Em tempos de tanta aspereza política e dificuldades de garantir a existência com dignidade para as maiorias, este texto vem tratar do fortalecimento da resistência feminista na América Latina no último ciclo histórico, abordando suas principais características e tendências em um contexto político recrudescedor.
Os anos 2000 e as décadas que seguem apontam para um desenho marcante de uma crise da ordem do capital de outra qualidade, conjugando a crise econômica em grau estratosférico da etapa de financeirização do capital com as crises ecológicas, do mundo do trabalho e, o que mais diretamente nos interessa abordar aqui, da reprodução social da vida. A situação de muitos países da região da América Latina é bem semelhante entre si, experienciado estremecimentos do que se convencionou nomear como ciclo dos governos progressistas, como Brasil, Bolívia, Equador, Uruguai, Paraguai, Argentina e Venezuela.
O aparente esgotamento de seus ciclos e o ressurgimento de alternativas radicalmente antissociais em muitos destes países, nos últimos sete anos, exige que se compreenda seus calcanhares de Aquiles, até para que possamos pensar o lugar dos movimentos sociais nas reações e reconstruções capazes de enfraquecer e derrubar as ideias e práticas neoconservadoras de extrema direita que se espalham como erva daninha no continente e ativaram o que há de mais vivo da nossa herança colonial.
Tais governos foram eleitos diante dos nefastos efeitos de destruição social neoliberal dos anos noventa, muitos com forte mobilização popular, porém, para se sustentar por dentro da ordem, apostaram em regimes conciliatórios de classe. Marcados por políticas de redistribuição de renda de baixa intensidade, ainda que de grande dimensão, como o caso brasileiro, muito concentradas na ampliação do consumo, sem tocar nos interesses do grande capital, que continua tendo tais países como paraísos financeiros e de fornecimento de matéria-prima, bens naturais e força de trabalho barata.
Enquanto, em 2008, a crise financeira era fortemente sentida nos Estados Unidos e países da Europa, na América Latina, pela intensificação de sua reprimarização econômica, os impactos ainda não eram sentidos e suas políticas sociais liberais eram possíveis. Mas a crise é sistêmica e vai alcançando a “quarta parte do mundo. Politicamente, o que se observou foi a queda desses governos e o erigir de outros à direita, que aceleraram no tempo e na intensidade medidas e reformas de austeridade e retirada de direitos.
Porém, nos últimos três anos, percebemos que correntes de ar se chocam na conjuntura latino-americana, com as tentativas, sob diferentes modalidades – do assalto popular às ruas pelos chilenos e chilenas às apostas por saídas eleitorais autocentradas e necessariamente conciliatórias, como é o caso do PT de Lula – de se contrapor ao avanço da extrema direita, havendo um importante protagonismo feminino nesses processos.
Esse vento se espalha, ainda que sob os impactos de processos de apassivamento e cooptação derivados das contradições dos ciclos progressistas recentes e que imprimem desafios aos atuais processos auto-organizativos. A reação progressista a este tempo histórico precisa carregar em si a transcendência dos erros e limites da sua história recente.
A pandemia do novo coronavírus, faceta aguda da crise ecológica e humanitária vivenciada hoje, elevou a desigualdade socioeconômica entre homens e mulheres na América Latina que, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), tornou-se ainda mais grave pelo cômputo de mais 118 milhões de latino-americanas em situação de pobreza no ano de 2020 – 23 milhões a mais do que em 2019. Segundo os dados da comissão, também se estima que o desemprego entre mulheres tenha aumentado 22,2% em 2020. Isso sem falar na sobrecarga intensificada de trabalhos domésticos e de cuidado, gratuitos ou ainda mais precariamente remunerados, sob a responsabilidade das mulheres e no aumento da violência doméstica e familiar e do feminicídio. A vida das latino-americanas tornou-se ainda mais difícil.
Neste contexto sociopolítico, o papel dos grupos oprimidos, em especial os atinentes às relações de gênero, raça e sexualidade, é cada vez mais central, sendo a concretização de suas pautas a própria possibilidade de destruição de um sistema que precisa da intensificação de instrumentos de criação de desigualdades entre pessoas e mecanismos institucionais de violência direta para garantir possibilidades de sua acumulação, reprodução e expansão.
As mulheres estão protagonizando processos de resistência em todos os cantos do mundo, o que vem aprofundando o significado político transnacional da luta feminista, voltando a adquirir um caráter radicalizado e de solidariedade internacional. Neste texto destacamos, mais especificamente, as resistências das latino-americanas nesse contexto.
O capitalismo rompeu os vínculos econômicos baseados no patriarcado, mas preservou, utilizou e modificou profundamente as relações de poder e a ideologia patriarcal. Isso significa ter desarticulado a família enquanto unidade de produção, mas a transformado em uma das instituições sociais mais estáveis para a garantia, a um preço bem inferior, do trabalho – muitas vezes não reconhecido enquanto tal – da reprodução da particular e imprescindível mercadoria força de trabalho, sendo crucial para a possibilidade da acumulação capitalista.
Este é um debate muito caro às feministas marxistas construtoras da Teoria Unitária da Reprodução Social. Destaco, entre elas, a Thithi Bhattacharya, Cinzia Arruzza, Paula Varela e, no Brasil, Rhaysa Ruas.
Assim, a ideologia patriarcal que sustenta este novo papel da família no capitalismo precisa ser compreendida como força material, como um conjunto de relações de poder que impactam sobremaneira nos processos de subjetivação, na divisão de papéis sociais e na estrita separação entre o espaço público e o espaço privado, reconhecendo a legitimidade para nele estar aos homens e às mulheres, respectivamente. Portanto, a racionalidade moderna embasa a ocupação política de viés sexista, gerando uma infinidade de obstáculos à presença, participação e permanência da mulher no espaço público e no espaço de poder.
Apesar de todos esses desafios estruturais, foram muitas as conquistas e avanços das mulheres latino-americanas na ocupação dos espaços de poder e representação política, que se expressa em reformas políticas que, em muitos países, colaboraram como uma das alavancas, junto ao protagonismo público das mulheres, para a própria paridade das mulheres na representação parlamentar.
Do mesmo modo, no calor dos acontecimentos enquanto se escrevem tais linhas, podemos perceber a brisa boa que acompanha os novos ventos políticos, como no Chile e na composição ministerial predominantemente feminista do governo de Gabriel Boric, marcando uma transversalização da questão de gênero em todas as pautas e pastas e o fenômeno de votos e repercussão da colombiana ecofeminista e antirracista Francia Márquez, apontando-nos o rumo das transformações em curso.
Mas e o Brasil de Marielle Franco? O país que tem a execução de uma vereadora preta, periférica, socialista, que amava mulheres, sem respostas há 4 anos, ainda tem das mais baixas taxas de representatividade das mulheres no parlamento no continente, na casa dos 15%, ainda que testemunhando o aumento significativo da quantidade de candidaturas femininas, especialmente de mulheres indígenas, negras, travestis e mulheres transsexuais. Apesar dos desafios, há resistências feministas, populares, antirracistas, ecossocialistas, LGBTs a nos apontarem que é, sim, possível mudar. É sobre isso que trataremos a seguir.
A América Latina vai ser toda feminista
No Brasil e na América Latina, o movimento feminista e de mulheres têm cumprido um papel fundamental de pressão e resistência nessa conjuntura, se mostrando das forças sociais mais coerentes e dinâmicas.
Neste curto espaço gostaríamos de destacar a “maré verde” que tem pautado a questão da justiça reprodutiva em todos os países do continente, tendo arrancado importantes conquistas nas pautas da descriminalização e legalização do aborto nos últimos anos. Foram décadas de mobilizações enraizadas territorialmente, como o exemplar caso argentino, que teve em dezembro de 2020 a legalização do aborto até a 14ª semana de gravidez pelo Congresso. Essa conquista foi antecedida pela das uruguaias, quando o país legalizou o aborto para todas as mulheres, permitindo interrupções por até 12 semanas de gravidez.
Quanto ao México, desde 2007 alguns estados avançavam em processos de descriminalização e em setembro de 2021 a Suprema Corte mexicana decidiu que o aborto não seria mais crime nacionalmente, ainda que a luta tenha que continuar avançando para que, de fato, seja legalizado e acompanhado de políticas públicas que garanta sua gratuidade e a qualidade e humanização do atendimento de saúde às pessoas com útero que abortam.
Por fim, na Colômbia, em 21 de fevereiro de 2022, a Suprema Corte do país latino-americano descriminalizou o aborto até a 24ª semana de gestação, uma conquista importante ao movimento feminista colombiano e mundial, ainda que com os mesmos desafios citados quanto ao México.
Para além da “maré verde”, são muitas as massivas mobilizações em torno do tema da violência doméstica e familiar contra as mulheres e contra o feminicídio, resultando no chacoalhar transnacional que o movimento ‘Ni una Menos’ proporcionou. Outro âmbito importante de reivindicações feministas concretizadas, especialmente no caso argentino, foi a determinação da equivalência como tempo de serviço para o cálculo previdenciário de anos de trabalho por filho.
No Brasil que presencia a Marcha das Mulheres Negras, a Marcha das Margaridas e a Marcha das Mulheres Indígenas, foram muitas as resistências também no tema dos direitos reprodutivos e sexuais, assim como no da violência de gênero, mas também nas lutas por terra, território, água, contra o extrativismo predatório, por moradia, creche, trabalho, contra o terrorismo do Estado e contra o punitivismo. Todas lutas protagonizadas por mulheres, negras, indígenas e periféricas e que precisam ser reconhecidas enquanto lutas feministas.
Por fim, desde um breve balanço desse levante continental, é marcante o quanto nas lutas das mulheres na América Latina, ontem e hoje, predomina uma tendência de as pautas e métodos de ação permearem a autodeterminação de seus corpos, mas não desde uma orientação individual e liberal, mas sim relacionadas a questões coletivas, de acesso à saúde e bem viver, fortemente marcadas pela denúncia do racismo institucional que impregna as ações do Estado.