Por Bia Barbosa
Na biologia, a simbiose pode ser definida como uma interação a longo prazo entre organismos da mesma espécie – ou de espécies diferentes – considerada benéfica para todos os envolvidos. A simbiose pode ser obrigatória ou facultativa. Mas, no caso em questão, ela está sendo estratégica. Quando o candidato Jair Messias Bolsonaro foi eleito em 2018, tendo nos evangélicos uma das fatias prioritárias de seu eleitorado, ficou claro que a aliança com a Igreja Universal do Reino de Deus e com a Rede Record seria de grande serventia ao longo de todo o mandato presidencial. A emissora do Bispo Edir Macedo, ao lado do SBT de Silvio Santos, já tinha dado provas, durante a campanha, da disposição em apoiar um governo ultraliberal na economia e ultraconservador nos costumes. Empossado, Bolsonaro investiu, literalmente, na continuidade da parceria.
Com Fábio Wajngarten, sócio majoritário da FW Comunicação, que sempre prestou serviço para empresas de mídia, à frente da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República, a segunda e a terceira maiores redes de TV passaram a ganhar muito mais com a publicidade estatal do que a líder de audiência e adversária prioritária do presidente, a Globo. Em relatório publicado em 2019, o Tribunal de Contas da União (TCU) indicou a consolidação de uma tendência que começou na gestão Michel Temer, que também enxergou na Globo um desafeto. De 26,6% do bolo publicitário recebido em 2017, a Record passou para 42,6% em 2019. No mesmo período, a do SBT cresceu de 24,8% para 41% (2019). A Globo caiu de 48,5% para 16,3%.
Enquanto em 2018, a emissora carioca recebeu R$ 19,1 milhões em verbas de publicidade, Record e SBT receberam juntas R$ 20,4 milhões. Já em 2019, com Bolsonaro no Planalto, o cenário se inverteu: juntas, Record e SBT receberam R$ 26,8 milhões do governo, mais do que o triplo dos R$ 7,4 milhões destinados à TV Globo1 . Cerca de 72% do total dos gastos públicos federais com publicidade foram para a campanha em prol da Reforma da Previdência.
Audiência desproporcional às verbas
O problema é que a audiência dessas emissoras não cresceu nessa proporção, jogando por terra a ideia de que os anúncios públicos devem ser distribuídos de acordo com o percentual da população que vão alcançar. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo em janeiro2 , o procurador Lucas Rocha Furtado, do Ministério Público de Contas, declarou que a Secom não tem seguido critérios de audiência e pediu a investigação de Wajngarten. O relator é o ministro Vital do Rêgo e o processo ainda não tem data para ser julgado pela corte.
Em junho, porém, Wajgarten deixou de ser ministro da Secom e virou secretário- -executivo do Ministério das Comunicações, recriado por Bolsonaro via Medida Provisória aprovada em setembro pelo Congresso. O novo chefe de Wajngarten, desde então, passou a ser o genro de Silvio Santos, até então deputado federal pelo PSD do Rio Grande do Norte, Fábio Faria. Os laços familiares de Faria foram apresentados pelo presidente como credenciais positivas do novo ministro, que também vem de família de radiodifusores no Nordeste, controladora da Rádio Agreste Ltda. Com a recriação do MiniCom, além de agradar o chamado Centrão com a destinação de mais um cargo no alto escalão, Bolsonaro alimentou um pouco mais a simbiose com o SBT.
Programação alinhada
Agradecimento pelo apoio recebido em campanha ou incentivo para que a parceria continue ao longo do mandato, a realidade é que Record e SBT não têm precisado de grandes ajustes em suas programações para seguirem de mãos dadas com o bolsonarismo. E, talvez, por isso a relação esteja sendo tão agradável para os dois lados.
Com duas horas de conteúdo religioso por dia, uma novela chamada Jesus exibida em horário nobre (21h30), desenhos bíblicos para as crianças nas manhãs de domingo e mais de cinco horas de programação diária ocupada pelos chamados programas policialescos (Balanço Geral e Cidade Alerta), a Record é o canal que mais abraça os seguidores de Bolsonaro. Afinal, não foi apenas a bancada da bala que cresceu em Brasília embalada pelos discursos autoritários de Marcelo Rezende – que chegou a defender o assassinato de um suspeito ao vivo pela PM de São Paulo – e Luiz Bacci. A ideologia fascistoide do presidente encontrou um terreno muito fértil num país que, há pelo menos 20 anos, permite que casos de assassinato, estupro, sequestro, linchamentos e violência de toda sorte, narrados por apresentadores pregando a tortura e o justiçamento, acompanhem os brasileiros da manhã à noite em suas salas de TV.
Em fevereiro deste ano, o apresentador Luiz Bacci não viu problemas em contar ao vivo para uma mãe, durante uma entrevista, que sua filha, até então considerada desaparecida, tinha sido encontrada morta, vítima de feminicídio. O desespero da mãe, que chegou a desmaiar, foi transmitido sem pudores pela Record, que só interrompeu a matéria quando a mãe da vítima acordou do desmaio e começou a gritar. O vídeo, que seguia nas redes do canal, só foi excluído após a intensa repercussão negativa. Em 2015, quando o Intervozes lançou a campanha “Mídia sem Violações de Direitos”3 , com o objetivo de receber denúncias de abusos das emissoras de TV diante dos direitos humanos, o Cidade Alerta já era o campeão de violações.
O contágio da fé
No contexto de pandemia, os programas religiosos foram aliados preferenciais de Bolsonaro no discurso contra o isolamento social. Grandes interessadas em seguirem abertas, as igrejas se somaram ao Planalto na propagação de desinformação para minimizar os riscos da Covid-19 e da sua transmissão. Em abril, o programa Inteligência e Fé, comandado por Renato Cardoso, genro de Edir Macedo, exibiu entrevistas com pastores residentes em Nova York e na Flórida reforçando a igreja como serviço essencial. Atacando o que seria uma atitude de políticos de esquerda contra as igrejas, o bispo afirmou “não estou puxando pra direita, mas em geral a esquerda, políticos avessos ao evangelho, especialmente à IURD, estão aproveitando esse momento para alimentar preconceito contra a igreja”4 .
Um apresentador da Record chegou a afirmar que, se dependesse de “certos governantes”, os atingidos pela crise econômica provocada pela pandemia estariam “perdidos”, mas sobreviveriam “graças à Universal e às pessoas que estão doando pelas contas da Universal e com cestas nas igrejas”. Os programas também enfatizaram, por meio de testemunhos, a defesa da importância da igreja para tirar as pessoas “da situação de medo e depressão” e para ajudar as famílias a se manterem estruturadas em tempos de confinamento. Foi em entrevista ao Programa do Ratinho, este no SBT, no dia 20 de março, que Bolsonaro defendeu a abertura das igrejas porque essas seriam “o último refúgio das pessoas”.
Religião ficcional
A pandemia levou a Record a reprisar entre abril e setembro a novela Apocalipse, que foi ao ar originalmente no final de 2017. Disputando audiência com o Jornal Nacional, a obra foi a quarta de temática bíblica da emissora e a primeira a se passar em tempos atuais, com a trama se desenvolvendo entre Brasil, Israel, Itália e Estados Unidos e incluindo uma Terceira Guerra Mundial, meteoros, um tsunami que atinge o Rio de Janeiro e personagens arrebatados no primeiro evento do Apocalipse, “quando Deus retira os verdadeiramente cristãos da Terra”. O empresário vilão, que usa discursos de Hitler e possui um exército de robôs, é possuído por satanás e vira o anticristo, passando a perseguir cristãos, religiões e Deus, e acusá-los de todo o mal da humanidade. Ele desenvolve uma tatuagem tecnológica com o número 666, que é “marca do governo mundial”. O grupo Santos da Resistência, liderado pelo casal herói da novela, luta contra “a besta”. Depois de todas as tragédias anunciadas na Bíblia, Jesus desce pela segunda vez a Terra e derrota o satanás.
No jornalismo, o apoio ao governo é materializado numa cobertura com bastante espaço à agenda presidencial, muitas entrevistas com ministros e uma abordagem sobre a pandemia próxima à linha do Planalto: a economia é tão importante quanto a vida das pessoas.
Em abril, quando Bolsonaro começou os passeios dominicais no Distrito Federal, desafiando as orientações de isolamento social, a Record afirmou que o presidente vai às ruas “por estar preocupado com os impactos da pandemia”5 . No telejornal noturno diário e no Domingo Espetacular, foram incontáveis as reportagens ouvindo trabalhadores informais e microempresários que defenderam a continuidade das atividades, assim como matérias com relatos de pacientes que supostamente se curaram após o uso da cloroquina.
No último dia 16 de setembro, ao noticiar a posse do general Eduardo Pazuello como ministro efetivo da Saúde, Bolsonaro voltou a defender a cloroquina no Jornal da Record. Em vez de problematizar os riscos do medicamento, o canal preferiu noticiar, na sequência, que “o Brasil é o país com o maior número de pacientes recuperados da Covid-19”, numa taxa de 10 pontos percentuais maior do que a média mundial. “Foi um milagre e Deus me deu a oportunidade de gerar outra vida”, disse uma grávida recuperada6 . No dia 17, a manchete foi a liberação de 525 milhões de reais pelo ministro da Educação para a retomada das aulas nas escolas.
Numa semana em que o mundo se alarmou com as queimadas no Pantanal, um Bolsonaro sorridente e abraçado por multidões foi mostrado no telejornal em viagem à região. Valeu o discurso do governo, de que as queimadas estão ocorrendo porque há tempos não chove por ali, que o governo já liberou R$ 10 milhões para o combate aos incêndios e que “o Brasil está de parabéns da maneira como preserva o meio ambiente”, disse o presidente, sem qualquer contraponto7 .
O destaque da semana no jornalismo do canal, entretanto, foi a série especial de reportagens contra a Globo, intitulada “O lado oculto do império”8 , mostrando casos de corrupção em que a empresa e família Marinho estariam envolvidas. Além de atacar a concorrência, a série vem sendo usada pelo presidente e aliados para reforçar as críticas de Bolsonaro à Globo e disseminar uma ideia de que, ao atacar a emissora carioca, o presidente também está, indiretamente, combatendo a corrupção. Nas redes, as milícias digitais e o presidente em sua conta pessoal passaram a usar a #RachadinhadaGlobo para compartilhar as matérias da Record.
Obediência ao “patrão”
A simbiose com o SBT não fica atrás. Silvio Santos esteve no palanque de Bolsonaro no desfile de 7 de setembro do ano passado. Depois os filhos do presidente participaram de um quadro de perguntas e respostas conduzido pelo apresentador na sua emissora. Em fevereiro deste ano, Silvio Santos anunciou que traria de volta ao ar o Semana do Presidente, boletim que circulava na programação do SBT durante a ditadura militar. Quem não se lembra? A iniciativa somente não se concretizou porque as críticas foram significativas.
Em abril, a imprensa noticiou um comunicado de Silvio Santos aos funcionários em que disse: “Minha concessão de televisão pertence ao governo federal e eu jamais me colocaria contra qualquer decisão do meu ‘patrão’ que é dono da minha concessão. Nunca acreditei que um empregado ficasse contra o dono, ou ele aceita a opinião do chefe, ou então arranja outro emprego”. A mensagem interna tratava da cobertura sobre o coronavírus e orientava as equipes de jornalismo a se afastarem do viés político, focando no factual sobre a pandemia. Tudo isso em meio à crise política que estava instalada na época entre o Planalto e os governadores e prefeitos.
Pouco depois, em 23 de maio, pela primeira vez desde 2005, o telejornal noturno SBT Brasil não foi ao ar. Na véspera, o veículo tinha repercutido a divulgação de trechos da turbulenta reunião ministerial de abril, liberados pelo STF do inquérito sobre suposta interferência na Polícia Federal, num “tom” que desagradou o governo e também Silvio Santos. No domingo 24, o SBT levou ao ar outro trecho da fala de Bolsonaro na reunião. O clima na redação ficou péssimo.
Disputa em jogo
A última cartada do presidente, depois de dar um ministério de presente para o genro de Silvio, foi editar a Medida Provisória 984, que modifica a Lei Pelé e dá aos clubes de futebol o direito de comercializar a transmissão dos jogos de que são mandantes. A Globo alegou quebra de exclusividade e rompeu contrato com a Federação de Futebol do Rio de Janeiro em torno do Campeonato Carioca. O SBT transmitiu a final em negociação direta com o Flamengo, vendendo para a Havan, de Luciano Hang, apoiador de Bolsonaro, uma das cotas de patrocínio do jogo. Como informou o El País na época, parlamentares aliados ao governo celebraram “a quebra do monopólio da Globo” como uma vitória do presidente. O Flamengo já vinha reforçando o discurso de Bolsonaro de volta do futebol no Rio, contra as medidas de isolamento. Os clubes estão divididos em relação à MP, que ainda não foi apreciada pelo Congresso.
Em setembro, o SBT conseguiu comprar os direitos de transmissão dos jogos da Libertadores da América, antes adquiridos pela Globo – que rompeu contrato com a Conmebol por questões financeiras, depois de tentar sem sucesso renegociar o valor dos direitos. Para exibir dois jogos do torneio por semana, o SBT pagou R$ 200 milhões à Conmebol.
O primeiro jogo, transmitido em 16 de setembro, teve propaganda do governo federal no intervalo e o narrador Téo José citando a MP do Mandante. Outros patrocinadores teriam sido levados à emissora pelas mãos de Wajngarten.
Na mesma semana, o SBT anunciou que não renovará o contrato com Rachel Sheherazade, apresentadora do telejornal noturno da emissora, que depois de diversos discursos autoritários e preconceituosos na TV, virou crítica do bolsonarismo. Sob o comando da jornalista, o SBT Brasil não chega a fazer uma cobertura crítica do governo federal, mas está longe do total chapabranquismo da Record. O cenário, entretanto, pode mudar em breve. Enquanto isso o SBT seguirá dando ao povo brasileiro uma das coisas que ele mais gosta: futebol.
Bia Barbisa é jornalista, mestra em políticas públicas e especialista em regulação de mídia.
1 Dados publicados pela Revista Piauí em fevereiro de 2020. Disponível em https://piaui.folha.uol. com.br/conta-da-publicidade-oficial/
2 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/ poder/2020/01/ministerio-publico-de-contaspede-que-tribunal-investigue-atos-de-chefe-dasecom.shtml
3 https://www.midiasemviolacoes.com.br/
4 https://www.cartacapital.com.br/blogs/ programas-religiosos-defendem-templos-abertose-fe-contra-coronavirus/
5 www.cartacapital.com.br/blogs/como-anda-arelacao-da-grande-midia-com-jair-bolsonaro/