O dia 8 de janeiro de 2023 entra na história brasileira como um marco e ao mesmo tempo uma data simbólica de uma etapa da vida do povo brasileiro na qual se tenta um golpe contra o povo, contra o Estado Democrático de Direito, mas, ao mesmo tempo, fixa novos rumos e reforça os princípios democráticos na exata medida da alta repulsa gerada pelos acontecimentos desse dia.
Impossível não passar diante dos olhos, em instantâneos, as imagens dos prédios que sediam os Poderes da República, localizados na Praça dos Três Poderes, absolutamente destroçados por atos bárbaros, selvagens e criminosos.
É importante que essas imagens do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF) vandalizados permaneçam vivas nas nossas memórias, para que tais atos nunca mais se repitam.
Nos primeiros momentos, as cenas são assustadoras, sobretudo porque não se vê nenhuma reação do Estado, que deveria se fazer presente por meio das forças de segurança, nos termos do artigo 144 da Constituição Federal (CF), para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Fomos tomados pela incredulidade diante da avassaladora depredação de espaços públicos da maior significação para a República e a concomitante inação. O objetivo foi criar um ambiente de caos, para que se desse espaço para outras intervenções, não constitucionais.
As autoridades de segurança estavam cientes, pois foi previamente anunciado que atos violentos seriam praticados contra os poderes instituídos, porém como salientou o ministro do STF Alexandre de Morais, no processo em curso, “a omissão e conivência de diversas autoridades da área de segurança e inteligência ficaram demonstradas” – e nada justifica a omissão e conivência de tais autoridades.
Algumas poucas horas se passaram e a primeira resposta institucional veio contundente e na medida necessária. O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, decretou a intervenção federal na Segurança Pública do Distrito Federal, tratando-se de instituto constitucional de exceção e de caráter temporário, pois apenas em sete situações específicas e predeterminadas, estabelecidas nos sete incisos do artigo 34 da CF, é possível sua utilização, por decisão do mais alto mandatário do país, e sujeita à deliberação posterior pelo Poder Legislativo. A intervenção limitou-se à Segurança Pública, com termo final fixado para o dia 31 de janeiro. Seu escopo era:
“Artigo 1º, § 2º… pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado no Distrito Federal, marcada por atos de violência e invasão de prédios públicos e pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública”.
Jamais vivenciamos fatos tão violentos na história brasileira, em que uma parcela da população é tomada por arroubos antidemocráticos a ponto de invadir os espaços símbolos da democracia. Tratou-se de um fato verdadeiramente sem precedentes na história brasileira.
Da mesma forma que presenciamos os fatos em tempo real, em todos os cantos do Brasil, por todas as formas de comunicação, também vimos a reação institucional.
Mais relevante do que a imagem de terra arrasada e de caos é a imagem da descida da rampa do Planalto, protagonizada pelo do presidente Lula e os presidentes das duas casas do Congresso e do Supremo, além de outros ministros do STF e parlamentares, junto com os governadores de todas as unidades federativas, para reafirmar os valores éticos da nossa democracia e repudiar o ataque sofrido pelos poderes republicanos.
O repúdio chegou de todos os lados, de todos os segmentos sociais e também da comunidade internacional, quase que instantaneamente.
Apenas como exemplo destaco, a nota de dez ex-presidentes do STF que registraram imediatamente a indignação veemente em relação à “tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, de golpe contra esse Estado mesmo, além de terrorismo e depredação do patrimônio físico, histórico, artístico e cultural assim da Nação brasileira como da própria humanidade. Com esse mesmo firme propósito, externamos o nosso apoio às medidas investigativas, cautelares e de prisão em flagrante até agora adotadas pelos três respeitáveis Poderes da União, no sentido de chamar à devida responsabilidade civil, penal, política e administrativa todos quantos se atreveram a conceber, fomentar, financiar e, por ação ou omissão, realizar tão repulsivo e odioso atentado às instituições democráticas” (grifo meu).
O 8 de janeiro é o limite da barbárie, que começou a ser construída antes, bem antes. Não se trata de episódio único, isolado, mas parte do que já vinha sendo preparado, tendo a criminalização da política como ferramenta. Dessa fase, podemos apontar o golpe (chamado por alguns de impeachment) da presidenta Dilma Roussef, em 2016, como marco inicial. Foi o instrumento que usaram para estancar um projeto que estava em curso desde 2003.
Logo após o golpe contra Dilma, as razões ficam mais claras e para isso basta ver o que fizeram com as destinações oriundas da exploração do pré-sal, o congelamento do orçamento, as propostas na área da educação, a base de Alcântara, o ataque à Previdência Social para privilegiar a previdência privada etc.
A eleição de Bolsonaro em 2018 só radicaliza as ações antidemocráticas que passam a se acumular progressivamente e levam a um autoritarismo crescente.
Lembremos que o Brasil pós ditadura civil militar (1964-1985), reconstruiu-se sobre a base de um Estado Democrático de Direito fundado no princípio da soberania popular.
A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa, pluralista e solidária na qual o poder emana do povo e deve ser exercido em proveito do povo.
Pluralista porque deve respeitar a pluralidade de ideias, culturas e etnias e pressupõe o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes, e a possibilidade de convivência entre formas de organização e interesses diversos na sociedade, com reconhecimento de direitos individuais, políticos e sociais que busquem a garantia de condições econômicas que favoreçam seu pleno exercício, superando desigualdades sociais e regionais. Tudo escrito pelos constituintes de 1988, dentre os fundamentos da República, seus objetivos e princípios (artigos 1º, 3º e 4º da CF).
O objetivo ético do Brasil é, em última análise, a realização do princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana; dos direitos humanos.
É obrigatório reconhecer que os governos progressistas, que se iniciaram em 2003, foram os que tiveram ações que mais se aproximam desse projeto de país, quando, por exemplo, retiram milhões de brasileiros da chamada linha da miséria e fome.
E todos os atos que culminaram com os atos terroristas de 8 de janeiro de 2023 são, em verdade, contra esse projeto, contra o conteúdo do nosso Estado Democrático de Direito.
Após o golpe contra Dilma, o grande marco foi a prisão do presidente Lula e a vedação de sua candidatura nas eleições de 2018, como forma de fazer valer o projeto de horror e barbárie, pois baseado na supressão de direitos. Usaram como pano de fundo uma narrativa baseada no lavajatismo que, por sua vez, trazia consigo o autoritarismo e o próprio bolsonarismo, que levou o país ao fundo do poço, à selvageria e ao limiar do rompimento democrático.
As democracias precisam ser cuidadas. Não se trata de exclusividade brasileira, como pode se constatar pelo relatório de 2022, do Instituto V-Dem, da Universidade de Gotemburgo, Suécia, que se dedica a medir a democracia. Entre tantos dados, mostra que: há quase paridade entre países autoritários e democráticos; no período de cerca de uma década, 35 países deixaram de ser democráticos; a grande maioria das populações – sete em cada dez indivíduos – está sob as asas de regimes não considerados plenamente democráticos1.
Precisamos cuidar da democracia brasileira
Uma resposta à altura do que ocorreu está sendo dada no campo jurídico penal, com averiguação e processamento dos que incidiram em tantos delitos, especialmente nos crimes previstos na Lei nº 14.197/21, que revogou a Lei de Segurança Nacional, e trata de delitos que atentam contra o Estado Democrático de Direito. Temos, ainda, as ações civis de reparação que estão sendo propostas pela Advocacia Geral da União (AGU).
A resposta no campo jurídico é essencial, mas não pode ser exclusiva.
O campo da política necessita de maior atenção e dedicação.
O dia 8 foi o marco estertor do golpe que se iniciou com o golpe contra uma mulher, a presidenta da República, Dilma Roussef.
O que importa agora, fechado esse ciclo, é concretizar o projeto de Brasil que está na Constituição.
E uma linda imagem que fica para mim foi a que vi quando estive pela primeira vez no Palácio do Planalto, após a tentativa de golpe, no dia 13 de fevereiro. O vidro de uma das janelas ainda estava estilhaçado, havia janelas com tapumes de madeira, um quadro esfaqueado, mas o que mais de chamou a atenção foi que havia um mar de catadores, de todos os cantos do país que tomaram o saguão e lá estavam para a assinatura de dois decretos assinados por Lula: o primeiro institui o Programa Diogo Sant’ana Pró-Catadoras e Catadores para a Reciclagem Popular (extinto no governo anterior) e o segundo decreto, com foco na atividade de reciclagem.
Essa é a verdadeira democracia que precisa ser construída, aquela que põe os brasileiros no centro do Estado; aquela que não permitirá crianças passando fome e milhões de brasileiros sem poder se alimentar; aquela que não tolerará milhões de desempregados; aquela na qual todos tenham acesso à água, rede de esgoto, energia elétrica, educação, saúde etc.
Fechamos o ciclo, sigamos cuidando da democracia para que outros não se abram; sigamos nessa construção democrática com o povo, pois é ele que a faz!
Kenarik Boujikian Desembargadora aposentada do TJ-SP, cofundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).