De feiras locais e hortas medicinais a compras públicas de pequenos agricultores e centros municipais de compostagem: a agroecologia coloca a racionalidade ecológica e a luta pela terra na centralidade do debate sobre um outro projeto societário
Nos últimos anos, a agroecologia entrou na agenda pública trazendo reflexões e soluções sobre diferentes questões consideradas centrais no nosso país, como os desafios agrários, alimentares, ambientais, climáticos, sociais, econômicos e sanitários. Desde uma perspectiva mais técnica, podemos definir a agroecologia como uma forma de cultivar, uma prática de produção agrícola baseada nos saberes tradicionais, nas práxis camponesas e dos povos originários que acumularam saberes ao longo de 12 mil anos. Originada anteriormente à consolidação do capitalismo como sistema social, a agroecologia se apresenta também como resistência à lógica capitalista de exploração da natureza, seja na sua dimensão ambiental ou humana. Desta forma, também podemos defini-la do ponto de vista político.
Em sua dimensão política, a luta pela agroecologia é a luta pelo direito à terra, à água, às sementes e demais meios de trabalho; é a luta contra a criminalização dos movimentos sociais populares, contra o racismo, o machismo e as desigualdades sociais; é a luta pelo direito à saúde e à alimentação de qualidade em quantidade suficiente para todas as pessoas; é o reconhecimento dos saberes tradicionais e a busca de uma educação libertadora. A agroecologia coloca a racionalidade ecológica e a luta pela terra na centralidade do debate sobre um outro projeto societário. Como declarado na Carta Política da Jornada de Agroecologia (2019): “costuramos com as mãos dos povos o tecido vivo de nossa biodiversidade que também representa nossa memória, nossas culturas”.
O acesso à alimentação é algo que impacta todos da sociedade, em especial os trabalhadores urbanos. Nesse contexto, o Estado pode tanto atuar para perpetuar as desigualdades sociais existentes, quanto para promover mudanças na estrutura social visando alcançar uma sociedade mais justa, igualitária, ecológica e solidária. Trata-se de um território em disputa, em cuja estrutura se pode penetrar por meio de eleições democráticas e da incidência e pressão popular, havendo, no caso da agricultura, dois modelos conflitantes: o agronegócio e a agricultura familiar e camponesa, sendo o primeiro historicamente favorecido pelo Estado brasileiro.
De uma perspectiva agroecológica, entendemos que as políticas públicas devem ser orientadas a partir da participação social e de forma a enfrentar as desigualdades estruturais de raça, classe, gênero e geração. De acordo com a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), “o enfoque agroecológico é aquele voltado para a construção de um sistema alimentar sustentável e saudável”. E há diversas maneiras de construir esse sistema alimentar de forma a impactar a vida das pessoas nas cidades. Entre diversas possibilidades, o Estado pode atuar na promoção ao acesso à alimentação saudável e adequada à população, em especial à parcela com maior vulnerabilidade econômica; no fomento de circuitos curtos de comercialização; no apoio a empreendimentos cooperativos da agricultura familiar; na realização de compras públicas da produção alimentar local; na potencialização de espaços de participação popular; no fortalecimento das práticas integrativas em saúde, com ênfase no uso das plantas medicinais; na contribuição para a redução e a eliminação do uso de agroquímicos nos espaços urbanos e em sistemas de produção; e no investimento em ações para reciclagem e compostagem de resíduos sólidos.
Em 2019, a ANA mapeou mais de 950 iniciativas que apoiam, direta ou indiretamente, a agroecologia em contexto local. Mais de 700 delas contam com algum tipo de apoio do poder público municipal. Uma das ações mais recorrentes é o fomento de circuitos curtos de comercialização de produtos agroecológicos, havendo mais de 100 iniciativas mapeadas em todo o Brasil nesse sentido. Em Remígio (PB), por exemplo, desde 2006, uma feira agroecológica ocorre todas as sextas-feiras, com cerca de 12 famílias que trabalham com seus próprios produtos e os de vizinhos: o poder público municipal, além de ceder o espaço, é importante parceiro na logística da feira, o que também ocorre no caso da Feira Livre Municipal Ozéias de Araújo, em Couto Magalhães (TO), que funciona há mais de 10 anos:, a prefeitura gerencia o espaço e transporta os produtos e os produtores até o local do evento. Em ambos os exemplos, a experiência de organização política e a iniciativa dos próprios agricultores e agricultoras, seus coletivos e outras organizações do movimento agroecológico são fundamentais, sendo importante ressaltar que a democracia e a participação social são princípios e condições necessárias para o sucesso das ações voltadas para a agroecologia.
Outra iniciativa de grande impacto e recorrente em âmbito municipal é a realização das compras públicas por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Ainda que, sob diferentes pretextos políticos e logísticos, a obrigatoriedade da destinação de no mínimo 30% dos recursos repassados pelo governo federal para a compra direta da agricultura familiar não seja cumprida em muitas cidades, as experiências municipais demonstram que é possível garantir a execução dessa lei. Há casos de legislações municipais que dispõem sobre a obrigatoriedade da inclusão de alimentos orgânicos ou agroecológicos adquiridos diretamente da agricultura familiar na alimentação escolar, como é o caso de São Paulo (SP), Santa Rosa de Lima (SC), Encantado (RS) e Porto Alegre (RS). Em Anchieta (SC), uma lei municipal prevê que a alimentação escolar seja composta de, pelo menos, 45% de alimentos orgânicos. Em São Domingos (SC), 100% dos recursos do PNAE são destinados à compra de alimentos da agricultura familiar, sendo 30% de produtos orgânicos. Em Itati (RS) quase 100% dos recursos do FNDE destinados ao PNAE também são direcionados à compra de alimentos da agricultura familiar. Todos esses são exemplos de apoio à agroecologia gerando recursos para agricultoras e agricultores, garantindo o acesso a uma alimentação de qualidade para a população.
Iniciativas em torno da reciclagem e compostagem de resíduos sólidos também são muito importantes e bons exemplos podem ser encontrados em várias regiões do país. A aprovação da primeira lei de compostagem no Brasil, em Florianópolis (SC), é um marco nesse processo. De autoria do Mandato Agroecológico do Deputado Marquito, do PSOL, a lei municipal 10.501 de 2019 dispõe sobre a obrigatoriedade da reciclagem de resíduos sólidos orgânicos no município de Florianópolis e sua aprovação motivou outros municípios a criarem legislações e políticas específicas sobre a compostagem. O Centro Municipal de Compostagem de Picuí (PB), por exemplo, recebe e tritura os resíduos coletados pelo serviço municipal, promovendo uma redução em 40% da quantidade de lixo que vai ao aterro sanitário, gerando economia ao município e aumentando a vida útil do aterro. Além disso, as e os agricultores recebem gratuitamente o composto, o que minimiza os efeitos da desertificação dos solos e ajuda na melhora da produção.
As experiências voltadas para o fomento da agricultura urbana e periurbana também têm grande potencial na promoção da agroecologia. Além de produzir e fornecer alimentos saudáveis, as hortas comunitárias, escolares e os centros públicos de produção de alimentos favorecem a prática e a organização comunitária, as práticas de educação ambiental, alimentar e nutricional. Belo Horizonte (MG) vem incorporando a agroecologia ao planejamento metropolitano por meio de seu Plano Diretor. Em São Paulo (SP) a Secretaria do Trabalho, implementou uma bolsa de inserção laboral no âmbito do Programa Operação Trabalho que promove o trabalho em hortas urbanas periféricas e também em comunidades indígenas. Há várias outras experiências amparadas por legislação própria, como em Palmas (TO), Natal (RN), Florianópolis (SC), Londrina (PR).
Há também dezenas de iniciativas de fomento às hortas medicinais como forma de apoio às práticas integrativas e complementares do SUS. Em Poço Verde (SE), desde 2019 a Secretaria Municipal de Saúde, em parceria com a Universidade Federal de Sergipe, a Secretaria de Desenvolvimento Social e a Secretaria de Agricultura e Meio Ambiente, desenvolveram o Projeto Farmácia Viva, que envolve a agricultura familiar camponesa no desenvolvimento de hortas com plantas medicinais. Também em São Paulo (SP), o Programa Ambientes Verdes e Saudáveis (PAVS), desenvolvido pela Secretaria Municipal de Saúde, incentiva as hortas em Unidades Básicas de Saúde e fortalece a ação das e dos agentes comunitários de saúde nesse sentido.
Todos esses exemplos revelam diversas possibilidades de fortalecimento e promoção da agroecologia em meios urbanos e em diálogo com diferentes temáticas. Se queremos de fato enfrentar a crise climática e promover uma sociedade mais justa e igualitária, é urgente que multipliquemos e ampliemos essas iniciativas. A implementação de políticas que garantem os direitos sociais e humanos é dever do Estado, mas só a mobilização de movimentos sociais e populares promove a conquista desses direitos e das políticas que os promovem. É fundamental fortalecer os movimentos sociais e os espaços de participação social e potencializar a atuação política da agroecologia a partir de redes. Não podemos deixar o agronegócio predatório vencer.
Por Carla Santos Ribeiro
Cientista social (UFSC) e mestre em Economia pela Universidade Nacional Autônoma do México. Assessora parlamentar no Mandato Agroecológico do Deputado Marquito (PSOL/SC)