O racismo no Brasil é um sistema de opressão, controle e dominação que resulta também em injustiças nas formas de se relacionar e impactar a natureza, afetando os territórios e pessoas do campo e da cidade
s modelos urbanos industriais e seus modos de viver estão situados no imaginário social como referência e ideal de desenvolvimento, “evolução” e finalidade das sociedades modernas, por muitas razões, associadas à ideia de liberdade. Altamente tecnológicas, as metrópoles e seus valores expansionistas em território e cultura, se sobrepõem às diversidades culturais e aos ecossistemas Brasil adentro e são sobrepostas Brasil afora pela geopolítica mundial e suas desigualdades. Entretanto, a “evolução” tecnológica, os ideais e práticas de liberdade reivindicados pelos centros urbanos estão atravessados por incríveis marcos do patriarcado racista colonial, fundante do país. Basta ver as estatísticas do feminicídio e do transfeminicídio, da violência e do abuso sexual, do extermínio e encarceramento das pessoas negras, da intolerância religiosa, dos Índices de Desenvolvimento Humano, dos déficits de moradia, saúde, saneamento.
Como parte dos problemas ambientais do nosso tempo, os modelos urbanos industriais expansionistas cumprem papel relevante no colapso dos ecossistemas, exemplos disso são a dependência dos combustíveis fósseis, a impermeabilização do solo urbano, o uso predatório dos corpos d’água e o desmatamento de florestas ou do que delas resta nas áreas urbanizadas e urbanizáveis. Some-se a isso as crescentes demandas por água potável, energia e minério, sobre muitos aspectos legitimando a exploração e expropriação da terra e dos territórios rurais camponeses. Aqui, vale perguntar se, apesar das lições sobre meio ambiente nas escolas, nas instituições públicas e nas mídias, existe uma certa “indiferença ambiental” do “cidadão urbano”. Quais as preocupações que as populações urbanas têm em relação à água que cai ou não cai em suas torneiras? À eletricidade que chega ou não chega em suas habitações (para quem vive numa habitação)? Em que medida a luta pela sobrevivência retira de cena a importância socioambiental? Será que a população urbana reflete sobre o aumento da temperatura, as pandemias, as mudanças dos ciclos das chuvas e as relações com a destruição dos ecossistemas?
Por muitas razões, seria injusto e leviano afirmar que todas as pessoas que moram em territórios urbanos são alienadas da importância dos ciclos ecológicos em si ou para garantia de suas próprias vidas, basta ver as lutas dos coletivos e movimentos ambientalistas pela conservação e proteção ambiental e toda a história e agenda dos movimentos populares urbanos pelo direito à cidade. Por outro lado, há uma corrida dos ricos para dominar o que a natureza tem de belo e confortável, por exemplo, nas cidades litorâneas e serranas. Contudo, ao observar os processos de urbanização, impostos por uma lógica de poder especulativo, patrimonialista, privatista e antiambientalista, cuja operacionalização mercadológica tem raízes na herança colonial do latifúndio, dá para ver um processo de “desvínculo” individual e comunitário com os outros entes da natureza.
Fato é que a naturalização com que os poderes públicos, os setores privados e o senso comum lidam com a contaminação e morte dos rios e corpos d’águas urbanizadas na violência do concreto e dos dejetos sobre si e com o desmatamento e a privatização de regiões cuja presença de ecossistemas naturais lhes confere valor de mercado, se estende à naturalização da precarização, expulsão, criminalização e violência contra comunidades que ocupam as áreas de risco, que são vitimadas nas enchentes, deslizamentos e outras tragédias socioambientais que, de vez em quando, inundam os noticiários.
A leitura ambiental sob a ótica do conceito de racismo ambiental é uma escolha por aprofundar os entendimentos e consequências práticas, sobre como o racismo cotidiano, que marca a vida social no Brasil, influencia a realidade do meio ambiente. Tal leitura tem sido um importante exercício de um campo que podemos chamar, de forma “ligeira” e sem pretensão de enquadramento conceitual, de “ambientalismo popular antirracista”. Aqui, o racismo se reflete e/ou repercute nas várias dimensões da vida, entre elas a dimensão ambiental e ecológica, a qual podemos abordar sob diversos aspectos, separados ou em conjunto: físicos, filosóficos, práticos, místicos etc. Se reconhece que a degradação ambiental, suas causas e consequências, estão marcadas pelo racismo, cujo desenraizamento e superação são necessários para se enfrentar as incontáveis injustiças que atravessam as ações destruidoras dos ecossistemas, das condições e da diversidade dos modos de vida.
Demarque-se também a urgência de um ambientalismo que compreenda e atue na radical transformação das injustiças ambientais concretizadas nas desigualdades de poderes de decidir sobre as formas de usos e ocupação dos territórios, usufruto e relações com os ecossistemas e os ciclos ecológicos; e na desproporcionalidade dos custos da degradação socioambiental entre os diferentes grupos sociais, prejudicando em demasia aqueles historicamente vulnerabilizados na história e na democracia brasileiras. Na história racial do Brasil e da América Latina, esses grupos estão muito bem demarcados, são os povos originários e populações negras ou afrodescendentes, e todos os sujeitos sociais pertencentes a esses “eles”, como as mulheres, a população LGBTQIAP+, os grupos geracionais, as pessoas com deficiência, entre outros.
Nisso, um parêntese: considerando o marco da colonização europeia sobre os territórios e povos do Sul Global e suas complexas consequências econômicas, políticas, culturais e sociais nas colônias, poderíamos discutir de forma, talvez, infinita, as injustiças e desigualdades que embasam as incontáveis lutas históricas por transformação e marcaram a formação dos territórios e territorialidades mais ou menos miscigenadas mediante o “marco zero” da exploração e violência sexual colonial, sobretudo, contra as meninas e mulheres originárias, negras africanas, e suas descendentes. Mas, nos limites desse texto, é suficiente ter em conta que o racismo no Brasil é um sistema de opressão, controle e dominação dos brancos (estejam eles, cientes ou não) que hegemonizam o poder econômico, político, cultural, religioso, militar e jurídico sobre os outros grupos racializados e marcam de forma decisiva, desde o século XV, a produção e distribuição do poder e da riqueza, do conforto, da violência e da escassez.
Disso resultam injustiças nas formas de se relacionar e impactar a natureza, as quais afetam os territórios e gentes do campo e da cidade a seu modo, tendo em vista as especificidades de suas histórias e relações, mas se configuram como partes de uma mesma lógica histórica que é, ao mesmo tempo, concentradora do poder e da riqueza, produtora e distribuidora de pobreza, mediante incontáveis violências que vão da expropriação e exploração ao descarte e ao genocídio. A lógica da subordinação, superexploração e mercantilização da natureza, herdada das economias escravagistas, contém em si própria a racialização dos não brancos, excluindo ou rebaixando a sua humanidade, explorando, violando e exterminando seus corpos e modos de vida num terrível pacto social que gera, naturaliza e criminaliza as ausências e os sofrimentos.
Assim, se o campesinato negro, indígena e quilombola vem sendo terrivelmente afetado pelo agronegócio, a mineração, a indústria de energia, entre outros modelos de usos e ocupação predatórios do território, nos contextos urbanos são as comunidades periféricas de maioria negra que enfrentam em seu cotidiano as maiores e mais graves ausências de políticas socioambientais e destruição dos ecossistemas. São essas comunidades e pessoas que são despejadas e humilhadas na gentrificação ou higienização para que em seu território sejam implementadas as grandes obras públicas e privadas. São essas comunidades que enfrentam, convivem e gerenciam as catástrofes climáticas e tragédias como a escassez de água e as iniquidades nas políticas de saúde e saneamento, os déficits habitacionais e os riscos de viver.
Também não é novidade o fato de que sobre as mulheres pobres e negras recaem os mais cruéis efeitos: chefes de famílias com baixa renda, gerentes da economia doméstica da escassez, demandante das políticas públicas, muito mais para os outros que para si, pilares da “gestão” do afeto e do cuidado. Responsabilizadas pelas consequências diárias, essas mulheres correm atrás da educação, da saúde física e mental, da segurança pública, e lutam contra as violências e os maus-tratos, enfim, uma lista infinita de questões que os movimentos de mulheres negras vêm expondo de forma contundente em seus trabalhos políticos.
É também na produção e reprodução do racismo cotidiano que os territórios da brancura e seus espaços de domínio nos contextos urbanos são considerados dignos de segurança jurídica, patrimonial, territorial e de acesso às melhores políticas e oportunidades que o Estado pode oferecer. Saneamento, transporte e mobilidade, iluminação, segurança pública, arte e cultura e outras demandas da chamada cidadania se transformam em privilégios na concepção da cidade, no planejamento urbano e na distribuição orçamentária. Já os territórios e os corpos negros e indígenas ou que desses descendem, formam a imensa maioria que experimenta as ausências mais básicas de condições de vida: não têm acesso à justiça, são destituídos de patrimônio, vivem de forma tensa a insegurança territorial, e é a eles que se destinam as piores e mais precárias políticas. É também nesses territórios e contra esses corpos que a presença do Estado se dá pela força da violência institucional, da negociação coercitiva e injusta e pela naturalização das iniquidades em face dos privilégios políticos e econômicos dos ricos.
Tais privilégios alcançam, não por coincidência, as minorias brancas, super quando não exclusivamente representadas nas instituições democráticas, nos poderes executivos, legislativos, judiciários, nos setores midiáticos, nas universidades, nos quadros técnicos e científicos das políticas econômicas, de planejamento e orçamento. Nas políticas ambientais e na própria definição do que são os riscos e impactos ambientais, assim como formas mais legítimas de usos e ocupações da terra urbana, são os pontos de vista e as necessidades dessa minoria branca que prevalecem, muitas vezes sendo elas próprias as que dominam a política, a economia, a justiça e o uso da força, naturalizando a precarização da vida e dos destinos dos demais grupos sociais que fazem a cidade.
Um olhar a partir do racismo ambiental nos mostra que os despejos e o massacre da população negra nas periferias urbanas estão para o ecocídio e o genocídio dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais, assim como as grandes obras de infraestrutura urbana e implementação de empreendimentos imobiliários estão para a mineração e o agronegócio. Se há o poder e o fetiche do agroboy de um lado, de outro, as classes médias e ricas, protegidas, ocupam, comercializam e ganham com os maiores lotes e usufruem das melhores políticas urbanas. Enquanto juventudes são desterritorializadas e vulnerabilizadas pela destruição de territórios ancestrais, juventudes urbanas são interrompidas pela violência e a criminalidade, pela exploração de seus corpos e mão de obra, pelas baixas perspectivas de estabilidade financeira e garantias futuras.
Da mesma forma, a homogeneização pela imposição da lógica urbano-industrial, sobre os territórios camponeses e tradicionais cada vez mais promove os “encontros” e as sinergias dos danos sociais produzidos pela degradação ambiental, assemelhando de forma trágica os destinos dos territórios ao sobrepor à diversidade sociocultural, a lógica da escassez, da violência, da criminalização, da morte e do encarceramento. Porém, os desprivilegiados nessas lógicas de dominação são plenamente humanos em diversidade e, como tal, não têm como meta a morte antes do tempo nem tampouco a subordinação. Assim, a resistência também tem uma história fortíssima que, mesmo sob constante mira, continua nas rebeliões dos discursos, da estética dos corpos, da gramática, das artes, das culturas, na amplificação dos gritos de denúncias, mas também na beleza. Na dinâmica da vida, o encontro de resistências urbanas e camponesas pode ser, será e é uma poderosa força de enfrentamento justo ao colapso do planeta a partir do enfrentamento radical às suas raízes e às consequências desiguais desse processo.
A luta pelo direito à cidade é também pelo direito de existir, e existir exige corpos, terra, água, ar e mística, e tudo isso, como nos ensinam os povos indígenas e as comunidades de terreiro, não está apartado dos ciclos ecológicos. Discutir água, energia, alimento, moradia, mobilidade, saúde, saneamento e segurança pública, direito de crença e culto, diversidade sexual e de gênero, implica em problematizar os modelos degradadores dos ecossistemas e da sociobiodiversidade que ameaçam a vida de todas as pessoas.
A luta contra o racismo ambiental potencializa as forças sociais, políticas e ancestrais, criadoras e herdeiras dos esforços para “adiar o fim do mundo”, como diria Ailton Krenak, começando pelo adiamento da morte de si e dos seus. Há que valorizar e orientar os afetos às aprendizagens construídas e adquiridas desde os espaços e lutas populares, seja na escrita, na oralidade e nas mais diversas expressões trazidas nos corpos que se posicionam em defesa dos ecossistemas e dos direitos dos povos, populações e comunidades presentes na imensa diversidade sociocultural e ambiental no Brasil e no mundo.
Por Cris Faustino
Assistente social, feminista negra, ambientalista e militante de direitos humanos.
Integra a Coordenação do Instituto Terramar, a Rede Brasileira de Justiça Ambiental e é presidenta da Justiça Global-RJ.