária no PT, PSOL e PCdoB e revela um mínimo instinto de classe, e até de sobrevivência política diante do que foi o golpe institucional de 2016 e o deslocamento das camadas médias para a extrema direita, que se expressou na vitória eleitoral do neofascista Bolsonaro.
SEM JEITINHO
Não haverá muito espaço para um “jeitinho” para esse julgamento no STF, embora nunca se deva subestimar a imaginação jurídica dos juízes do STF, pois se há uma maioria burguesa a favor de manter a condenação de Lula, é cada vez mais claro que há diferentes frações, com interesses distintos, em oposição à Lava Jato.
A ruptura de Sérgio Moro com o governo teve como consequência um processo no STF em que Bolsonaro é acusado de tentar intervir na Polícia Federal, portanto, abuso de poder. Não devemos diminuir, tampouco, a censura que Dallagnol recebeu no Conselho Nacional de Justiça. Mas as divergências de projetos políticos colocaram a judicialização da luta política em outro patamar com a iniciativa de Aras de concentrar na PGR em Brasília todas as operações contra a corrupção, esvaziando Curitiba.
A percepção de que a “Lava-Jato já fez o que deveria ser feito” e foi até longe demais, ou uma combinação de pressão do bolsonarismo e malestar no centrão vem crescendo no Congresso. PSDB, MDB e DEM já foram atingidos pela Lava-Jato e continuam acossados porque Serra e Alckmin voltaram às manchetes e terão dificuldades de escapar, junto a Aécio, de uma condenação, pelo menos de formação de caixa dois, senão enriquecimento pessoal ilícito, o que é mais grave.
O próprio bolsonarismo assumiu um questionamento aos procuradores da LavaJato, pela iniciativa da PGR sob o comando de Aras. O que sinaliza que Bolsonaro prefere um segundo turno em 2022 contra Lula, e não contra Sérgio Moro ou Dória.
A SOBREVIVÊNCIA DE BOLSONARO
A classe dominante está dividida, mas parece incontornável que, se Bolsonaro conseguir sobreviver até 2022, deverá chegar ao segundo turno. Uma maioria da burguesia trabalha, portanto, para evitar que a esquerda possa chegar ao segundo turno.
Naquelas frações que apostam em uma candidatura de Sérgio Moro ou de Dória, ou de outro como Luciano Huck, prevalece a perspectiva de que a gravidade da crise social, assim que o colchão do auxílio emergencial for suspenso, mesmo se for substituído pelo Renda Brasil, impede que a esquerda, em especial, se Lula puder ser candidato, seja excluída de um segundo turno. Portanto, liquidaria a possibilidade de uma candidatura liberal contra Bolsonaro, porque o lugar de Moro e Dória, diante da polarização, seria semelhante ao de Alckmin. Logo a interdição de Lula é estratégica.
O PSOL defende os direitos democráticos de Lula, mas não aprova nem defende o balanço dos governos liderados pelo PT, portanto, não apoiará Lula. Em 2022, o PSOL voltará à disputa com candidatura própria. Não há qualquer contradição nessa localização, uma vez que compreendemos que Sérgio Moro liderou uma perseguição política, não um julgamento. O que foi feito pela LavaJato em Curitiba contra Lula foi uma aberração jurídica. Se fizeram contra Lula, podem fazer contra qualquer um.
Apresentamos Boulos no primeiro turno, em 2018, e estivemos, no segundo turno, na primeira linha da campanha de Haddad. Discordamos da estratégia que o PT, quando esteve no governo federal, desenvolveu e que, finalmente, fracassou quando foi necessário medir forças contra o impeachment. Ensina a sabedoria popular, não se fazem omeletes sem quebrar ovos.
Mas, apesar das diferenças com o PT, o PSOL – quando sua candidatura não alcançar o segundo turno – estará muito firme ao lado da candidatura de esquerda melhor colocada. Assim, como esperamos que o restante da esquerda esteja ao nosso lado, quando for necessário. Estamos em um mesmo campo de classe.
Valerio Arcary é professor titular aposentado do IFSP e Doutor em história pela USP. Foi presidente nacional do PSTU entre 1993/98 e, desde 2016, é membro da Coordenação Nacional do MAIS/PSOL. É autor de O martelo da história, entre outros livros.