Benedito Mariano
A pandemia da Covid-19 representa um dos momentos mais tristes da história da humanidade. Desde a gripe espanhola, que foi responsável pela morte de milhões de pessoas entre 1918 e 1920, o mundo não convivia com uma doença de tamanhas proporções, cujas mortes contabilizadas globalmente já ultrapassam a marca de 2 milhões de pessoas.
No Brasil, um dos epicentros da pandemia, as mortes atingiram mais de 200 mil pessoas. O país, que possui aproximadamente 2,7% da população mundial, já responde por cerca de 10% de todas as mortes pela Covid-19 no mundo. Tais números não são apenas estatísticas. São vidas que se foram, deixando para trás parentes e amigos que mal puderam se despedir, aumentando a angústia e a tristeza desta que é uma das maiores crises sanitárias da história.
Descaso federal
O Brasil convive, ainda, com o completo descaso e inação do governo federal, num momento em que a coordenação política se faria tão importante à superação da pandemia e à redução das mortes. A postura negacionista do presidente Bolsonaro, manifesta-se na pouca ação concreta do Ministério da Saúde para imunizar a população, na divulgação e defesa de terapias ditas “preventivas” e de tratamento precoce, sem que possuam eficácia comprovada, no desincentivo ao cumprimento das medidas necessárias para evitar a propagação do vírus, como o distanciamento social, na falta de articulação e ajuda aos Estados e na completa banalização das mortes, limitando-se a responder a um repórter que “não é coveiro” quando questionado sobre o alto número diário de mortes em abril do ano passado.
Diferente de outros países que já iniciaram a vacinação no final do ano passado, só no início de 2021, a imunização parece estar em vias de se iniciar no Brasil. A Anvisa, pressionada pela comunidade científica e pela opinião pública, aprovou o uso emergencial da vacina CoronaVac e da Oxford AstraZeneca. Após o anúncio da aprovação, o governador de São Paulo, João Dória, antecipou-se ao promover a primeira aplicação da vacina no país, com a vacinação de Mônica Calazans, de 54 anos, negra e enfermeira que trabalha na UTI do hospital Emílio Ribas.
Foi em São Paulo também que a primeira indígena foi vacinada. Vanusa Kaimbé, técnica de enfermagem e assistente social, que vive na aldeia “Kaimbé Filhos da Terra”, em Guarulhos. É inegável que o governador de São Paulo transformou a cena da primeira brasileira vacinada em ato político visando a sonhada candidatura ao Planalto. Porém, também é inegável que, apesar de ter sido eleito na onda bolsonarista, fazendo campanha para o atual presidente sob o slogan “Bolso-Doria”, o governador direitista de São Paulo se apresentou como principal adversário do delírio negacionista de Bolsonaro, delírio este que envergonha o país na comunidade internacional e demonstra desprezo pelas mais de 209 mil vítimas da Covid-19. A maioria dessas vítimas, é importante registrar, é pobre e negra.
Por ironia do destino, o general, Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, foi obrigado pela conjuntura a dizer, em coletiva, que disponibilizará a vacina CoronaVac aos estados, como parte do Plano Nacional de Imunização, a partir de pactuação com o Instituto Butantã para o fornecimento de doses. Vacina esta que o negacionista Bolsonaro ironizou diversas vezes em suas redes sociais.
Outras violências
Além das mortes causadas pela Covid-19, outros tipos de violência aumentaram em todo o território nacional no contexto da pandemia. O isolamento social, medida necessária para inibir a transmissão da doença, trouxe como uma das consequências o aumento da violência doméstica, o que exige a ampliação de programas e projetos de proteção às mulheres como a Patrulha Maria da Penha, para garantir o cumprimento de medidas protetivas, além de outras ações concretas para coibir e diminuir os casos de feminicídio no país.
A ação das polícias também se mostrou um ponto de atenção. No auge da quarentena, quando os crimes relacionados à circulação de pessoas como furto e roubo diminuíram, a letalidade policial aumentou em vários estados. As vítimas da letalidade policial, esta que nunca foi aleatória, são sempre os jovens pobres e negros das nossas periferias.
Assim, como é urgente e necessária a imunização de toda a população contra a Covid-19, também é urgente e necessário termos no país um modelo de polícia democrática, cidadã e antirracista, que tenha como princípio norteador o respeito aos direitos humanos. Infelizmente, a cultura do “capitão do mato” ainda permeia as instituições policiais, o que se reflete nas altas taxas e no padrão da letalidade.
Genocídio negro
O Relatório da Rede de Observatórios da Segurança do Rio de Janeiro, lançado no final de 2020, é uma prova inequívoca do genocídio da população negra que ocorre no nosso país. Os principais dados contidos no Relatório são:
- Na Bahia, 97% dos mortos pela polícia são negros. A população negra no estado é de 76.5%.
- No Rio de Janeiro, 86% dos mortos pela polícia são negros. A população negra no estado é de 51%.
- Em São Paulo, 64% dos mortos pela polícia são negros. A população negra no estado é de 35%.
- No Ceará, 87% dos mortos pela polícia são negros. A população negra no estado é de 67%.
- Em Pernambuco, 93% dos mortos pela polícia são negros. A população negra no estado é de 62%.
É imperativo que tais dados entrem no debate público e norteiem a ação de governantes para que seja possível transformar este cenário. Daqui a dois anos, teremos eleição para os governos dos estados e para Presidência da República. Os partidos do campo democrático e da esquerda têm o dever republicano de apresentar para a sociedade brasileira programas de Segurança Pública que enfrentem o racismo estrutural que marca a formação da sociedade brasileira. É preciso que passem a disputar com os setores conservadores a narrativa da segurança pública, mostrando ser possível a construção de um novo modelo que não seja, apenas, mais efetivo que o atual, mas que não contribua para fortalecer o preconceito e a discriminação históricos existentes no país, pautando-se no respeito à dignidade humana.
Se não tivermos polícias democráticas, cidadãs e antirracistas, o chamado estado democrático de direito continuará não chegando à população pobre e negra das periferias e continuaremos a ver o genocídio da juventude negra.
Pacote punitivo
Uma das mais faladas ações do atual governo na área, o chamado pacote anticrime do então ministro Sergio Moro, limitou-se a apresentar ao Congresso uma proposta de aumento de pena e, no que se refere à segurança pública, apresentou uma das maiores aberrações jurídicas que é a ampliação da excludente de ilicitude. Na prática, tal ampliação daria ‘carta branca” para a letalidade policial. Felizmente, o Congresso Nacional barrou essa iniciativa retrógrada e obscura.
Além de reformas estruturais das polícias, é fundamental incluir os municípios na política de segurança pública, garantindo recursos para programas e projetos de prevenção à violência e ao crime. O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), criado no governo Lula sob a coordenação do ex-ministro Tarso Genro, buscou atuar nesse sentido, e foi o principal programa federal de inclusão dos municípios no setor de segurança pública, garantindo recursos federais para programas e projetos preventivos a centenas de municípios.
Segurança e crise sanitária
A situação da segurança pública no Brasil durante os próximos anos ainda pode sofrer o impacto de outro importante fator. A grave crise sanitária da Covid-19 ampliou o mergulho econômico vivido no Brasil e o atual governo federal não valorizou uma política econômica de desenvolvimento e de inclusão social. Pautada na agenda neoliberal, aprofundou a crise.
O auxílio emergencial no valor de R$ 600, principal medida econômica adotada no contexto da pandemia por beneficiar a população mais excluída do país, só surgiu por iniciativa e esforço do Congresso Nacional, por mais que Jair Bolsonaro buscasse capitalizar politicamente tal ação. Como dificilmente teremos vacinas para todos no primeiro semestre de 2021, e não há mais o auxílio emergencial, a situação econômica de milhões de brasileiros tende a piorar.
Desemprego e desespero
No dia 11 de janeiro a montadora Ford anunciou a saída do Brasil, após mais de 100 anos com instalações no território nacional em São Paulo e na Bahia. São milhares de desempregados diretos e outros milhares indiretos provenientes da rede de produção. O desemprego, somado à crise sanitária, deve aumentar a violência no país, principalmente entre os mais pobres.
Os governos municipais terão o desafio de ampliar e muito os programas de proteção social neste momento de crise nacional. Criação de projetos para a juventude, frentes de trabalho, programas territoriais de prevenção à violência com foco nas mulheres, são algumas das iniciativas importantes para enfrentar a crise sanitária, a violência institucional e a crise econômica.
Entretanto, para que tenhamos condições de disputar com a extrema direita que governa o país, que não teve competência e nem vontade política para enfrentar a pandemia da Covid-19, que se mostrou incapaz de adotar ações efetivas para coibir e reprimir as organizações criminosas, que não valoriza as ações de prevenção dos municípios e que alimenta e incentiva, com postura populista, demagógicas e beligerante, as ações de letalidade das policias; o campo democrático e a esquerda têm o grande desafio de construir uma agenda mínima e uma ampla frente democrática e popular para disputar as eleições, sob pena de continuarmos no obscurantismo, mesmo que seja com uma roupagem nova da direita clássica.