Chico Alencar
O governo de Michel Temer, desde sua interinidade, é uma permanente coalizão patriarcal de investigados, privatistas, fisiológicos e reacionários.
Sucede ao governo Dilma II, com quem Temer foi eleito em 2014. Governo que, a rigor, sequer começou não indo além de tentativas “levianas” (de Joaquim Levy) de implementar um programa de “ajuste” neoliberal não chancelado pelas urnas. Só às vésperas do início do processo de impeachment, premida pelas circunstâncias adversas, Dilma dialogou com os movimentos sociais, demarcou terras indígenas e mostrou-se mais sensível às demandas dos mais pobres. Pelo visto, não adiantou: era tarde demais. Seus então aliados já conspiravam. Apoiados em um bloco do poder econômico, político e midiático, destituíram a presidente, que já não lhes era funcional.
Mais do que a derrubada parlamentar da presidente, sob o manto constitucional do impeachment, o golpe está sendo aplicado através da introdução de políticas jamais aprovadas pelas urnas. Em todas as áreas! Procedeu-se a um real desmantelamento dos nichos de políticas públicas progressistas que existiam em diversos setores, hoje sob o manto do obscurantismo e dos interesses do Deus-Mercado.
O RETORNO DE QUEM NUNCA ESTEVE FORA (mais do mesmo, bem piorado)
Reconheçamos: a equipe de Michel Miguel Elias Temer Lulia (sim, é esse o nome completo do homem!) tem vários personagens que serviram a Dilma ou foram, como parlamentares, de sua base de apoio. Nesse aspecto, o governo atual tem algo de continuidade, só que piorada. A direita que já estava no aparelho de Estado passou a ter clara e retrógrada hegemonia.
O episódio de constituição da nova direção de Furnas Centrais Elétricas é revelador. O exsenador Delcídio do Amaral, preso quando era líder do governo Dilma, foi taxativo em suas declarações: “Dilma teve praticamente que fazer uma intervenção na empresa para cessar as práticas ilícitas, pois existiam muitas notícias de negócios suspeitos e ilegalidades” (…) “Esta mudança na diretoria de Furnas foi o início do enfrentamento de Dilma com Eduardo Cunha”. O senador petista (ex-tucano) cassado também relacionou o senador Aécio Neves a obscuridades desenvolvidas na estatal durante o governo Fernando Henrique Cardoso. O Supremo Tribunal Federal (STF) instaurou inquérito para investigar o caso.
No início de julho, Temer entregou à bancada do PMDB na Câmara o comando de Furnas. “Vou devolver a estatal a eles. Furnas pode ser mais expressiva politicamente do que o Turismo. Tem Chesf, Eletronorte, Eletrosul, Itaipu…”, afirmou, sem disfarces, o interino ao jornal “O Estado de São Paulo”. No dialeto de Brasília, “expressiva politicamente” quer dizer outra coisa explica o colunista Bernardo Mello Franco, na “Folha de São Paulo” de 17/7/2016.
Romero Jucá, que foi por breve tempo o todo-poderoso ministro do Planejamento de Temer, segue articulando à vontade pelo governo. Não se faz de rogado, apesar da explosiva conversa com Sérgio Machado, que lhe valeu o cargo. Sobre a Lava-Jato, disse Sua Excelência: “A Lava-Jato é importante, precisa ser investigada, mas tem que delimitá-la. (…) Tem que resolver essa porra… Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria”. Esgotado o arsenal de denúncias contra o PT (que fez por merecer), esta “operação-abafa” visaria blindar todos os figurões dos grandes partidos da política nacional.
Outro a dar suas “pixotadas”, mal começara a gestão temerária, Alexandre de Moraes, egresso da gestão Alckmin em São Paulo e de um escritório de advocacia que já defendera Eduardo Cunha, foi nomeado ministro da Justiça e Cidadania. Sobre o acesso a direitos, o novo “capitão da cidadania” que acredita ser “segurança mais importante que educação” se saiu com essa: “Nenhum direito é absoluto. O país precisa funcionar”. Moraes propôs, ainda, que o governo federal não nomeie obrigatoriamente, para a chefia da Procuradoria-Geral da República, o mais votado em uma lista tríplice por integrantes da carreira: “O que garante a autonomia do Ministério Público, e isso foi muito discutido na Constituinte, não é só a forma de escolha até 1988, o presidente poderia indicar alguém de fora da carreira do MP para o cargo, mas a forma de destituição do procurador-geral. Ele tem hoje um mandato de dois anos. E só pode ser afastado se o presidente da República pedir e o Senado aprovar por maioria absoluta.”
Ricardo Barros, parlamentar do PP paranaense, ex-apoiador de Dilma, é um ministro da Saúde que se notabiliza pelo desapreço ao… Sistema Único de Saúde (SUS). Barros que ainda acredita que o homem trabalha mais que a mulher e por isso se cuida menos defendeu que o tamanho do SUS seja revisto, uma vez que o país não conseguirá mais sustentar os direitos constitucionais. “A ANS precisa ser mais ágil na regulação. A judicialização na área dos planos tem obrigado a que eles façam reajustes muito acima da inflação. Cada vez que uma decisão judicial determina incluir um procedimento na cobertura do plano, aumenta o custo e ele tem que repassar para o consumidor. Isso acaba prejudicando todos os usuários, encarecendo o sistema e fazendo com que mais pessoas deixem de ter planos. Quanto mais gente puder ter planos, melhor, porque vai ter atendimento patrocinado por eles mesmos, aliviando o custo do governo para sustentar essa questão.” Detalhe: na sua campanha eleitoral, as doações de empresas de planos de saúde foram muito expressivas.
O ministro-deputado foi além e resolveu pontificar sobre a nossa ordem legal: “O que Sarney falou quando promulgou a Constituição Cidadã? Que o Brasil iria ficar ingovernável. Por quê? Porque só tem direitos lá, não tem deveres. Nós não vamos conseguir sustentar o nível de direitos que a Constituição determina. Em um determinado momento, vamos ter que repactuar, como aconteceu na Grécia, que cortou as aposentadorias, e outros países que tiveram que repactuar as obrigações do Estado porque ele não tinha mais capacidade de sustentá-las. Não adianta lutar por direitos que não poderão ser entregues pelo Estado. Temos que chegar ao ponto do equilíbrio entre o que o Estado tem condições de suprir e o que o cidadão tem direito de receber.” Já para os grandes bancos e para os rentistas, nada falta…
Geddel Vieira Lima, secretário de Governo, outro que atuou no governo petista com importante diretoria da Caixa Econômica Federal, faz o papel de “brucutu”, com suas tiradas grosseiras. Também historicamente questionado por sua conduta ética (ficou célebre sua contenda contra ACM, que denunciara seu suposto enriquecimento ilícito), disse que “não temia a Lava-Jato, pois sabia o que fez no verão passado”. Provocado em rede social sobre se lembrava do que fizera “no inverno, outono e primavera passados e que fora solidário com Eduardo Cunha”, o ministro foi curto e grosso: “Não, me aquecia na casa da sua mãe!”.
Na Educação, o ministro Mendonça Filho, do DEM, não conhece a obra de seu conterrâneo Paulo Freire (“sou formado em administração de empresas”), mas recebeu, nos primeiros dias de sua gestão, o polêmico ator Alexandre Frota. Ao menos não embarcou, até aqui, na estúpida proposta da tal “Escola Sem Partido” (leia-se: sem reflexão crítica): “Tive professores marxistas, mas nem por isso deixei de me tornar um liberal convicto”, disse.
Já o “neutro” (no sentido de “apartidário”) ministro da Cultura, Márcio Calero, aficcionado da “cultura” de selfies autoelogiativos, se arvora a “desaparelhar a pasta” e demitir dezenas de comissionados qualificados. Muitas exonerações vingativas aconteceram no mesmo dia em que seu chefe, Michel Temer, entregava diretorias de diversos órgãos como Conab e Susep a indicados por deputados fisiológicos do Centrão. É a velhíssima e carcomida prática política.
O CARRO-CHEFE DA ECONOMIA (e seus inevitáveis atropelamentos)
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles (convém lembrar que ele sempre foi o sonho de consumo de Lula), é o homem dos bancos, do capital financeiro. Gerente bem sucedido da banca privada. Economia, setor que Temer diz priorizar, é muito mais que isso! Sobre tributos, é enganoso: “A meta é diminuir o nível de tributação da sociedade. Dito isso, a prioridade hoje é diminuir a dívida pública. Mas se houver necessidade de um tributo, ele será aplicado”. Depois de quase um ano de polêmica sobre a recriação da CPMF, em uma das primeiras falas disse que pode implantar … a CPMF! Falta a afirmação fundamental sobre uma reforma tributária progressiva, que taxe os grandes ganhos do capital financeiro, as fortunas e heranças, e sobre a superação dos fundamentos movediços de uma economia liberal-periférica como a nossa. Mas sobra autoestima: “Eu, felizmente ou infelizmente, tenho uma história de poucos erros.”
Na linha neoliberal pura e dura, o governo temerário não poupa iniciativas. Destacamos a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016, já aprovada na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) por 33 votos contra 18, que limita o gasto primário (ou seja, os gastos sociais) ao realizado no ano anterior, mais a inflação, pelos próximos 20 anos. Isso representa um retrocesso histórico e elimina os pisos de recursos para saúde e educação, além de significar pesados cortes de gastos sociais e graves perdas de direitos para os servidores públicos. Economistas calculam que os porcentuais do PIB para educação, em uma década, serão reduzidos dos quase 6% atuais para 3%. E os 4% da saúde cairão a 1,5%. Tragédia!
Já os dispêndios com a questionável dívida pública estão, como sempre, fora do limite. Isto significa que qualquer aumento real de arrecadação nos próximos 20 anos será destinado automaticamente para o pagamento da dívida pública. A PEC se encontra no momento sob apreciação da CCJ, mas seu conteúdo básico já foi incluído no projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2017 pela base do governo Temer, na Comissão Mista de Orçamento, restando ainda a votação pelo Plenário do Congresso. A ideia geral da PEC foi incluída no PLP 257/2016 (de autoria do governo Dilma), para ser aplicada também no âmbito dos estados.
A Medida Provisória (MP) 739/2016 cria gratificação para peritos reverem benefícios de auxílio-doença. Isso significa que será dada prioridade para a revisão de benefícios, enquanto a concessão de novos permanecerá reprimida, com os pacientes esperando por meses para a consulta. Desta forma, há uma orientação deliberada para a perda de direitos. A MP se encontra em apreciação por comissão mista do Congresso Nacional.
A MP 727/2016 cria o “Programa de Parcerias de Investimentos PPI”, que visa ampliar as atuais “parcerias público-privadas”, inclusive no âmbito de estados e municípios, nas áreas de infraestrutura, empresas públicas e serviços públicos objeto de concessão, permissão ou autorização, além de bens móveis e imóveis da União.
Desta forma, o povo “paga o pato”, na forma de tarifas de pedágio (cuja arrecadação não tem qualquer transparência), ou pagamento por diversos serviços que poderiam ser gratuitos, além da precarização dos empregos públicos (contratações pela CLT, por exemplo). A MP também está em apreciação por comissão mista do Congresso Nacional.
A PEC 87/2015 foi enviada pelo governo Dilma, propondo a prorrogação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) até 2023, e aumentando de 20% para 30% o percentual que pode ser retirado de áreas sociais como saúde, assistência e previdência. Tal percentual pode ser destinado para onde o governo quiser, inclusive o pagamento da dívida pública. Em sua tramitação na Câmara, a base do governo Temer aprovou a proposta e ainda incluiu nela a DRE e DRM, ou seja, a extensão da DRU para estados e municípios. Agora, a PEC se encontra no Senado.
O PL 4567/2016, de autoria do senador José Serra (PSDB/SP), hoje ministro das Relações Exteriores sob o qual pesa a acusação de ter recebido R$ 23 milhões de empreiteiras, caminha no sentido de aprofundar a privatização da exploração do petróleo no pré-sal. Foi aprovado pela base do governo Temer em comissão especial da Câmara dia 7/7/2016 e se encontra pronto para votação no plenário da Câmara.
As propaladas reformas da Previdência e trabalhista, embora ainda não tenham sido enviadas ao Congresso, por temor dos seus efeitos eleitorais negativos, abrigam indicativos claros de que, ao serem encaminhadas, conterão graves perdas de direitos dos trabalhadores e aposentados. Não será redução de privilégios de “marajás”, mas ataques aos “barnabés”, como de costume na nossa má tradição estatal aristocrática.
EPÍLOGO (do artigo e, se quiser, do governo)
Vários outros “cartões de visita” revelam o caráter do governo Michel Temer, e são um pré-atestado de morte. Um dos mais evidentes foi a retirada das urgências de projetos de lei contra a corrupção, que afetavam aumento patrimonial ilícitos de servidores públicos, caixa dois praticado por partidos políticos, e tornavam indisponíveis bens adquiridos de forma suspeita. A “desculpa” foi a de que essas urgências, que trancavam a pauta, atrapalhavam a apreciação de medidas econômicas…
As relações de Michel Temer com Eduardo Cunha também são objeto de tensão permanente. Muita coisa ainda vai aparecer, sobretudo se o ex-parlamentar fluminense resolver contar o que sabe. Ex-presidentes da Câmara e ex-deputados, correligionários peemedebistas, os dois tiveram intensa relação voltadas para as, digamos assim, “finanças partidárias”. O presidente do grupo Andrade Gutierrez, Otávio Azevedo, esteve em reuniões com o então vice Temer, promovidas por Cunha. Estas reuniões foram ocultadas nas agendas dos políticos. A assessoria de Temer confirma uma, realizada a três meses das eleições de 2014, não colocada na agenda oficial do vice “por razões técnicas” (?!). Esses encontros, estranhamente, também fugiram da memória de Eduardo Cunha. A delação premiada da Odebrecht, em fase conclusiva de aceitação, vai colocar o próprio Temer em apuros se for objeto de séria apuração.
O governo Temer, por fim, representa uma nova (e velhíssima) repactuação das elites, a mesma que deu origem à deteriorada Nova (e velhíssima) República, quando da superação pelo alto da ditadura civil-militar instalada em 1964. O lulismo também aderiu a essa prática de “governabilidade”, tanto que sua coalização de governo incluiu do PT e PCdoB a partidos assumidamente de direita, como PP e PSC, de Maluf, Bolsonaro e Feliciano. Todos esses segmentos estão no governo temerário.
“Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto”, afirma antigo adágio popular. Nada mais atual.
Nesse quadro de tamanha ilegitimidade, em que a gerência do capitalismo brasileiro revela incapacidade de convivência com garantia de direitos das maiorias e democracia plena, cabe clamar pela soberania popular. Só com eleições gerais, sob novas regras, teremos uma governança de origem democrática. Impõe-se também a luta tenaz contra a precarização de qualquer direito, duramente conquistado, e hoje sob risco.
Chico Alencar é professor de História, escritor e deputado federal, vice-líder da bancada do PSOL na Câmara dos Deputados.