Gilberto Maringoni
No início de maio, Jair Bolsonaro editou decreto flexibilizando o porte de armas, incluindo fuzis, pela população. Governadores de estados e companhias aéreas estrangeiras se levantaram em uníssono contra a medida. Nos dias seguintes, a medida foi qualificada como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Diante da reação, o chefe do Executivo não se apertou: “Se é inconstitucional, tem que deixar de existir”.
O presidente fala como se não fossem ele e o gabinete presidencial os responsáveis pela iniciativa e como se antes da cerimônia de edição que contou com representantes da bancada da bala fazendo a infantil imitação de armas com as mãos a área jurídica do governo não tivesse sido consultada.
Esse é um exemplo entre tantos da aparente falta de lógica nas ações governamentais. O governo vai e volta em suas ações e nada acontece. Na Educação, o responsável pela área promete cortar verbas de quem estiver promovendo “balbúrdia”; os filhos do capitão usam e reusam a administração como se estivessem num play ground particular; e o ministro-chefe do Itamaraty, volta e meia, agride históricos aliados comerciais do país. Em dados momentos, o grande inimigo do governo Bolsonaro parece ser o próprio governo Bolsonaro.
O primado da falta de lógica
A gestão eleita em 2018, a começar pelo próprio presidente da República, tem desafiado a lógica dos que tentam compreendê-la com a métrica tradicional da disputa política. O capitão ataca aliados, agride órgãos oficiais pelo Twitter e incentiva a intriga ampla e irrestrita, mentindo sempre que necessário. Não busca consensos ou formação de maiorias estáveis para governar, mas sempre o atrito e a agressão rasteira.
Não se trata de um mero governo burguês que exerce a dominação de classe com os instrumentos próprios da institucionalidade liberal. Tampouco temos aqui a nova versão de um governo militar.
Por vezes, a disputa entre facções no aparato governamental se sobrepõe ao enfrentamento que desnorteados partidos e grupos de oposição buscam fazer. A equipe ministerial não apenas é composta por tipos bizarros, como aparenta não ter unidade entre si. No conjunto, o poder Executivo abre tantas frentes de batalha com a sociedade ou com interesses localizados, que se torna difícil estabelecer uma escala de prioridades no combate. Também é difícil dizer se há método nesse caos.
Estamos diante de uma administração paradoxal. Ao mesmo tempo em que aplica a ferro e fogo um projeto ultraliberal, sem nenhuma concessão social, os sinais que emite para a sociedade são contraditórios.
Sistema e antissistema
Trata-se de um novo comportamento da extrema direita. Ela se coloca como “oposição ao sistema” para reforçar as piores tendências desse mesmo sistema. Aos olhos do eleitorado, Bolsonaro age como se fosse governo e oposição a um só tempo. Em carta de apoiador, divulgada nas redes sociais do presidente em 17 de maio, está escrito:
“Bastaram cinco meses de um governo atípico, ‘sem jeito’ com o Congresso e de comunicação amadora para nos mostrar que o Brasil nunca foi, e talvez nunca será governado de acordo com o interesse dos eleitores. Sejam eles de esquerda ou de direita. (…) O Brasil é governado exclusivamente para atender aos interesses de corporações com acesso privilegiado ao orçamento público”.
Parecem linhas traçadas por algum crítico feroz da administração. Mas não. Essa aparente deslocalização do presidente no espectro político faz com que os ataques à Educação, aos órgãos de fiscalização ambiental, aos serviços de saúde entre tantos outros aparentem vir de fora do governo, o que lhe dá legitimidade entre vários setores da população.
Face uma forte crise de representação e de um desencanto com a atividade política como forma de resolver problemas imediatos, chegou ao poder de Estado uma coalizão composta por uma coletânea de tipos aparentemente fora da curva, como se diz nas ruas. Vários estudiosos, à falta de denominação melhor, têm classificado erroneamente Bolsonaro e líderes autoritários num grande balaio ao qual dão o nome de “populistas”. Mais correto é analisá-los como produto do lumpesinato de diversas classes sociais, que se tornou depositário momentâneo da confiança do grande capital.
Bolsonaro não comete estelionato eleitoral e cumpre o que prometeu em campanha: acabar com “ideologia de gênero”, com “doutrinação” de professores (responsáveis pelo baixo nível da educação pública), liberar o porte de armas, desencadear uma luta sem trégua à esquerda, bloquear reforma agrária e demarcações de terras indígenas, tomar distância da “ditadura da Venezuela” e deixar o mercado comandar a vida pública.
Tais iniciativas isoladamente não compõem um programa de governo, mas se constituem em apelos de uma extrema direita selvagem. Na campanha, o ex-capitão não apresentou plano algum. É certo que aplica um programa afinado com o capital financeiro, que embute concentração de renda, privatizações a granel, enxugamento da ação social do Estado, redução de direitos, contração da demanda e desemprego alto como forma de facilitar a desorganização do mundo do trabalho. Amalgamando tudo, há um vago apelo a um nacionalismo instrumental.
Antipolítica e desencanto
Bolsonaro não inova ao se colocar como porta-voz de um difuso sentimento antipolítica, que se expandiu fortemente após o desastre do governo Dilma e quando ficou claro o esgotamento do pacto social selado pela Constituição de 1988.
A marca maior desse esgotamento se deu logo após a quarta vitória eleitoral do PT, em 2014. Ao fazer um giro radical no que fora prometido na campanha desenvolvimento, emprego e renda e ao adotar abruptamente o programa da alta finança, a então presidenta rompeu um acordo não escrito com uma base social que o PT construiu com muita dificuldade ao longo de mais de três décadas.
O desencanto desse eleitorado com um tarifaço-surpresa e com o aumento vertiginoso do desemprego, em 2015, levou à quebra de um acordo governantes-governados estabelecido nas urnas. A perda de confiança no voto popular no bojo de descontentamentos crescentes com promessas não realizadas – representa o momento de ruptura do pacto de 1988. O chamado estelionato eleitoral fez erodir a sustentação social do governo e abriu espaço para o avanço da direita, para o golpe e para a aventura bolsonarista. Escancarou-se uma crise de representação. Na esteira, criou-se a sensação de desgoverno e de ilegitimidade e sedimentou-se o terreno para o surgimento do líder providencial, do homem simples e direto que entende nossas dores. Em síntese, do salvador da Pátria.
Mais do que programa ou projeto, o que leva Bolsonaro ao governo é a negação a tudo que remotamente remeta à “política”. Esta, para um eleitorado sem esperanças, passa a ser a matriz de todos os males do mundo, como a corrupção, a queda da qualidade de vida, a mentira, a pouca vergonha e por aí vai. Assim, a não participação de Bolsonaro em debates com os oponentes desafiando a lógica clássica de campanhas passa a ser central no caminho ao Planalto. Bolsonaro repele “a política” e por isso deve ser bom. A própria alcunha de “mito” reforça essas características. Mitos não demandam justificativas ou explicações; mitos bastam a si mesmos e resolvem “tudo isso aí” com soluções quase mágicas.
“Fazer o que tem de ser feito”
Esse comportamento não é invenção do presidente brasileiro. Viktor Orbán valeu-se de tática semelhante. É o que relata Jan- -Werner Müller, professor de Ciência Política da Universidade de Princeton, no What is populism? (Penguin Books, 2016, pág. 26):
“O líder populista de direita húngaro Viktor Orbán [que Bolsonaro já classificou como ‘parceiro’] decidiu não participar de debates prévios às eleições de 2010 e 2014 (por ele vencidas). Orbán explicou a recusa da seguinte forma:
‘Não são necessários debates sobre políticas específicas para os problemas atuais. As alternativas são óbvias (…). Tenho certeza que você sabe o que acontece quando uma árvore cai numa estrada e uma porção de gente fica em volta dela. Há sempre dois tipos de pessoas. As que têm grandes ideias sobre como remover a árvore, passam a debater maravilhosas teorias e distribuem conselhos. Outras, simplesmente percebem que o melhor é começar a tirar a árvore da estrada… Precisamos entender que para reconstruir a economia não são necessárias teorias, mas uns trinta rapazes robustos que comecem a fazer o que precisa ser feito’”.
Orbán é direto e concreto no apelo ao senso comum. O que precisa ser feito é óbvio: melhorar a vida das pessoas. Não é preciso debate sobre valores ou projetos incompreensíveis para a maioria. O caminho para se fazer isso em situação de crise aguda envolve até a aceitação da perda de direitos anteriormente intocáveis.
Outro exemplo vem da Ucrânia, nas eleições de abril de 2019. O ator e humorista Volodymyr Zelensky, totalmente inexperiente, venceu a disputa com 73% dos votos, num país fragmentado e em guerra civil. A primeira decisão oficial anunciada no discurso de posse foi dissolver o Parlamento. O partido, criado um ano antes, não tem representação legislativa.
Zelensky tampouco apresentou programa de governo e nenhuma declaração pública foi feita entre o dia das eleições, 21 de abril, e a posse, um mês depois. A campanha foi dominada por denúncias de corrupção, pela desilusão pública com o establishment político e por promessas tão vagas quanto enfáticas de rompimento com “o sistema”.
Em sua conta no Twitter, antes do pleito, Zelensky chegou a dizer: “Nós não dividimos as pessoas à esquerda e à direita. Não dividimos as pessoas em ucraniano ou russo, em um ou outro. Estamos todos juntos: todos pensamos em um idioma – a linguagem da igualdade”.
Assim como Bolsonaro, ele também investe fortemente contra o mundo político, a quem chama de covil de ladrões.
A ideia totalizante
Sem explicitar programas e repelindo fortemente “a política”, lideranças desse tipo apresentam, contudo, uma ideia totalizante e unidimensional do que pretendem, para além de temas concretos como “fora imigrantes”, “armas para todos” ou “cadeia para os corruptos”.
Trata-se da ideia de Nação como um conjunto inclusivo, acima das diferenças de classe, de etnia, de religião etc. Um conceito aparentemente total, indiscutível e colocado dessa forma também despolitizado. Ela nada teria a ver com interesses e concepções particulares. A Nação seria a grande mãe a acolher todos os filhos, à exceção dos que lhe renegam. Daí o brado patrioteiro-religioso dos partidários da coalizão que chega ao Planalto: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”.
No discurso de posse, no púlpito do Palácio do Planalto, em 1º de janeiro, o eleito agregou uma terceira entidade: “Quando os inimigos da pátria, da ordem e da liberdade tentaram pôr fim à minha vida [no atentado sofrido durante a campanha], milhões de brasileiros foram às ruas”.
Ao unir Nação e Deus à sua pessoa personagem da política concreta – uma mudança acontece: os conceitos inclusivos tornam-se imediatamente excludentes. Quem ataca Bolsonaro é inimigo “da Pátria”, logo de Deus.
O nacionalismo de Bolsonaro e dos congêneres ao redor do mundo é superficial e instrumental, mas tem grande apelo popular. Ao cultuar uma Nação acima de tudo e de todos, esta deixa de ser espaço de disputa pública e ente soberano, e passa a ser objeto de veneração passiva, quase religiosa.
A agenda econômico-financeira do governo é fortemente liberal, subordinada ao imperialismo e oposta a qualquer defesa real de soberania. As linhas de força envolvem a entrega do pré-sal, a venda da Embraer, privatizações a granel e uma diplomacia alinhada ao Departamento de Estado.
O amálgama fundamental entre o nacionalismo instrumental, a guerra dos costumes e o projeto neoliberal de Bolsonaro é o aumento desmedido das tensões e chantagens contra a sociedade. Se o fim das aposentadorias, dos Mais Médicos e a probabilidade de um novo mergulho recessivo com consequências sociais dramáticas representam iniciativas impopulares, elas têm de gerar a contraface. Não serão soluções, mas válvulas de escape para uma população descrente e desesperada.
Tensão como método
Para tornar palatável o receituário, Bolsonaro tem necessidade premente de criar “um grande mal” a todo instante, fazendo do tensionamento entre grupos sociais um método de governo. Os estudantes que protestam, os trabalhadores em greve e a população insatisfeita não estariam pensando no bem da Nação. São privilegiados e querem a mamata.
Não devem ser convencidos, mas “removidos”, como prega um dos mais próximos aliados de Jair Bolsonaro, o bispo Edir Macedo. Em culto ministrado no Rio de Janeiro, em 19 de maio, o empresário de almas apelou para que Deus “remova aqueles que querem impedir o presidente de fazer um excelente governo”. Entramos no terreno do tudo ou nada, da ordem ou do caos, da “Previdência ou morte”, como propaga o empresário fascista da Havan. É assim que, intuitivamente, Bolsonaro resolve uma contradição sem saída entre Nação e desmonte.
Nesse cenário de alta octanagem oficial, tudo indica que a máquina pública o Estado brasileiro caminha célere para um apagão administrativo.
Os cortes de verbas lineares nas Universidades e outras unidades de ensino federal, o desmonte do SUS, a várzea em que se transformou a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), o bate-cabeças entre quase duas centenas de oficiais militares acostumados a mandar e olavistas alucinados, o vandalismo que acomete o BNDES, o anunciado fim do Minha Casa Minha Vida, a extinção dos financiamentos para agricultura familiar etc. etc. expressam um misto de incompetência com um bem definido projeto estratégico.
Sim. Bolsonaro tem projeto claro, límpido e cristalino. O que ele não tem é política, daí a sensação de falta de lógica comentada no início deste texto. Sem política, as disputas na sociedade devem ser resolvidas pela força e pela violência.
O extremismo inaugura nova fase para a direita brasileira. Em quase toda a República, as classes dominantes deram vazão sem freios à sua brutalidade contra as classes populares. Apesar ou por causa disso, há algo que tais setores fizeram muito bem ao longo do último século e meio: a gestão do Estado.
O que moveu distintas frações burguesas nessa senda foi o fato de esse Estado ser ferramenta essencial para a manutenção de dominação de classe. As engrenagens tinham de funcionar para possibilitar a reprodução ininterrupta de capital. Não poderia haver apagão. Gerir o Estado significa gerir o capitalismo.
O topo da pirâmide social sempre conduziu o Estado de forma competente, ao montar uma burocracia profissional vide Vargas 1930-45, com competentes políticas para tocar o projeto nacional. Política e gestão de Estado são inseparáveis. Não existe gestão pública neutra.
Inserção subordinada
O projeto de Bolsonaro se materializa na inserção ainda mais subordinada do Brasil à nova divisão internacional do trabalho, surgida pós-anos 1970-80. Essa configuração tem como métrica o dólar flexível sem lastro, a financeirização econômica e a globalização capitalista lastreada inicialmente na unipolaridade imperialista dos EUA.
A ação mais clara para essa nova inserção é a redução brutal do preço da força de trabalho, o desmonte de qualquer sombra de soberania industrial e a repressão interna.
Vamos repetir: há um projeto sem política, há uma Nação sem soberania e há direitos denunciados como mamatas. A demonização da atividade política, impulsionada por Bolsonaro e pela Lava Jato batem de frente com o que existe de público e participativo no Estado.
O desmonte só é possível por conta das profundas mudanças pelas quais passou a sociedade brasileira nas últimas décadas. A diretriz macroeconômica que tem a mola mestra na sobrevalorização cambial e em juros estratosféricos só pode resultar em desindustrialização, desemprego e no descarte do ensino e da pesquisa.
Num quadro desses, qual passa a ser o papel do Estado? Que atividades deverá regular? Para que servirá?
Servirá para garantir a rentabilidade do capital especulativo em cujo altar devem ser queimados direitos, conhecimentos e ativos públicos.
A política, a democracia e a participação de quem quer que seja atrapalham. Também não serão necessários serviços eficientes ou políticas sociais. São gastos inúteis nesse maravilhoso mundo novo. Haverá um país “sobrando” à margem dos negócios. E daí? Daí dane-se. O führer carioca Wilson Witzel e seus helicópteros de caça estão no ar para botar ordem na casa.
Qual a esperança? Embora o projeto do grande capital seja consenso entre os de cima, a execução no mundo real o da política secciona até mesmo as falanges que o aplicam. A base de apoio de Bolsonaro não é uniforme. As inúmeras frações empresariais e populares que o sustentam não estarão nem de longe contempladas se o plano for executado a ferro e fogo. A partir de um indeterminado ponto, o colapso de gestão tenderá a ser disfuncional para o capital, quebrando as próprias garantias de reprodução.
A emergência da rua, a partir do mês de maio, introduz um tensionamento de outra ordem na conjuntura. São fagulhas capazes de impor lógica cartesiana, ou seja, racionalidade política à disputa de rumos e se sobrepor ao caos destrutivo da coalizão capital-fascista. São capazes de recolocar as forças populares na ofensiva do combate.