Yuri Silva e Maiara Marinho entrevistam Eleonora Menicucci –
Presa política em São Paulo aos 23 anos pela ditadura civil-militar do Brasil, a socióloga Eleonora Menicucci saiu da prisão e foi para a luta. Em liberdade, voltou para Minas Gerais, seu estado natal, para estudar e encontrou o movimento feminista organizado. Na luta pelo direito das mulheres, dedicou-se por toda a vida dali em diante, o que acabou tornando-a ministra dos governos da ex-presidenta Dilma Rousseff, sua amiga de longa data, entre 2012 e 2016. Menicucci ocupou o posto de Ministra-Chefe da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), que possuía status de ministério, até que um golpe parlamentar – caracterizado oficialmente como impeachment, mas que Menicucci classifica como “misógino” e “machista” – retirou Dilma do poder, abrindo caminho para o governo Michel Temer. Começara ali a bancarrota das políticas de Direitos Humanos no Brasil, especialmente para as pautas das mulheres, dos negros, dos indígenas e da população LGBTQIAP+. Nesta entrevista para a ‘Revista Socialismo e Liberdade’, a ex-ministra Eleonora fala das dores e delícias de dedicar uma vida à luta política – volta e meia sendo chamada de “guerrilheira”, “abortista” e tantos outros adjetivos – e também sobre as pautas prioritárias para recuperar o país da crise social, política e econômica que se arrasta durante a última década. A ex-ministra de Políticas para as Mulheres analisa o impacto do governo de Jair Bolsonaro no que diz respeito às políticas públicas transversais nesta temática e aponta os caminhos daqui para frente. Qual o sentimento pessoal de enfrentar dois golpes de caráter tão distintos ao longo da vida? Qual o futuro das políticas públicas dedicadas às mulheres no Brasil em um eventual governo de retomada comandado pelo ex-presidente Lula? Teremos um governo de mulheres? São essas algumas das perguntas que a ex-ministra responde ao editor-chefe da ‘Revista Socialismo e Liberdade’, Yuri Silva, e à jornalista Maiara Marinho, colaboradora especial neste conteúdo.
Gostaria de começar voltando um pouco no tempo. Quando a senhora atuou como ministra da ex-presidenta Dilma Rousseff, entre 2012 e 2016, sofreu algumas retaliações de parlamentares por defender pautas caras ao feminismo, como o aborto legal e seguro. O assunto também foi manchete em vários jornais. Isso foi há pouco tempo. Da sua experiência, atuando dentro do governo, já sentia que havia um conservadorismo presente para lidar com algumas pautas antes da eleição do Bolsonaro?
A legalização do aborto é uma pauta muito imporante para as mulheres. E é uma pauta muito revolucionária. Nós, mulheres, sabemos que a quinta causa de morte materna é o aborto. Na época nenhum país da América do Sul tinha o aborto legalizado. Hoje, a Argentina e o Uruguai já avançaram nesse sentido. O Chile não tinha legalizado nem o aborto decorrente de estrupro. O Congresso Nacional reflete a sociedade patriarcal, racista e capitalista. Não tem como. É um número muito pequeno de deputados e senadores que não compõem essa bancada conservadora. E a bancada considerada de esquerda, que na época era PT, PCdoB e PSOL, desses não sofri nenhuma interdição. A minha história é uma história pública. Foi por causa da minha história que a grande parte do Congresso Nacional e a imprensa, principalmente a imprensa, dizia que eu era uma “aborteira”. Foram atrás de coisas impensáveis minhas. E no dia que eu conversei com a presidenta Dilma, ela foi muito clara pra mim: na questão do aborto, o ministério segue as diretrizes do governo. Se eu não quisesse seguir, eu teria saído.
Como lidar com essas questões mais delicadas e avançar em políticas públicas tendo que fazer alianças para governar? Como conciliar as divergências ideológicas e fazer política para as mulheres?
É preciso votar. Ter uma narrativa que chegue até as pessoas, homens, mulheres e jovens. Além disso, todos os partidos precisam ter na sua lista mulheres jovens, mulheres maduras, maduras idosas, mulheres negras, indígenas, LGBTQIAP+ e mulheres deficientes também. E na lista também homens negros, homens jovens, homens gays. É essa a questão [do voto] que está por trás de um Congresso desse tipo, conservador. O golpe começa com Aécio Neves não aceitando a eleição. O golpe foi misógino. Já havia uma armação do Aécio Neves com o [Michel] Temer para depor a presidenta Dilma. O golpe foi internacional, foi machista, misógino, financista, e não foi só no Brasil não, teve participação internacional. Primeiro, foi o Aécio pedindo a recontagem dos votos. Depois, aquela panaceia que tirou a presidenta Dilma do poder. A segunda fase do golpe foi aprovar as políticas mais neoliberais, como a reforma trabalhista, a reforma da previdência, a perda total de direitos das mulheres, dos jovens, da população negra, do povo trabalhador homem e mulher. E depois a prisão do presidente Lula. Já está mais do que escancarado quem fez parte do golpe. O Bolsonaro é fruto disso. Ele cuspiu no Jean Wyllys na hora da votação [do impeachment, no Congresso]. Ele disse para a [deputada e ex-ministra dos Direitos Humanos] Maria do Rosário que só não a estuprava porque ela não merecia. Ele me chamava de “guerrilheira” e “aborteira”. A centro-direita, os tucanos e todo o restante não imaginavam que, mesmo apoiando o Bolsonaro, desde o ‘Bolso-Dória’ até vários outros, o Bolsonaro daria um golpe neles também. Então o Bolsonaro é o resultado do golpe, de um novo tipo de golpe. [Esse tipo de golpe] Começou com o [Fernando] Lugo [presidente do Paraguai cassado em 2012]. O presente tem nos mostrado que a esquerda precisa mudar a narrativa, precisa construir uma narrativa que chegue à população. Não adianta eu ter uma narrativa altamente desenvolvida e dialogar com vocês. Não, precisamos dialogar também com a população. Só assim vamos mudar o parlamento. Sou feministra há mais de 50 anos, desde que saí da prisão em 1974. A realidade tem me mostrado que as mulheres são muito receptivas às pautas dos direitos. E estão cada vez mais receptivas. Nós somos 52% da população. E a população negra é 49%. Somos maioria, não minoria. Disso as mulheres têm plena consciência. O que nós temos que fazer é transformar essa pauta numa pauta de fácil compreensão para as mulheres e para a população em geral. Mas a sociedade é, em média, 30% conservadora. A sociedade como um todo, não é a sociedade organizada. Então, 70% não é. Ela pode ter sido antipetista, mas não é conservadora nos costumes. Portanto, a pauta fundamental das mulheres tem quatro eixos: o enfrentamento a todo tipo de violência de gênero; a garantia da saúde integral, dos direitos sexuais e reprodutivos; o ‘trabalho igual/salário igual’ para autonomia econômica e a questão da violência política – e essa afeta não só as mulheres, mas a população negra e a população LGBTQIA+ também. Esses são temas muito caros para a pauta das mulheres.
Qual análise a senhora faz sobre a eleição do Bolsonaro? Qual o simbolismo da eleição do Bolsonaro para as mulheres brasileiras, depois de todas as posições sexistas e machistas que ele já adotou na vida pública?
Foi o simbolismo do atraso, do desmonte, da mentira, das ‘fake news’. Ele elegeu as mulheres, os negros, a população LGBTQIA+ e os trabalhadores como alvos prioritários da sua vida como presidente da República. Ele não só desmontou tudo que nós fizemos, como colocou uma ministra pastora [Damares Alves, pastora conservadora, titular do Ministério das Mulheres]. Além de acabar com a Secretaria das Mulheres, colocou uma ministra pastora. Eu estudei o orçamento de 2022 e não tinha nenhum centavo previsto, orçado para políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Então o Bolsonaro para nós é o que há de mais atrasado, mais conservador, que mais destrói. Ele é o exemplo da destruição dos direitos, o exemplo do desmonte. O que temos em pé hoje? Nada. Para nós mulheres foi horrível. Não tem outra qualificação. Por isso que é fundamental a bandeira do ‘Bolsonaro Nunca Mais’.
Alguns avanços para as mulheres foram implementados no Governo Dilma, como a Casa da Mulher Brasileira, a PEC das Trabalhadoras Domésticas, a Lei do Feminicídio, entre outros programas sobre direito reprodutivo e combate à LGBTfobia. Era uma pauta importante, da primeira mulher presidente da República. Essas políticas foram interrompidas já no Governo Michel Temer. A senhora consegue dimensionar o quanto o país retrocedeu em políticas de gênero desde o golpe contra a presidenta Dilma?
Retrocedeu 100%. Ele acabou com a CLT da reforma trabalhista, acabou com a Previdência, acabou com todas as nossas políticas. Não tinha orçado nada para as políticas para as mulheres, principalmente no enfrentamento à violência. Ele chegou a dizer que a questão do enfrentamento à violência e do estupro cabe à mulher se defender. E ele é o presidente da nação.
Considerando o diagnóstico de retrocesso, o que precisamos para retomar o que estava sendo feito e avançar mais ainda?
Primeiro, eleger o Lula. Segundo, nessa eleição, recuperar, resgatar uma Secretaria de Política para as Mulheres como Ministério, com recursos humanos e com recursos financeiros. [Criar o] Ministério de Políticas para Mulheres. Essa é a primeira questão. E [retomar] todas as políticas que nós desenvolvemos e que foram exemplares. A Maria da Penha é a terceira lei mais conhecida e mais importante, segundo a ONU. O Brasil foi o 16° país a assinar a Lei do Feminicídio. Na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) das trabalhadoras domésticas, nós apoiamos a bancada que aprovou no Congresso Nacional. Ampliamos os direitos das trabalhadoras domésticas que eram 11 para todos os direitos da então CLT. Nós sabemos o que fazer e como fazer. Agora precisamos de um Ministério com mais recursos financeiros e mais recursos humanos para as mulheres, para fazer as políticas específicas e as políticas transversais. E as mulheres precisam ter protagonismo fundamental no nosso governo, além de ter uma Câmara e um Senado que sustentem o governo e avancem na aprovação das políticas, é preciso resgatar, colocar em pé as políticas que começamos e avançar com elas.
No movimento negro se fala também da recuperação do antigo SEPPIR.
Eu acho que tem que fazer três Ministérios. Temos que transformar a Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) em Ministérios próprios. Esse debate é urgente e essencial para começar a retomada.
Esse debate tem sido feito no âmbito da pré-campanha do Lula?
Nós mulheres temos discutido isso. Estamos conversando com outros partidos, com o PSOL, com o PCdoB. Fizemos uma reunião com Lula, com a presença da Natália Szermeta [presidenta da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco], que falou pelo PSOL, e a opinião não se diferenciou disso. Nós mulheres feministas sabemos o que queremos e o movimento negro também. Foi muito difícil governar [com a estrutura que tínhamos] depois de 2014, 2015. Foi muito difícil. E em 2016 [ano do Golpe] foi impossível, por mais que nós tenhamos atuado. Então, essa opinião não é só minha, é de um conjunto de mulheres.
Considerando o atual contexto social do Brasil, quais serão as políticas urgentes para as mulheres em um governo de recuperação?
Primeiro, o Ministério que eu falei. Segundo, resgatar a missão da antiga Secretaria [de Políticas para Mulheres]. Ela tinha status de Ministério, mas agora precisa ser um Ministério e resgatar duas questões fundamentais: refazer a política e ter o protagonismo feminino no governo para que essas políticas sejam transversais. [Temos que incentivar] A participação popular por meio do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, conselho tripartite entre União, trabalhadoras e sociedade civil, que é fundamental para o acompanhamento social das políticas públicas. E fazer a 5ª Conferência de Mulheres é indispensável também. Eu fiz a 4ª Conferência, nas vésperas do afastamento da presidenta Dilma. Em termos de eixos, temos que resgatar tudo o que fizemos. Temos que universalizar as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Temos que terminar a construção das Casas da Mulher Brasileira; reaparelhar o Disque 180, que foi desativado; reativar e aumentar os Ônibus Lilás, para levar as políticas para o campo e para a floresta; assim como os Barcos da Caixa, para levar política para mulheres ribeirinhas. É preciso ir até as zonas de fronteira seca, para resgatar mulheres em situação de tráfico sexual; resgatar o programa de cirurgias plásticas reparadoras para mulheres que sofreram violência. É preciso reforçar a Patrulha Maria da Penha. Na saúde integral da mulher, [é preciso] ampliar, criar novos serviços de aborto legal no país todo e formar profissionais para isso, com formação continuada. A violência obstétrica tem que voltar ao quadro das violências contra as mulheres. A contracepção de emergência, 72 horas após o ato sexual, e toda política de saúde integral, direitos sexuais e direitos reprodutivos precisam estar funcionando, respeitando a decisão da mulher. A questão da autonomia econômica é essencial também. Temos que premiar empresas que tenham boas práticas de gênero e raça na organização, ampliar as oportunidades de qualificação para gerar emprego e renda para as mulheres, preparando elas para empregos com bons salários. Isso é fundamental, porque isso vai nos dar a dimensão do ‘salário igual/trabalho igual’. É importantíssimo resgatar o Pronatec, onde as mulheres eram formadas para exercer funções que apenas homens exerciam, como marcenaria, mecânica, eletricista. E a violência política é outro eixo importante. Precisamos criar políticas públicas que combatam essa violência nefasta, horrorosa. E políticas transversais com o Ministério de Desenvolvimento Social, da Saúde, da Educação, da Igualdade Racial e Direitos Humanos, Ministério do Desenvolvimento Agrário com o programa de agricultura familiar. Em síntese, nós temos que avançar nessas políticas e quem vai dizer como vamos avançar são as mulheres. O que nós queremos, nós que compomos os partidos que irão participar do governo [é que] o movimento das mulheres e os movimentos sociais pautem essa atuação.
Para além desses programas não seria oportuno também ações de formação nas escolas, no meio rural com as agricultoras, se não seria um momento oportuno para resgatar a consciência?
Quando falo em formação, estou falando disso. É fundamental. Não dá pra detalhar. Isso caberá ao movimento de mulheres, ao movimento feminista e à nova ministra que fará isso. Mas nós todas estamos muito conscientes disso. Gênero, raça e classe são estruturantes de uma sociedade democrática e avançada. Como também o capitalismo e as políticas neoliberais atacaram prioritariamente esses grupos de pessoas. Não podemos pensar em um plano, em um governo que não considere esses grupos. As mulheres estão neles todos. As mulheres estão na raça, as mulheres trabalhadoras na classe e o gênero é a especificidade. Nós precisamos acabar com a escravidão nesse país. A abolição não aconteceu. Quando sancionei a PEC das Domésticas com a presidenta Dilma, eu iniciei meu discurso falando que estávamos começando a abolir a escravidão dentro das nossas próprias casas.
Como você leu a nomeação do ministério do Gabriel Boric, presidente do Chile, recentemente? Lá, os ministérios possuem 58% de mulheres, a neta do Salvador Allende, Maya Fernández Allende, deputada do PS (Partido Socialista), é ministra da Defesa, o que é muito simbólico. O Brasil ainda poderá viver algo parecido?
Eu vi a realidade do Chile com muita alegria e muita satisfação política. É um governo de mulheres, de mulheres em cargos fortes. Você citou a ministra da Defesa. É excelente, fantástico, foi emocionante aquela entrada dela no Ministério. O Gabriel [Boric] é um jovem e quis fazer o que ele se comprometeu a fazer. Eu acho que não está longe no Brasil, porque depende também de nós. Não há a menor dúvida. Acho que no terceiro mandato do presidente Lula isso vai acontecer. Ele foi ao México e nos disse no encontro com mulheres que ficou impressionado com o Congresso Nacional do México, que é paritário [em termos de gênero]. Ele disse que nunca viu tantas mulheres ocupando cadeiras no governo e no parlamento. Acredito que haverá mudança radical. Já se passaram sete anos do Golpe [de 2016]. Todos nós aprendemos muito desde lá.
Como é para a senhora ter vivido o contexto da ditadura militar e a redemocratização e chegar nesse contexto de retrocesso brutal para um país que ainda estava se recuperando após uma recente retomada do seu caráter democrático?
Nunca pensei que pudéssemos retroceder a esse ponto. Era muito jovem, tinha 23 anos, já tinha uma filha, que eu tive enquanto estava na clandestinidade. Lutar naquele contexto da ditadura era um imperativo. Não podíamos aceitar. Depois do AI-5, se agravaram as opressões e fomos obrigados a entrar na clandestinidade. Essa experiência foi única. Éramos todos muito novos, mas todos muito determinados. O nascimento da minha filha foi difícil, tinha medo de ela ser presa e torturada, porque eles [os militares] ameaçaram. Fiquei presa três anos, fui julgada, minha pena caiu para dois anos. Eu já tinha cumprido três e fui colocada em liberdade. Depois, ela [a pena] caiu, uma decisão me liberou e eu voltei [para Minas Gerais] para estudar. Tive a grata satisfação de encontrar mulheres feministas e aí que eu me engajei com o feminismo, na luta pela democracia e pela justiça social. Ter passado por esse golpe [de 2016] foi diferente. Os dois golpes eu vivi de dentro. A diferença é que tinha botas, assassinados e desaparecidos no primeiro. E o segundo foi o famoso golpe parlamentar. Mas é um golpe do mesmo jeito. E é muito importante ter sobrevivido aos dois. Ver o Bolsonaro é uma coisa não só lamentável, é indescritivelmente desastroso. Eu passei a ter cada vez mais, cada dia mais a certeza de que você tem que transformar o luto em luta. E no dia 31 de março, que é o dia do golpe, sempre acontece a Caminhada do Silêncio no Parque do Ibirapuera, porque nós obviamente não celebramos o golpe, mas fazemos a caminhada para dizer ‘esquecer jamais, ditadura nunca mais’, pra defender memória, verdade e justiça sempre. Quando a presidenta Dilma criou a Comissão Nacional da Verdade, foi muito importante. Um dos motivos do golpe tem a ver com isso, com essa atitude dela digna, corajosa e necessária. Agora é continuar lutando por ‘Bolsonaro nunca mais’. A vida quer coragem da gente.