Joris Leverink
Durante os quatro meses em que Kobane esteve sitiada pelo ISIS, poucos veículos midiáticos deram atenção à verdadeira luta dos povos do Norte da Síria por democracia real, direitos das mulheres e sustentabilidade ecológica.
Em 26 de janeiro [de 2015], após 134 dias de resistência, as forças de defesa curdas anunciaram ter expulsado com sucesso as tropas do Estado Islâmico (EI, anteriormente conhecido como ISIS) de Kobane. Durante os quatro meses e meio em que a cidade no Norte da Síria esteve sob ataque do ISIS, ela tornou-se símbolo de resistência às aparentemente “invencíveis” forças de inspiração salafista, e um baluarte de liberdade em meio ao caos e à destruição da guerra civil síria.
Desde a libertação de Kobane, as tropas de defesa curdas do YPG e YPJ (Unidades de Defesa Populares e das Mulheres), continuaram a avançar contra o ISIS, e nas últimas semanas conseguiram libertar quase dois terços dos aproximadamente 350 vilarejos que juntos compreendem o cantão de Kobane. A vitória em Kobane não é somente uma retumbante derrota militar para o ISIS, mas talvez o valor simbólico deste evento seja o mais importante. A imagem de invencibilidade do ISIS sofreu um golpe letal, ao passo em que os curdos se mostraram aliados indispensáveis na batalha contra os extremistas da região.
Enquanto a batalha de Kobane recebeu muita atenção da imprensa internacional ao menos as “exóticas” guerrilheiras do YPJ poucos canais cobriram a verdadeira batalha dos curdos. Desde o verão de 2012, quando o Partido Curdo da União Democrática (PYD) declarou a autonomia dos três cantões no Norte da Síria, conhecidos em seu conjunto como rojava, a população local esteve inteiramente envolvida em uma luta revolucionária, almejando democracia horizontal, igualdade de gênero e sustentabilidade ambiental.
A revolução de rojava como se tornou conhecida desde então é abertamente anti-Estado e anticapitalista, e esta talvez seja uma das razões pelas quais tem recebido tão pouca atenção da grande mídia. A despeito de sua ausência das manchetes internacionais, pode-se alegar que a revolução de rojava é, na verdade, um dos mais importantes projetos políticos em curso no mundo hoje.
A revolução por trás das manchetes: autonomia no norte da Síria: O projeto de democracia radical, a criação de zonas autônomas e suas críticas afiadas ao imperialismo e ao capitalismo, não deixaram aos curdos do Norte da Síria muitos amigos.
De cidadãos de segunda categoria a revolucionários de primeira linha
Quando em março de 2011 o povo sírio, inspirado pelos levantes populares no Egito e na Tunísia, tomou as ruas em massa reivindicando a queda do regime de [Bashar al] Assad, poucos poderiam prever que esta revolução pacífica logo resultaria em caos, causando a morte de centenas de milhares de civis e deixando o país em ruínas. Os curdos sírios, residentes em sua maioria das três regiões do Norte, Efrîn, Kobane e Cezîre, tinham tantos motivos quanto os demais e provavelmente mais para exigir a queda do regime.
Por muitos anos, a população curda no país foi tratada como cidadãos de segunda categoria, tendo suas terras mantidas deliberadamente subdesenvolvidas pelo governo central, que tratava rojava como uma colônia interna. Apesar de ricas em petróleo e terras cultiváveis, nenhuma refinaria, e menos de um punhado de fábricas, poderiam ser encontradas na região. Além do mais, devido ao banimento institucional da língua curda, as escolas provinham educação somente em árabe, e para educação superior, os estudantes eram forçados a se deslocar a centros urbanos como Alepo ou Damasco.
Em 2004, curdos de todo o país se rebelaram após um conflito entre torcidas de futebol curdas e árabes sair de controle, durante uma partida na cidade de Qamishli, capital regional do cantão de Cezîre. A violência desproporcional usada pelas forças de segurança para deter exclusivamente os torcedores curdos deflagrou uma semana de levantes que logo se alastraram das cidades e vilarejos do Norte para a capital e outras cidades predominantemente árabes. Após vários dias de protestos, ao menos trinta pessoas foram mortas. No entanto, o mais importante para o futuro de rojava foi perceber que os curdos sírios não poderiam contar com seus vizinhos árabes em sua oposição ao regime.
Os eventos de 2004 foram uma das razões pelas quais os curdos hesitaram em acompanhar o levante contra Assad em 2011. Evidente, manifestações pacíficas aconteceram nas regiões curdas tanto quanto em muitas outras localidades, porém após o levante popular transformar-se em uma guerra civil cruel e violenta, as milícias e partidos políticos curdos hesitaram em se alinhar ao Exército de Libertação Sírio (FSA, na sigla em inglês) e ao seu braço político, o Conselho Nacional Sírio (SNC). Falhando em obter, por parte das forças de oposição, a garantia de que os curdos não sofreriam marginalização e exclusão em um futuro pós-Assad, o governo controlado pelo SNC levou os partidos curdos a escolher uma assim chamada “Terceira Via”, na qual não se alinharam nem ao regime, nem aos rebeldes.
A revolução por completo
Esta abordagem pela Terceira Via provou seu sucesso quando, em 19 de julho de 2012, partidos curdos assumiram o controle de diversas instituições governamentais na região e as forças de Assad começaram a minguar, deixando um vácuo de poder rapidamente ocupado pelo PYD. Um novo organismo, o Movimento pela Sociedade Democrática (conhecido por seu acrônimo curdo TEV-DEM) foi organizado para dirigir e facilitar a implementação das novas estruturas governamentais da democracia direta. O TEV-DEM estabeleceu a organização da sociedade em diferentes grupos de trabalho, comitês e assembleias populares, cada um focado em um campo específico, como questões da mulher, economia, meio ambiente, defesa, sociedade civil e educação, entre outros.
O TEV-DEM pode ser apontado como uma das principais razões pela qual a revolução em Rojava não sucumbiu aos destrutivos conflitos internos que assombraram tantos outros grupos oposicionistas que surgiram no contexto da Primavera Árabe. O TEV-DEM não operou como catalisador da revolução de Rojava, mas antes, canalizou o espírito revolucionário já existente, direcionando a energia da população para a construção de uma nova sociedade, ao invés de para a destruição da antiga. Os quatro princípios do TEV-DEM servem para explicar seu apelo entre a população oprimida e marginalizada de rojava. Eles são: a revolução deve acontecer de baixo para cima; deve ser uma revolução social, cultural, educacional, assim como uma revolução política; deve ser direcionada contra o Estado, o poder e a autoridade, e por fim, deve ser o povo quem tenha a palavra final nos processos decisórios.
Enquanto o resto da Síria se deparava com o caos, o povo em Rojava se reunia em assembleias de bairro e comitês locais, se organizando para o benefício da sociedade. Enquanto o ISIS entrava na guerra civil síria, na primeira metade de 2013, as mulheres em Rojava formavam a espinha dorsal da revolução, representando-se em todos os distintos níveis de organização, e tomando parte ativa na moldagem de um movimento contra o patriarcado e anticapitalista. E enquanto os olhares do mundo estavam voltados à carnificina e destruição da guerra civil síria, e suas reverberações no Iraque, os três cantões de rojava silenciosamente declaravam sua autonomia do governo central.
Autonomia não dependência
Um detalhe importante, comumente ignorado é que as pessoas em Rojava não se apartaram da Síria; elas declararam sua autonomia e não sua independência. O artigo 12 da “Carta de Contrato Social” a constituição de Rojava, anunciada e imple PYD e o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) nunca foi segredo. O PYD foi fundado em 2003 como a organização irmã do clandestino PKK na Síria, e milhares de curdos sírios lutaram nas fileiras do PKK na Turquia. Ambas as organizações enxergam Abdullah Öcalan como seu líder espiritual, e seu conceito de Confederalismo Democrático é a ideologia guia tanto para a revolução de rojava quanto para os numerosos projetos locais nas regiões dominadas pelos curdos no Sudoeste da Turquia.
A reorientação ideológica de Öcalan, desde uma perspectiva marxista-leninista na qual um Estado socialista e independente era o objetivo último para os curdos, para a crença política que enxerga nas comunidades autônomas, a despeito de suas origens étnicas e/ou religiosas, como a forma ideal de organização social e política, foi fortemente influenciada pela obra do pensador anarquista estado-unidense Murray Bookchin. Em seus estudos, Bookchin buscou as origens da hierarquia social e concluiu que a dominação humana sobre a natureza tem raízes na dominação do homem sobre o homem. De modo a criar uma sociedade que não somente venha a abolir as relações hierárquicas entre humanos, mas também esteja em harmonia com o meio ambiente, Bookchin propôs a ideia de “municipalismo libertário”.
As ideias de Bookchin sobre as assembleias populares, democracia direta e uma confederação de comunidades autônomas locais, estão correntemente sendo implementadas ao longo dos três cantões que, juntos, formam rojava. Conselhos populares, ou “Casas do Povo”, constituem o coração do sistema político. O primeiro nível de organização são as comunas locais, cada uma formada de 30-150 famílias; no nível seguinte estão os conselhos das vilas e bairros, consistindo de 7-30 comunas cada; este é sucedido por conselhos de área e, finalmente, está o MGRK, o Conselho Popular do Curdistão Oeste. As deliberações são conduzidas de um nível ao próximo por dois delegados, um homem e uma mulher, eleitos com este propósito. Ademais, todos os conselhos devem respeitas a cota de gênero de 40%.
Os curdos na síria necessitam de solidariedade não caridade
Infelizmente, mas não sem surpresa, a revolução de rojava foi completamente ignorada pela imprensa internacional e círculos políticos correlatos. O projeto de democracia radical, a criação de zonas autônomas e suas críticas afiadas ao imperialismo e ao capitalismo, não deixaram o povo de rojava muitos amigos. Mesmo Masoud Barzani, líder do seu vizinho, Curdistão iraquiano, olha para rojava com suspeita, compreendendo que uma revolução similar no Norte do Iraque significaria automaticamente ao fim de seu governo. Mais preocupantes, no entanto, são as disposições turcas contra os experimentos sociais dos curdos sírios.
“Para nós, o PYD é o mesmo que o PKK. É uma organização terrorista”, declarou o presidente turco Erdogan publicamente, em resposta aos planos para armar o PYD no auge da batalha de Kobane. Durante o conflito, a Turquia manteve suas fronteiras com a cidade síria hermeticamente fechadas, não permitindo que qualquer ajuda, médica ou militar, alcançasse os defensores de Kobane. A única exceção foi permitir que um pequeno batalhão de 150 soldados Peshmerga [em curdo, “aqueles que enfrentam a morte”] do Curdistão iraquiano cruzasse a fronteira para lutar ao lado das YPG/YPJ contra o ISIS.
A Turquia teme que o sucesso da revolução em Rojava possa inspirar sua população curda doméstica a perseguir um objetivo semelhante. Na realidade, tanto grupos da sociedade civil, como o Congresso Democrático dos Povos (DTK), quanto partidos políticos como o Partido Democrático dos Povos (HDP) já vêm implementando e apoiando estruturas autônomas de governança local há anos. Autonomia para os curdos da Turquia significaria para Ankara a perda de controle diário e direto de mais de um quinto de seu território, algo inaceitável para o atual governo.
Por essas e outras razões, o governo turco tem assim recusado qualquer tipo de ajuda à população de rojava em geral, e à cidade de Kobane, em particular. De forma que, para a reconstrução de Kobane ser possível, e para que o povo em Rojava possa continuar a resistir à sempre iminente ameaça das tropas fundamentalistas em sua porta, é absolutamente crucial que a Turquia abra suas fronteiras com as regiões sírias sob controle curdo. Se o comportamento prévio da Turquia for de algum modo indicativo de suas ações futuras, então há pouca esperança de que isso aconteça em breve.
No entanto, ao demandar a pressão de outros governos para forçar a Turquia a abrir suas fronteiras, o povo de Kobane deve ser cauteloso a respeito da ajuda de quem aceitar para a reconstrução da cidade. Ajuda incondicional, sem qualquer retorno exigido, é fenômeno raro. De modo a preservar sua independência radical, e os caros valores da revolução pela qual têm lutado, é crucial que nem organizações supranacionais, como a ONU, o FMI [Fundo Monetário Internacional] e o Banco Mundial, nem corporações multinacionais, de olho nos recursos naturais da região, devem ter acesso permitido pelo povo de rojava. A verdadeira batalha dos curdos sírios é deles e deles somente. Nos próximos meses e anos, eles necessitarão de toda a solidariedade com que possam contar, mas seu histórico impressionante prova que a última coisa de que precisam é apropriação disfarçada de caridade pelos poderosos do Ocidente.
Joris Leverink é jornalista freelancer, residente em Istambul. É mestre em Economia Política e editor da revista ROAR. Pode ser seguido no Twitter em @Le_Frique. (Tradução de Carolina Peters).